Helen*
Nasci
no interior de Santa Rosa, no Rio grande do Sul. Meu pai era professor de
escola primária. Dava aulas na parte da manhã para as turmas do terceiro, o
quarto e o quinto anos. Na parte da tarde ele dava aula para o primeiro e o
segundo. Com cinco anos de idade eu já queria ir para a escola com ele. E fui,
mas ele me fez fazer duas vezes o primeiro ano. Também fiz duas vezes o quinto
ano porque eu era muito nova e não tinha para onde ir, para continuar os
estudos. Ele não queria que eu parasse e esse foi um quinto ano especial para
mim e outros coleguinhas. Depois, no exame de admissão eu passei muito bem.
Minha
mãe é um doce de pessoa, sempre foi muito dedicada ao lar, muito prendada e nos
criou com pouco dinheiro, pois meu pai ganhava pouco. Nós comíamos sempre comida
de boa qualidade porque ela mesma plantava e colhia. A nossa horta era muito
grande, tinha muitas verduras e legumes. Minha mãe costurava, fazia pão e
biscoito em casa. Sou a mais velha de seis filhos.
Estudos e trabalho
Saí de casa com 13 anos de idade para continuar meus
estudos. Fui morar com uns tios em Três Passos, que ficava distante algumas
horas de ônibus de nossa casa. Eles eram proprietários de um hotel e eu
trabalhava com eles e assim tinha casa e comida. Logo no início, por ser muito
nova, eles me protegiam bastante. Eu ajudava em tudo o que precisavam, fazia de
tudo um pouco. Mas a minha maior função era ajudar a servir as mesas durante as
refeições. Mais tarde eu passei a trabalhar na recepção.
Fiquei
morando com eles durante sete anos. Nesse meio tempo eles venderam o hotel e
foram para Ijuí, que era uma cidade maior e melhor. Sentia muita saudade de
casa porque minha família era muito unida e meu pai e minha mãe eram muito
carinhosos. Eu sentia saudade dos meus irmãos e alguns deles nasceram depois
que saí de casa. Aquilo apertava muito meu coração. Por outro lado, minha tia
era muito severa e não fazia muita distinção entre eu e as empregadas. Isso me
doía muito, pois me sentia parte da família.
Mudança para os Estados
Unidos
Um dia chegou a minha prima que morava nos
Estados Unidos e disse que eu merecia uma vida melhor e quis me levar para
morar com ela. Eu estava terminando o segundo grau, mas fui assim mesmo. Fui
com visto de turista, depois voltei para renovar o visto. Também viajei para o
Japão, para renovar o visto novamente. Minha prima e o marido trabalhavam na
Varig e eu comecei a viver naquele clima de aviação.
Viajei e comecei a gostar de andar de avião.
Morar
nos Estados Unidos foi como entrar em uma escola e começar a aprender a partir
do zero. Tudo era diferente e moderno. Foi um grande aprendizado. Eu falava
alemão e isso me ajudou muito. Inglês eu sabia um pouco, mas no início fiquei
muda.
Três
meses depois comecei a frequentar uma escola e fiquei no terceiro ano em um
curso de inglês para estrangeiros. Fiz o curso todo. Eu cuidava da casa e dos
filhos da minha prima. Ela também precisava de mim e foi a união do útil ao
agradável. Ela fez para mim tudo o que pôde. Tive oportunidade de conhecer um
mundo diferente. Amadureci cercada de muito carinho. Fiquei morando com eles
durante quatro anos.
Aviação
Quando
comecei a falar que queria entrar para a aviação, minha prima me disse que só
me liberaria aos 21 anos. Ela já tinha sido Comissária. Meu primo era
tripulante e voava para o Japão. Eles sempre falaram bem do trabalho. Fui muito
incentivada. Depois do curso de inglês, fiz um curso de agente de viagens. Já
estava no meio do caminho.
A
aviação era a única coisa que eu via; parecia que ela tinha sido feita para mim
e eu para ela. A experiência que eu já tinha - relacionamento com o público em
hotel, em restaurante, a vivência do dia a dia lidando com pessoas diferentes -
era a experiência de que eu precisava para trabalhar na aviação. Quando entrei,
não pensei que ia ficar tanto tempo. Já estou aqui há 24 anos e não penso em
parar.
