sábado, 5 de julho de 2014

Helen

Helen*

Nasci no interior de Santa Rosa, no Rio grande do Sul. Meu pai era professor de escola primária. Dava aulas na parte da manhã para as turmas do terceiro, o quarto e o quinto anos. Na parte da tarde ele dava aula para o primeiro e o segundo. Com cinco anos de idade eu já queria ir para a escola com ele. E fui, mas ele me fez fazer duas vezes o primeiro ano. Também fiz duas vezes o quinto ano porque eu era muito nova e não tinha para onde ir, para continuar os estudos. Ele não queria que eu parasse e esse foi um quinto ano especial para mim e outros coleguinhas. Depois, no exame de admissão eu passei muito bem.
Minha mãe é um doce de pessoa, sempre foi muito dedicada ao lar, muito prendada e nos criou com pouco dinheiro, pois meu pai ganhava pouco. Nós comíamos sempre comida de boa qualidade porque ela mesma plantava e colhia. A nossa horta era muito grande, tinha muitas verduras e legumes. Minha mãe costurava, fazia pão e biscoito em casa. Sou a mais velha de seis filhos.
Estudos e trabalho
 Saí de casa com 13 anos de idade para continuar meus estudos. Fui morar com uns tios em Três Passos, que ficava distante algumas horas de ônibus de nossa casa. Eles eram proprietários de um hotel e eu trabalhava com eles e assim tinha casa e comida. Logo no início, por ser muito nova, eles me protegiam bastante. Eu ajudava em tudo o que precisavam, fazia de tudo um pouco. Mas a minha maior função era ajudar a servir as mesas durante as refeições. Mais tarde eu passei a trabalhar na recepção.
Fiquei morando com eles durante sete anos. Nesse meio tempo eles venderam o hotel e foram para Ijuí, que era uma cidade maior e melhor. Sentia muita saudade de casa porque minha família era muito unida e meu pai e minha mãe eram muito carinhosos. Eu sentia saudade dos meus irmãos e alguns deles nasceram depois que saí de casa. Aquilo apertava muito meu coração. Por outro lado, minha tia era muito severa e não fazia muita distinção entre eu e as empregadas. Isso me doía muito, pois me sentia parte da família.
Mudança para os Estados Unidos
Um dia chegou a minha prima que morava nos Estados Unidos e disse que eu merecia uma vida melhor e quis me levar para morar com ela. Eu estava terminando o segundo grau, mas fui assim mesmo. Fui com visto de turista, depois voltei para renovar o visto. Também viajei para o Japão, para renovar o visto novamente. Minha prima e o marido trabalhavam na Varig e eu comecei a viver naquele clima de aviação.
Viajei e comecei a gostar de andar de avião.
Morar nos Estados Unidos foi como entrar em uma escola e começar a aprender a partir do zero. Tudo era diferente e moderno. Foi um grande aprendizado. Eu falava alemão e isso me ajudou muito. Inglês eu sabia um pouco, mas no início fiquei muda.
Três meses depois comecei a frequentar uma escola e fiquei no terceiro ano em um curso de inglês para estrangeiros. Fiz o curso todo. Eu cuidava da casa e dos filhos da minha prima. Ela também precisava de mim e foi a união do útil ao agradável. Ela fez para mim tudo o que pôde. Tive oportunidade de conhecer um mundo diferente. Amadureci cercada de muito carinho. Fiquei morando com eles durante quatro anos.
Aviação
Quando comecei a falar que queria entrar para a aviação, minha prima me disse que só me liberaria aos 21 anos. Ela já tinha sido Comissária. Meu primo era tripulante e voava para o Japão. Eles sempre falaram bem do trabalho. Fui muito incentivada. Depois do curso de inglês, fiz um curso de agente de viagens. Já estava no meio do caminho.
A aviação era a única coisa que eu via; parecia que ela tinha sido feita para mim e eu para ela. A experiência que eu já tinha - relacionamento com o público em hotel, em restaurante, a vivência do dia a dia lidando com pessoas diferentes - era a experiência de que eu precisava para trabalhar na aviação. Quando entrei, não pensei que ia ficar tanto tempo. Já estou aqui há 24 anos e não penso em parar.