Voltei
ao Brasil decidida a entrar para a aviação. Morar longe dos meus pais não foi
problema. O problema foi falar para eles que eu ia entrar para a aviação. Eu já
estava com 21 anos e tinha medo de que eles não aprovassem. Fui para a casa
deles e fiquei três dias doente. Não
sabia como falar com eles.
Na
realidade eu já tinha feito a inscrição na Varig, em Porto Alegre, e estava com
a entrevista marcada. Até então, eles sabiam de tudo o que eu fazia, pois
sempre trocamos correspondência e isso preenchia o vazio da distância e a
saudade. Cada carta que eu recebia era como se estivesse vivendo com eles.
Finalmente
minha mãe me colocou contra a parede e perguntou: “Você viveu tanto tempo lá
fora, o que você quer fazer aqui no interior? Quais são seus planos? Seu pai
está tentando arranjar uma escola para você lecionar inglês. Que podemos fazer
por você?” Aí eu falei que queria entrar na aviação e queria a aprovação
deles. Em vez de ficarem chocados eles
ficaram contentes.
Em Porto Alegre passei na entrevista e nos
testes. Eu estava preocupada com a minha altura: tinha 1m59cm e eles exigiam
1m60cm. Mas deu tudo certo e no dia 15 de junho de 1973 eu já estava no Rio de
Janeiro, com carteira assinada, como aluna comissária.
Curso de Comissários
Durante
o cursinho, ficamos hospedados num Hotel próximo ao Aeroporto Santos Dumont. A
experiência foi marcante, pois Dona Alice é uma figura inesquecível. Ela era
muito severa, muito exigente em relação à postura e ao comportamento. Quando
ela apontava no corredor, todo mundo estremecia. Na minha turma 14 alunos eram
de Porto Alegre e 14 do Rio de Janeiro. Éramos um grupo muito unido. Tenho
muitas lembranças de bons momentos.
Primeiros voos, elogios
O
primeiro voo foi muito bom, com um instrutor de quem não esqueço. Ele não era
bem instrutor, mas tinha muita gente nova e ele fez o meu acompanhamento.
Depois tive outro voo com uma instrutora que já se aposentou. Nas linhas
internacionais a minha instrução foi com uma moça que depois voltou para
Israel, para viver no Kibutz. Sempre fui elogiada. Eu estava no mundo da lua e
demonstrava que gostava do que estava fazendo. Recebi muitos elogios de
passageiros, até do Hélio Schmidt, presidente da Varig.
Moradia
No
Rio de Janeiro, fui morar com mais duas colegas no bairro da Glória numa pensão
que incluía café da manhã e jantar. Era perto do aeroporto e lá ficamos durante
uns sete ou oito meses. Depois, uma colega que morava conosco brigou com a dona
da pensão porque ela era rigorosa e queria os quartos sempre limpos. Não podia
ter biscoitinhos no quarto etc.
Procuramos
um apartamento para alugar e aí começaram as dificuldades. Já não tínhamos mais
o jantar ou o café prontinho. Tivemos que nos mobilizar para ter uma cozinha e
dividimos as tarefas domésticas. Eu preferi cuidar da cozinha e começamos a
cozinhar numa única panela. Outra preferia limpar o apartamento e fazia isso
quando chegava de voo, pois chegava elétrica e não conseguia relaxar.
Com
o aluguel do apartamento surgiram outros problemas. Eu era a única que tinha
dinheiro guardado. Enquanto eu poupava, minhas colegas gastavam com roupas,
bolsas e sapatos novos. Na hora de alugar um apartamento tivemos que pagar três
meses adiantado porque não tínhamos fiador. Eu era única que tinha esse
dinheiro, elas me pediram e eu acabei cedendo. Ficamos morando junto durante
uns dois anos.
Acho que consegui administrar melhor a minha
vida do que muitos colegas porque saí de casa muito nova. Quando as colegas
choravam com saudades de casa, ou se envolviam com problemas com namorados e não
sabiam como lidar, vinham chorar no meu ombro. Eu já tinha me desprendido da
família e sempre tentei fazer o melhor em tudo.
Vida profissional,
promoções
Fiquei
pouco tempo nas linhas nacionais porque a Varig estava recebendo os DC-10 e
selecionando as pessoas para voar nele. Os comissários que falavam mais
idiomas, incluindo o alemão, foram promovidos para as linhas internacionais e
logo começaram a fazer os voos diretos para Frankfurt, Zurique e outros. Em
junho de 1974, com um ano de companhia, eu já tinha feito o curso do DC-10. Fui
uma das mais novas e por isso senti desconforto no grupo de voo. Aqueles que
não passaram ficaram nas linhas nacionais e reclamaram muito. Eu tentava
explicar que a escolha não era minha.
Relacionamento com os
colegas, cantadas
Acho
que sou maleável, fácil de lidar. Tive uma vida simples no interior e tudo o
que tive a mais é muito positivo. Mas, no início, eu ficava chocada com o
comportamento de algumas pessoas que jogavam lixo no chão ou não tinham
educação nem respeito com a natureza e com as outras pessoas. Aprendi tudo isso
enquanto morei nos Estados Unidos.
Com
relação à cantadas, sofri muita pressão de colegas e de passageiros. Teve um
passageiro que me seguiu no aeroporto em Brasília. Foi atrás de nós, me ligou
no hotel, contratou um fotógrafo e tirou fotos minhas. Fiquei apavorada e
encabulada perante meus colegas. Ele era uma pessoa bem vestida, de terno e
gravata. Depois, através da chefia da Varig, mandou a foto para mim. A foto foi
tirada no momento em que a gente estava pegando a condução. Eu era ingênua mas
me fazia de mais ingênua para não enfrentar a situação.
Uma vez, estávamos reunidos no quarto de um
colega e ele começou a fazer sinal para os outros saírem. Quando levantei para
ir embora ele disse: “Não, você fica”. Eu fiquei arrasada, saí do quarto muito
chateada em ver que os próprios colegas estavam armando em cima de mim. Se
fosse algo que eu também quisesse... Mas eles armaram sem eu saber e me senti
traída. Aconteceram muitas coisas desse tipo, mas nada grave.
Envolvimento amoroso
Nunca me apaixonei por passageiro. Já gostei
muito de alguém da aviação. Um colega comissário. Era uma pessoa comprometida e
eu enfrentei uma luta muito grande por causa da minha formação de família. Eu
tinha um sentimento de culpa muito grande e não podia ser feliz com a
consciência pesada. Não admitia isso acontecer comigo, nem com outras pessoas e consegui me afastar. Esse é
o mal das tripulações fixas. As pessoas começam a se envolver.
As
pessoas também precisam ter boa cabeça. A aviação já é um trabalho que deixa as
pessoas carentes. Um dia você não está bem de saúde, ou está com problemas e
acaba procurando alguém para desabafar, para ter atenção e acaba se envolvendo.
As pessoas num outro tipo de trabalho também estão sujeitas a isso. Mas na
aviação, pelo fato de estarem tão longe de casa, as pessoas almoçam e jantam ou
enfrentam dificuldades juntas e isso as aproxima. É importante ter a segurança
de voltar para casa e ter uma família. Cada um tem o direito de ser feliz, mas
não à custa da infelicidade de outros.
Baseamento em Los Angeles
Eu
era nova na aviação e as chances de ir trabalhar na rota de Los Angeles eram
remotas, a não ser que eu estudasse japonês. Naquela época os equipamentos que
faziam voos para o Japão eram o B-707 e o DC-8.
A
tripulação de cabine era composta por oito comissários, quatro na primeira
classe, incluindo o Chefe de Equipe, e quatro na cabine econômica. Só a
comissária auxiliar da primeira classe, o supervisor na cabine econômica e o
Chefe de Equipe iam para o baseamento sem ter o idioma oriental. Os outros
comissários auxiliares eram japoneses ou nisseis. Comissários auxiliares brasileiros
conseguiam ir apenas com nota em algum idioma oriental, que podia ser japonês,
chinês ou coreano. Como eu tinha morado em Los Angeles e ainda tinha familiares
por lá, fiquei muito interessada e resolvi estudar japonês.
Já
falava alemão, inglês e português, porque não poderia falar japonês? Então procurei o Instituto Cultural Brasil
Japão e fui estudar lá. Estudei um ano e pouco nesse lugar. Um dia, a Dona
Lilian, Chefe das Comissárias, estava viajando conosco e foi fazer uma visita
na cabine econômica na hora do plantão e me viu escrevendo os caracteres
japoneses. Ela ficou encantada, achou aquilo uma das sete maravilhas.