Voltei ao Brasil decidida a entrar para a aviação. Morar longe dos meus pais não foi problema. O problema foi falar para eles que eu ia entrar para a aviação. Eu já estava com 21 anos e tinha medo de que eles não aprovassem. Fui para a casa deles e fiquei três dias doente.  Não sabia como falar com eles.
Na realidade eu já tinha feito a inscrição na Varig, em Porto Alegre, e estava com a entrevista marcada. Até então, eles sabiam de tudo o que eu fazia, pois sempre trocamos correspondência e isso preenchia o vazio da distância e a saudade. Cada carta que eu recebia era como se estivesse vivendo com eles.
Finalmente minha mãe me colocou contra a parede e perguntou: “Você viveu tanto tempo lá fora, o que você quer fazer aqui no interior? Quais são seus planos? Seu pai está tentando arranjar uma escola para você lecionar inglês. Que podemos fazer por você?” Aí eu falei que queria entrar na aviação e queria a aprovação deles.  Em vez de ficarem chocados eles ficaram contentes.
Em Porto Alegre passei na entrevista e nos testes. Eu estava preocupada com a minha altura: tinha 1m59cm e eles exigiam 1m60cm. Mas deu tudo certo e no dia 15 de junho de 1973 eu já estava no Rio de Janeiro, com carteira assinada, como aluna comissária.
Curso de Comissários
Durante o cursinho, ficamos hospedados num Hotel próximo ao Aeroporto Santos Dumont. A experiência foi marcante, pois Dona Alice é uma figura inesquecível. Ela era muito severa, muito exigente em relação à postura e ao comportamento. Quando ela apontava no corredor, todo mundo estremecia. Na minha turma 14 alunos eram de Porto Alegre e 14 do Rio de Janeiro. Éramos um grupo muito unido. Tenho muitas lembranças de bons momentos.  
Primeiros voos, elogios
O primeiro voo foi muito bom, com um instrutor de quem não esqueço. Ele não era bem instrutor, mas tinha muita gente nova e ele fez o meu acompanhamento. Depois tive outro voo com uma instrutora que já se aposentou. Nas linhas internacionais a minha instrução foi com uma moça que depois voltou para Israel, para viver no Kibutz. Sempre fui elogiada. Eu estava no mundo da lua e demonstrava que gostava do que estava fazendo. Recebi muitos elogios de passageiros, até do Hélio Schmidt, presidente da Varig.
Moradia
No Rio de Janeiro, fui morar com mais duas colegas no bairro da Glória numa pensão que incluía café da manhã e jantar. Era perto do aeroporto e lá ficamos durante uns sete ou oito meses. Depois, uma colega que morava conosco brigou com a dona da pensão porque ela era rigorosa e queria os quartos sempre limpos. Não podia ter biscoitinhos no quarto etc.
Procuramos um apartamento para alugar e aí começaram as dificuldades. Já não tínhamos mais o jantar ou o café prontinho. Tivemos que nos mobilizar para ter uma cozinha e dividimos as tarefas domésticas. Eu preferi cuidar da cozinha e começamos a cozinhar numa única panela. Outra preferia limpar o apartamento e fazia isso quando chegava de voo, pois chegava elétrica e não conseguia relaxar.
Com o aluguel do apartamento surgiram outros problemas. Eu era a única que tinha dinheiro guardado. Enquanto eu poupava, minhas colegas gastavam com roupas, bolsas e sapatos novos. Na hora de alugar um apartamento tivemos que pagar três meses adiantado porque não tínhamos fiador. Eu era única que tinha esse dinheiro, elas me pediram e eu acabei cedendo. Ficamos morando junto durante uns dois anos.
Acho que consegui administrar melhor a minha vida do que muitos colegas porque saí de casa muito nova. Quando as colegas choravam com saudades de casa, ou se envolviam com problemas com namorados e não sabiam como lidar, vinham chorar no meu ombro. Eu já tinha me desprendido da família e sempre tentei fazer o melhor em tudo.