Pouco
tempo depois recebi um telegrama em casa, pedindo para comparecer à Chefia. Fui
preocupada, achando que talvez tivesse feito alguma coisa errada, mas eles
queriam me consultar sobre a possibilidade
de eu ir para a base de Los Angeles. Eu tinha apenas dois anos e pouco
de voo. Respondi que sim, mas seria muita pretensão da minha parte. Aí eles
disseram que gostariam que eu fosse e me fizeram outra proposta: “Continue
estudando, contrate professor
particular, precisamos que você faça uma prova, porque os colegas vão querer
satisfação”.
Acho que acendeu uma luz neles, pois se mais
pessoas se interessassem em estudar o idioma, seria fantástico e eles não iriam
depender apenas dos orientais. E foi isso que aconteceu. Depois que fui para a
base LAX, muitos colegas foram na chefia pedir satisfação e outros começaram a
estudar japonês. Hoje temos muitos colegas brasileiros falando japonês, chinês,
coreano.
Um
ano depois recebi uma cartinha da Chefia pedindo que fizesse outro exame de
japonês para renovar o baseamento por mais um ano. Logo que cheguei ao Japão eu
me matriculei num cursinho. Passava os pernoites no Japão, três vezes por mês,
indo para o curso. Tive a vantagem de poder fazer o meu horário. Assim que
recebia a escala com a minha programação de voos, eu ligava para a escola e
marcava as aulas do mês seguinte. Foi uma experiência muito boa, pois já podia
me comunicar em japonês por telefone. Hoje, esqueci muita coisa de tudo o que
aprendi, por falta de prática.
Em
Los Angeles voltei a morar com meus primos. Foi uma alegria e as crianças já
estavam crescidas. Não precisei gastar com aluguel e outras despesas. Essa
experiência, que foi muito boa para mim e para a empresa, trouxe mudanças e
incentivos para que outros comissários estudassem idiomas orientais. Mas passou
a ser usada contra mim: agora não posso mais ir para o baseamento porque já estive
lá uma vez. Fiz a inscrição mas não consigo ir com minha família. Criaram um
novo regulamento e só vai para o baseamento quem ainda não foi. Mas há muitos
colegas que já foram duas ou três vezes.
Retorno ao Brasil,
casamento
O
retorno ao Brasil significou abrir mão de muitas coisas, pois a nossa realidade
é outra. Tive que me conscientizar de que iniciava outra fase de vida. Pude
comprar o meu apartamento e como não quis morar sozinha, um irmão veio morar
comigo. Foi bom para nós dois.
Algum
tempo depois conheci o meu marido. Eu era comissária, quatro anos mais velha,
independente, já tinha uma vida profissional bem definida. Ele era um jovem
estudante de Teologia num seminário. Nosso primeiro contato foi no próprio
seminário, em Porto alegre, onde ele estudava. Minha mãe ficava hospedada lá,
enquanto meu pai estava no hospital fazendo tratamento. Meu pai era professor
da igreja paroquial durante muitos anos e a igreja nos amparou naqueles
momentos difíceis. Quando eu ia visitar meu pai, ficava junto com minha mãe no
seminário.
Foi numa dessas visitas, durante um jantar,
que conheci esse rapaz, se oferecendo para ajudar no que fosse necessário. Ele
foi muito atencioso. Ficamos encantados um com o outro e ao mesmo tempo
tínhamos um medo muito grande, até de deixar esse sentimento desabrochar e algo
mais acontecer. Os nossos mundos eram muito diferentes. Acabei tirando férias
para ficar junto dos meus pais, pois eu era a filha mais velha. Naquele mês,
nós tivemos um maior contato e ele foi me conquistando aos poucos. Uns dois
meses depois das férias, nos encontramos novamente, pois meu pai retornava com
frequência ao hospital, onde fazia hemodiálise. Nas minhas folgas, quando meus
pais estavam em Porto Alegre, eu ia para lá, por dois motivos: ver meu pai e o
estudante de teologia!
O
coração batia mais forte e nós resolvemos conversar sobre o assunto, colocar
nossas dúvidas, falar sobre as possibilidades de namorar e se haveria
possibilidade de administrarmos essa relação. Conversamos seriamente antes de
achar que o mundo era lindo e maravilhoso. Ele não tinha nada contra o meu
trabalho, isso não era impedimento e teve tempo e oportunidade de me conhecer
realmente.
Sempre
foi uma pessoa muito adulta, amadurecida. Namoramos durante dois anos. Ele ia
para o Rio de Janeiro nas férias e eu ia para Porto Alegre nas folgas. Conheci
a família dele e sabia que eles estavam preocupados com o fato de eu ser
comissária de voo, uma mulher independente, morando no Rio de Janeiro, trabalhando
num avião e viajando pelo mundo.
Eu
me coloquei à disposição para mudar os meus planos, ficar com ele e ir para
onde ele tivesse que ir. Depois de três anos de estudos, ele se formou, mas
ainda precisava fazer um ano de estágio. Foi nessa época que nos casamos. Ele
conseguiu fazer esse estágio no Rio de Janeiro. Para nós foi ótimo! Quando ele
voltou, eu estava grávida. Então fui junto para Porto Alegre onde nasceu nossa
primeira filha. Em 1983, na formatura do pai ela tinha dois meses de idade.
Voltei a trabalhar quando minha filha estava com cinco meses, depois de tirar
férias acumuladas.
Maternidade, conciliação
com a vida profissional
Deixar
minha filhinha em casa e ir trabalhar foi uma experiência chocante. É como se
tivesse cortado outra vez o cordão umbilical. Já na primeira vez, ao voltar do
voo, soube que ela tinha passado mal. Teve febre forte à noite e a levaram ao
médico. Ele não conseguia descobrir qual era o problema e perguntou onde estava
a mãe do bebê. Responderam que estava viajando, que tinha ido trabalhar. Ele
então perguntou se era a primeira vez. Responderam que sim e ele acrescentou:
“Então, amanhã ela estará melhor”. A febre era de fundo emocional.
E assim prosseguimos nossa vida com a neném.
Depois vieram as outras. Meu marido
sempre participou muito da criação das crianças. A mais velha tinha um ano e
sete meses quando a segunda nasceu. Já tinha voado alguns meses, quando
engravidei. As crianças sempre tiveram boa saúde e nós tínhamos uma pessoa
muito especial nos ajudando. Tive uma única babá para os meus filhos - uma
amiga e uma mãe para os meus filhos. Foi uma bênção ter uma pessoa tão
maravilhosa assim na minha casa porque ela me ajudou muito.
Ela
também tem uma formação cristã, é uma pessoa que veio do sul, teve a mesma
formação que eu tive. Minha sogra a trouxe. No começo sentia saudade de casa,
chorava muito, mas depois se adaptou. Ela já tinha certa idade e alguns
problemas de saúde e nós a ajudamos no que precisava e ela nos ajudou no que
nós precisávamos. Agora, há dois anos, ela acabou se casando. Não aceitava a
possibilidade de namorar, mas acabou namorando e casando. Casou aos 42 anos com
um rapaz de 38 anos. Exatamente a mesma diferença de idade que existe entre eu
e meu marido. Ela casou e continuou vindo à nossa casa todos os dias.
Nunca
perdi um voo por causa dos meus filhos. Só quando engravidei pela terceira vez
é que fiquei meio abalada nas estruturas. Fazia apenas dois meses que tinha
retornado ao voo, fui revalidar a carteira de saúde e ela ficou retida porque
constataram que eu estava grávida. Eu
tinha um bebê de seis meses em casa e já estava grávida novamente.
As
coisas na aviação estavam mudando. Muitas comissárias estavam casando e tendo
filhos. O papo entre elas já era outro: questões de família, o marido e as
crianças em casa esperando, os pais carregando fraldas na bagagem. Aos poucos
tudo foi ficando diferente. O meu grupo de voo, com quem eu mais convivia, era
composto por pessoas que voavam há mais de 10 anos. Eram experientes, com
famílias constituídas e levavam o trabalho a sério. Não havia choque nesse sentido, não viam
problema em sair de casa e ir trabalhar.
De
vez em quando eu me questionava: Será que sou uma mãe desnaturada, será que é
normal deixar os filhos? Sempre procurei refletir sobre isso e chegar a uma
conclusão pessoal. Tentei me convencer de que era mais importante ter um
relacionamento de boa qualidade, do que de quantidade. Procurei administrar bem
isso e quando estava em casa com a família, vivia exclusivamente para eles.