Vida profissional, promoções
Fiquei pouco tempo nas linhas nacionais porque a Varig estava recebendo os DC-10 e selecionando as pessoas para voar nele. Os comissários que falavam mais idiomas, incluindo o alemão, foram promovidos para as linhas internacionais e logo começaram a fazer os voos diretos para Frankfurt, Zurique e outros. Em junho de 1974, com um ano de companhia, eu já tinha feito o curso do DC-10. Fui uma das mais novas e por isso senti desconforto no grupo de voo. Aqueles que não passaram ficaram nas linhas nacionais e reclamaram muito. Eu tentava explicar que a escolha não era minha.
Relacionamento com os colegas, cantadas
Acho que sou maleável, fácil de lidar. Tive uma vida simples no interior e tudo o que tive a mais é muito positivo. Mas, no início, eu ficava chocada com o comportamento de algumas pessoas que jogavam lixo no chão ou não tinham educação nem respeito com a natureza e com as outras pessoas. Aprendi tudo isso enquanto morei nos Estados Unidos. 
Com relação à cantadas, sofri muita pressão de colegas e de passageiros. Teve um passageiro que me seguiu no aeroporto em Brasília. Foi atrás de nós, me ligou no hotel, contratou um fotógrafo e tirou fotos minhas. Fiquei apavorada e encabulada perante meus colegas. Ele era uma pessoa bem vestida, de terno e gravata. Depois, através da chefia da Varig, mandou a foto para mim. A foto foi tirada no momento em que a gente estava pegando a condução. Eu era ingênua mas me fazia de mais ingênua para não enfrentar a situação.
 Uma vez, estávamos reunidos no quarto de um colega e ele começou a fazer sinal para os outros saírem. Quando levantei para ir embora ele disse: “Não, você fica”. Eu fiquei arrasada, saí do quarto muito chateada em ver que os próprios colegas estavam armando em cima de mim. Se fosse algo que eu também quisesse... Mas eles armaram sem eu saber e me senti traída. Aconteceram muitas coisas desse tipo, mas nada grave.
Envolvimento amoroso
Nunca me apaixonei por passageiro. Já gostei muito de alguém da aviação. Um colega comissário. Era uma pessoa comprometida e eu enfrentei uma luta muito grande por causa da minha formação de família. Eu tinha um sentimento de culpa muito grande e não podia ser feliz com a consciência pesada. Não admitia isso acontecer comigo, nem com  outras pessoas e consegui me afastar. Esse é o mal das tripulações fixas. As pessoas começam a se envolver.
As pessoas também precisam ter boa cabeça. A aviação já é um trabalho que deixa as pessoas carentes. Um dia você não está bem de saúde, ou está com problemas e acaba procurando alguém para desabafar, para ter atenção e acaba se envolvendo. As pessoas num outro tipo de trabalho também estão sujeitas a isso. Mas na aviação, pelo fato de estarem tão longe de casa, as pessoas almoçam e jantam ou enfrentam dificuldades juntas e isso as aproxima. É importante ter a segurança de voltar para casa e ter uma família. Cada um tem o direito de ser feliz, mas não à custa da infelicidade de outros.
Baseamento em Los Angeles
Eu era nova na aviação e as chances de ir trabalhar na rota de Los Angeles eram remotas, a não ser que eu estudasse japonês. Naquela época os equipamentos que faziam voos para o Japão eram o B-707 e o DC-8.
A tripulação de cabine era composta por oito comissários, quatro na primeira classe, incluindo o Chefe de Equipe, e quatro na cabine econômica. Só a comissária auxiliar da primeira classe, o supervisor na cabine econômica e o Chefe de Equipe iam para o baseamento sem ter o idioma oriental. Os outros comissários auxiliares eram japoneses ou nisseis. Comissários auxiliares brasileiros conseguiam ir apenas com nota em algum idioma oriental, que podia ser japonês, chinês ou coreano. Como eu tinha morado em Los Angeles e ainda tinha familiares por lá, fiquei muito interessada e resolvi estudar japonês.
Já falava alemão, inglês e português, porque não poderia falar japonês?  Então procurei o Instituto Cultural Brasil Japão e fui estudar lá. Estudei um ano e pouco nesse lugar. Um dia, a Dona Lilian, Chefe das Comissárias, estava viajando conosco e foi fazer uma visita na cabine econômica na hora do plantão e me viu escrevendo os caracteres japoneses. Ela ficou encantada, achou aquilo uma das sete maravilhas.
Pouco tempo depois recebi um telegrama em casa, pedindo para comparecer à Chefia. Fui preocupada, achando que talvez tivesse feito alguma coisa errada, mas eles queriam me consultar sobre a possibilidade  de eu ir para a base de Los Angeles. Eu tinha apenas dois anos e pouco de voo. Respondi que sim, mas seria muita pretensão da minha parte. Aí eles disseram que gostariam que eu fosse e me fizeram outra proposta: “Continue estudando, contrate  professor particular, precisamos que você faça uma prova, porque os colegas vão querer satisfação”. 
Acho que acendeu uma luz neles, pois se mais pessoas se interessassem em estudar o idioma, seria fantástico e eles não iriam depender apenas dos orientais. E foi isso que aconteceu. Depois que fui para a base LAX, muitos colegas foram na chefia pedir satisfação e outros começaram a estudar japonês. Hoje temos muitos colegas brasileiros falando japonês, chinês, coreano.
Um ano depois recebi uma cartinha da Chefia pedindo que fizesse outro exame de japonês para renovar o baseamento por mais um ano. Logo que cheguei ao Japão eu me matriculei num cursinho. Passava os pernoites no Japão, três vezes por mês, indo para o curso. Tive a vantagem de poder fazer o meu horário. Assim que recebia a escala com a minha programação de voos, eu ligava para a escola e marcava as aulas do mês seguinte. Foi uma experiência muito boa, pois já podia me comunicar em japonês por telefone. Hoje, esqueci muita coisa de tudo o que aprendi, por falta de prática.
Em Los Angeles voltei a morar com meus primos. Foi uma alegria e as crianças já estavam crescidas. Não precisei gastar com aluguel e outras despesas. Essa experiência, que foi muito boa para mim e para a empresa, trouxe mudanças e incentivos para que outros comissários estudassem idiomas orientais. Mas passou a ser usada contra mim: agora não posso mais ir para o baseamento porque já estive lá uma vez. Fiz a inscrição mas não consigo ir com minha família. Criaram um novo regulamento e só vai para o baseamento quem ainda não foi. Mas há muitos colegas que já foram duas ou três vezes.
Retorno ao Brasil, casamento
O retorno ao Brasil significou abrir mão de muitas coisas, pois a nossa realidade é outra. Tive que me conscientizar de que iniciava outra fase de vida. Pude comprar o meu apartamento e como não quis morar sozinha, um irmão veio morar comigo. Foi bom para nós dois.
Algum tempo depois conheci o meu marido. Eu era comissária, quatro anos mais velha, independente, já tinha uma vida profissional bem definida. Ele era um jovem estudante de Teologia num seminário. Nosso primeiro contato foi no próprio seminário, em Porto alegre, onde ele estudava. Minha mãe ficava hospedada lá, enquanto meu pai estava no hospital fazendo tratamento. Meu pai era professor da igreja paroquial durante muitos anos e a igreja nos amparou naqueles momentos difíceis. Quando eu ia visitar meu pai, ficava junto com minha mãe no seminário.
Foi numa dessas visitas, durante um jantar, que conheci esse rapaz, se oferecendo para ajudar no que fosse necessário. Ele foi muito atencioso. Ficamos encantados um com o outro e ao mesmo tempo tínhamos um medo muito grande, até de deixar esse sentimento desabrochar e algo mais acontecer. Os nossos mundos eram muito diferentes. Acabei tirando férias para ficar junto dos meus pais, pois eu era a filha mais velha. Naquele mês, nós tivemos um maior contato e ele foi me conquistando aos poucos. Uns dois meses depois das férias, nos encontramos novamente, pois meu pai retornava com frequência ao hospital, onde fazia hemodiálise. Nas minhas folgas, quando meus pais estavam em Porto Alegre, eu ia para lá, por dois motivos: ver meu pai e o estudante de teologia!
O coração batia mais forte e nós resolvemos conversar sobre o assunto, colocar nossas dúvidas, falar sobre as possibilidades de namorar e se haveria possibilidade de administrarmos essa relação. Conversamos seriamente antes de achar que o mundo era lindo e maravilhoso. Ele não tinha nada contra o meu trabalho, isso não era impedimento e teve tempo e oportunidade de me conhecer realmente.
Sempre foi uma pessoa muito adulta, amadurecida. Namoramos durante dois anos. Ele ia para o Rio de Janeiro nas férias e eu ia para Porto Alegre nas folgas. Conheci a família dele e sabia que eles estavam preocupados com o fato de eu ser comissária de voo, uma mulher independente, morando no Rio de Janeiro, trabalhando num avião e viajando pelo mundo.
Eu me coloquei à disposição para mudar os meus planos, ficar com ele e ir para onde ele tivesse que ir. Depois de três anos de estudos, ele se formou, mas ainda precisava fazer um ano de estágio. Foi nessa época que nos casamos. Ele conseguiu fazer esse estágio no Rio de Janeiro. Para nós foi ótimo! Quando ele voltou, eu estava grávida. Então fui junto para Porto Alegre onde nasceu nossa primeira filha. Em 1983, na formatura do pai ela tinha dois meses de idade. Voltei a trabalhar quando minha filha estava com cinco meses, depois de tirar férias acumuladas.
Maternidade, conciliação com a vida profissional
Deixar minha filhinha em casa e ir trabalhar foi uma experiência chocante. É como se tivesse cortado outra vez o cordão umbilical. Já na primeira vez, ao voltar do voo, soube que ela tinha passado mal. Teve febre forte à noite e a levaram ao médico. Ele não conseguia descobrir qual era o problema e perguntou onde estava a mãe do bebê. Responderam que estava viajando, que tinha ido trabalhar. Ele então perguntou se era a primeira vez. Responderam que sim e ele acrescentou: “Então, amanhã ela estará melhor”. A febre era de fundo emocional.
E assim prosseguimos nossa vida com a neném. Depois vieram as  outras. Meu marido sempre participou muito da criação das crianças. A mais velha tinha um ano e sete meses quando a segunda nasceu. Já tinha voado alguns meses, quando engravidei. As crianças sempre tiveram boa saúde e nós tínhamos uma pessoa muito especial nos ajudando. Tive uma única babá para os meus filhos - uma amiga e uma mãe para os meus filhos. Foi uma bênção ter uma pessoa tão maravilhosa assim na minha casa porque ela me ajudou muito.
Ela também tem uma formação cristã, é uma pessoa que veio do sul, teve a mesma formação que eu tive. Minha sogra a trouxe. No começo sentia saudade de casa, chorava muito, mas depois se adaptou. Ela já tinha certa idade e alguns problemas de saúde e nós a ajudamos no que precisava e ela nos ajudou no que nós precisávamos. Agora, há dois anos, ela acabou se casando. Não aceitava a possibilidade de namorar, mas acabou namorando e casando. Casou aos 42 anos com um rapaz de 38 anos. Exatamente a mesma diferença de idade que existe entre eu e meu marido. Ela casou e continuou vindo à nossa casa todos os dias. 
Nunca perdi um voo por causa dos meus filhos. Só quando engravidei pela terceira vez é que fiquei meio abalada nas estruturas. Fazia apenas dois meses que tinha retornado ao voo, fui revalidar a carteira de saúde e ela ficou retida porque constataram que eu estava grávida.  Eu tinha um bebê de seis meses em casa e já estava grávida novamente.
As coisas na aviação estavam mudando. Muitas comissárias estavam casando e tendo filhos. O papo entre elas já era outro: questões de família, o marido e as crianças em casa esperando, os pais carregando fraldas na bagagem. Aos poucos tudo foi ficando diferente. O meu grupo de voo, com quem eu mais convivia, era composto por pessoas que voavam há mais de 10 anos. Eram experientes, com famílias constituídas e levavam o trabalho a sério.  Não havia choque nesse sentido, não viam problema em sair de casa e ir trabalhar. 
De vez em quando eu me questionava: Será que sou uma mãe desnaturada, será que é normal deixar os filhos? Sempre procurei refletir sobre isso e chegar a uma conclusão pessoal. Tentei me convencer de que era mais importante ter um relacionamento de boa qualidade, do que de quantidade. Procurei administrar bem isso e quando estava em casa com a família, vivia exclusivamente para eles. Quando vestia o uniforme e ia trabalhar, a aviação passava a ser prioridade. O meu marido sempre me apoiou, pois ele admira o meu trabalho. Quando as crianças eram pequenas ele não viajava comigo, mas agora, que estão um pouco mais independentes, passou a viajar, quando tem tempo.
Mudanças
Depois da formatura, no início do nosso casamento, meu marido recebeu uma proposta de trabalho em Natal, no Rio Grande do Norte.  Isso foi um drama para nós, pois eu teria que deixar a aviação para acompanhá-lo. Estava disposta a fazer isto, mas acabamos entendendo que a própria igreja queria me afastar do meu trabalho, pois não era muito interessante um pastor casado com uma Comissária de Voo. Então, nós optamos por não aceitar a proposta e logo ele teve a oportunidade de cursar Jornalismo no Rio de Janeiro. Depois, me coloquei à disposição da igreja e tenho tido a oportunidade de fazer coisas boas para as pessoas. Trago remédios que aqui no Brasil ainda não fabricam, já hospedei muitas pessoas da igreja na minha casa e posso ajudar de muitas maneiras.
Meu marido recebeu muitas propostas de trabalho e aceitou essa de São Paulo, depois que tivemos uma reunião em família e examinamos os prós e contras. Conversamos com os filhos, mostramos o lado positivo, que era importante para a carreira profissional do pai e que todos deveríamos fazer o máximo para que ele se realizasse profissionalmente.
Ele desempenha a função de capelão em uma escola de 1500 alunos. É um trabalho muito bonito e lida diretamente com o ser humano, com o sofrimento das pessoas. Concordei e as crianças também. Nós achamos que valia a pena! A Empresa achou ótima a transferência, desde que eu assinasse que era sem ônus para ela. Para nós foi muito fácil.
Em São Paulo nos ofereceram casa, mas nós ficamos encarregados de procurá-la. Tirei férias e fomos procurar a casa. Encontramos uma para alugar bem perto da escola onde ele ia trabalhar. Era o que queríamos. A vaga das crianças na escola já estava garantida. É uma escola confessional, evangélica luterana - tem ensino religioso obrigatório. O interessante é que só 26 alunos da escola são de famílias luterana, mas todos têm aula de religião. Foi feita uma pesquisa com os pais, por qual razão eles procuravam a escola: disseram que sentiam a necessidade do ensino religioso para os filhos.  É bom para a formação das crianças.
Estamos começando uma nova etapa na nossa vida, com os pés no chão, com muita tranquilidade e sem traumas para ninguém. Tudo foi muito bem estruturado. A aceitação das crianças na escola foi excelente e das pessoas que trabalham com meu marido também. Não dá mais para separar a Helen da aviação da Helen da igreja, uma faz parte da outra.
Estamos todos felizes e tudo depende de nós como família. Lá em casa há uma divisão de tarefas. Quando não estou, a nossa filha mais velha já se encarrega de esquentar a comida para todo mundo. Ela tem 14 anos e meio. Eu procuro orientá-la nos cuidados que deve ter quando está na cozinha. Às vezes, deixo comida pronta no congelador, outras na geladeira mesmo. Sou eu quem cozinha. 
Importância do trabalho
Acho que o meu trabalho na aviação é muito importante. Com ele também ajudei muito a minha família. Uma vez, pensando em parar de voar, cheguei à conclusão de que seria uma atitude egoísta da minha parte. Se eu deixasse de fazer o que estou fazendo, muitas pessoas sofreriam as consequências. Tenho condições de continuar trabalhando e devo trabalhar porque só faço o bem. Não estou trabalhando para enriquecer, aumentar meu patrimônio ou para achar que sou mais importante que os outros. Estou aqui para servir, para ajudar. É uma forma de ver as coisas.
Hoje eu tenho três filhos e uma preocupação especial com eles, que precisam muito de mim. Mas também, através do meu trabalho, posso ajudá-los muito. Meus filhos têm o maior orgulho de mim e falam de boca cheia que eu sou “Comissária de Voo”. As meninas, volta e meia, falam que um dia querem ser comissárias. Eu, por enquanto, dou a maior força para elas e digo: “Ótimo!”
Sempre mostrei o lado bom das coisas e nunca falei mal do meu ambiente de trabalho. O máximo que posso fazer é reclamar que estou cansada, mas com um bom repouso eu me refaço. Quando chego, procuro descansar primeiro, para depois poder desempenhar melhor as minhas funções de dona de casa e de mãe.
Já recebi bilhete de meu marido dizendo o que ele pensa do meu trabalho: “Ser comissária de voo é arte, elegância, trabalho, saudade, segurança, alegria, cultura e realização.” E de minhas  filhas: “Mãe, eu senti muita saudade de você, eu te amo”.  
Com relação à Empresa, a gente sempre sonha e tem expectativas de melhorar um pouco no sentido de desenvolver o lado profissional e ver o nosso trabalho mais valorizado. Acho que é isso que todo mundo espera. Antes de parar de voar espero sentir mais essa valorização profissional.
Preparação para viajar
Sinto que no dia em que vou viajar fico um pouco alterada, com um pouco de ansiedade. Isso acontece apenas no dia do voo. Não sofro por antecipação. Procuro não ficar obcecada, viver em função da escala de voo, apesar de nossa vida ser direcionada pela escala. Mas não deixo essa escala atrapalhar minha vida em casa. Sei que vou viajar, mas não vou ficar todo dia pensando na próxima viagem. Só no dia eu me preocupo com a aquele voo e arrumo as malas rapidinho, pouco antes de sair de casa. Levo uma hora para me arrumar. Nesse tempo fico pensando nas recomendações que tenho que deixar em casa, as ordens que têm que ser cumpridas, o que eles têm que fazer na minha ausência. Na hora em que estou indo para o aeroporto, meu marido me pergunta se tenho alguma recomendação especial. Sempre que possível, ele me leva para o aeroporto. Quando morávamos no Rio de Janeiro ele sempre me levava, mas agora que moramos em São Paulo nem sempre o horário de trabalho dele permite. Carrego livros para ler e alguma coisa de casa que lembre a minha família, como fotografias, por exemplo.
Pernoites
Em alguns pernoites procuro descansar. Em outros, mais longos, procuro me ocupar, leio jornais, revistas, livros, tenho meus momentos de oração e conversa com Deus. Não fico pensando nas coisas em casa. Sempre tenho coisas na mala para fazer. Não considero os meus pernoites como perda de tempo. Acho que estou aqui por uma razão especial, pois tudo tem sua razão de ser. Mesmo tendo muitas coisas para fazer em casa e tendo que ficar aqui parada dois dias, procuro aproveitar, fazer algum passeio, levar alguma coisa daqui para casa, nem que seja do supermercado. Sempre levo coisas para casa, mas meus filhos não perguntam o que eu trouxe, na minha chegada. Fui acostumando-os: se um precisa de tênis é para ele que vou levar. Os outros não podem chorar porque não ganharam. Às vezes, só abro a mala no dia seguinte. Eles não ficam me cobrando.
Problemas de saúde
 A nossa saúde é muito importante e precisamos nos cuidar porque a aviação mexe muito com nosso organismo. Acho que somos muito expostos, que corremos riscos de complicar nossa  saúde em função das oscilações de temperatura, fusos horários, alimentação, noites sem dormir. Sem dúvida, nossas condições de trabalho são prejudiciais à nossa saúde. E há também a questão do desgaste familiar.
Às vezes, penso que sou diferente das outras mulheres da aviação porque procuro não tornar as coisas mais difíceis. Procuro sempre ver o lado bom e positivo das coisas, procuro não me estressar. E isso me faz bem. Acho que ter uma estrutura familiar estável é muito importante. Deve ser uma vida bem difícil a da mulher da aviação que tem filhos e tem de administrar tudo sozinha. Mal chega em casa e logo precisa sair correndo para pagar contas, resolver outros problemas  etc.
Em relação às pessoas que enfrentam o trânsito todo dia, como mulheres que trabalham fora ou aquela profissional que está fazendo carreira, acho que nós não estamos em desvantagem. Talvez ela ganhe porque tem as noites bem dormidas. Neste sentido, o nosso desgaste é maior.
Imagem da Comissária de Voo
Acho que a Comissária de Voo é uma heroína, por conseguir administrar essa vida, deixar a família para trás, cumprir a sua escala de voo até o fim.  Enfrentar atrasos e passar para o passageiro a ideia de que isso é a coisa mais natural, embora também esteja muito ansiosa para chegar à sua casa. Não é qualquer um que aguenta isso. Acho que somos diferentes e mesmo as pessoas nos olham de uma forma diferente. Ou com admiração, ou cheios de indagações, com vontade de descobrir nossos segredos. Mas acho que somos realmente pessoas especiais.
Na hora em que as portas do avião se fecham, tenho consciência de que me foi confiada muita responsabilidade e que devo desempenhar a minha função da melhor forma possível. Considero o meu trabalho muito importante e procuro passar para o passageiro essa imagem de segurança, ou faço-o saber que estou ali para cuidar da sua segurança e do seu bem-estar.
Benefícios da profissão
A aviação nos faz amadurecer, nos abre os horizontes e nos torna independentes. O meu mundo era muito pequeno e aos poucos foi crescendo. Fui conhecendo lugares os quais eu nunca tinha imaginado conhecer. Não sonhava conhecer o Japão e, de repente, eu estava indo para lá, tirando um fininho da Rússia, fazendo escala no Alasca, em Anchorage, para abastecer. Foi uma experiência incrível! A própria experiência com a cultura japonesa  acrescentou muita coisa em minha vida. Isso sem falar nos voos  para a Europa e Estados Unidos. Hoje esse mundo maior faz parte da minha realidade.
As pessoas geralmente vibram quando vou viajar. É como se viajassem comigo. Participo quando me perguntam. Não digo que vou viajar (sugestão do meu marido), digo que vou trabalhar. Mas o meu destino é Paris, Nova York, e isso faz a diferença. As pessoas que conhecem meu trabalho, minhas idas e vindas, vibram comigo, ficam felizes em saber das coisas. De vez em quando, divido algumas experiências com elas, conto com quem eu tive a oportunidade de estar, de conversar. Quando são pessoas famosas, elas se alegram.
Penso muito no que a minha filha falou da professora de história: “ela me faz viajar”.  Fiquei pensando sobre isso! Como ela consegue viajar nas aulas de história?! A professora que nunca foi à Grécia, nunca viajou, mas gosta do que faz, consegue transmitir isso às crianças. Então, eu que viajo, quero passar isso para as pessoas, permitir que elas viajem comigo, mesmo que seja só na imaginação. Sentir por onde andei, as coisas que vi, falar da minha experiência.  Não fiquei apenas trabalhando a noite toda ou dormindo no quarto do hotel. Eu andei pela cidade, vi coisas diferentes.
Expectativas, planos para o futuro
Até pouco tempo atrás eu não tinha muita expectativa em relação ao futuro. Acho que não deixei de fazer nada em função da aviação. Mas também penso que me acomodei, que deveria ter continuado a estudar e fazer outras coisas. Sempre participei muito da igreja, na parte da assistência social, até mesmo antes de casar. Tenho três irmãos que se formaram em Teologia, que trabalham como pastores. De uma forma ou outra eu os ajudei, dando apoio financeiro. Tenho um irmão que fez administração de empresa e hoje é gerente de banco, mas é muito ativo dentro da igreja. Toda a família é muito voltada para a igreja e essas afinidades ajudaram muito no meu casamento e na minha vida.
             
*Helen, (pseudônimo) estava com 45 anos e tinha 24 de voo, quando concedeu esta entrevista em um pernoite na cidade de Copenhague, (Dinamarca), em 1997.


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