Quando vestia o uniforme e ia trabalhar, a aviação passava a ser prioridade. O
meu marido sempre me apoiou, pois ele admira o meu trabalho. Quando as crianças
eram pequenas ele não viajava comigo, mas agora, que estão um pouco mais
independentes, passou a viajar, quando tem tempo.
Mudanças
Depois da formatura, no início do nosso
casamento, meu marido recebeu uma proposta de trabalho em Natal, no Rio Grande
do Norte. Isso foi um drama para nós,
pois eu teria que deixar a aviação para acompanhá-lo. Estava disposta a fazer
isto, mas acabamos entendendo que a própria igreja queria me afastar do meu
trabalho, pois não era muito interessante um pastor casado com uma Comissária
de Voo. Então, nós optamos por não aceitar a proposta e logo ele teve a
oportunidade de cursar Jornalismo no Rio de Janeiro. Depois, me coloquei à
disposição da igreja e tenho tido a oportunidade de fazer coisas boas para as
pessoas. Trago remédios que aqui no Brasil ainda não fabricam, já hospedei
muitas pessoas da igreja na minha casa e posso ajudar de muitas maneiras.
Meu
marido recebeu muitas propostas de trabalho e aceitou essa de São Paulo, depois
que tivemos uma reunião em família e examinamos os prós e contras. Conversamos
com os filhos, mostramos o lado positivo, que era importante para a carreira
profissional do pai e que todos deveríamos fazer o máximo para que ele se
realizasse profissionalmente.
Ele
desempenha a função de capelão em uma escola de 1500 alunos. É um trabalho
muito bonito e lida diretamente com o ser humano, com o sofrimento das pessoas.
Concordei e as crianças também. Nós achamos que valia a pena! A Empresa achou
ótima a transferência, desde que eu assinasse que era sem ônus para ela. Para
nós foi muito fácil.
Em
São Paulo nos ofereceram casa, mas nós ficamos encarregados de procurá-la.
Tirei férias e fomos procurar a casa. Encontramos uma para alugar bem perto da
escola onde ele ia trabalhar. Era o que queríamos. A vaga das crianças na
escola já estava garantida. É uma escola confessional, evangélica luterana -
tem ensino religioso obrigatório. O interessante é que só 26 alunos da escola
são de famílias luterana, mas todos têm aula de religião. Foi feita uma
pesquisa com os pais, por qual razão eles procuravam a escola: disseram que
sentiam a necessidade do ensino religioso para os filhos. É bom para a formação das crianças.
Estamos
começando uma nova etapa na nossa vida, com os pés no chão, com muita
tranquilidade e sem traumas para ninguém. Tudo foi muito bem estruturado. A
aceitação das crianças na escola foi excelente e das pessoas que trabalham com
meu marido também. Não dá mais para separar a Helen da aviação da Helen da
igreja, uma faz parte da outra.
Estamos
todos felizes e tudo depende de nós como família. Lá em casa há uma divisão de
tarefas. Quando não estou, a nossa filha mais velha já se encarrega de
esquentar a comida para todo mundo. Ela tem 14 anos e meio. Eu procuro
orientá-la nos cuidados que deve ter quando está na cozinha. Às vezes, deixo
comida pronta no congelador, outras na geladeira mesmo. Sou eu quem
cozinha.
Importância do trabalho
Acho que o meu trabalho na aviação é muito
importante. Com ele também ajudei muito a minha família. Uma vez, pensando em
parar de voar, cheguei à conclusão de que seria uma atitude egoísta da minha
parte. Se eu deixasse de fazer o que estou fazendo, muitas pessoas sofreriam as
consequências. Tenho condições de continuar trabalhando e devo trabalhar porque
só faço o bem. Não estou trabalhando para enriquecer, aumentar meu patrimônio
ou para achar que sou mais importante que os outros. Estou aqui para servir,
para ajudar. É uma forma de ver as coisas.
Hoje
eu tenho três filhos e uma preocupação especial com eles, que precisam muito de
mim. Mas também, através do meu trabalho, posso ajudá-los muito. Meus filhos
têm o maior orgulho de mim e falam de boca cheia que eu sou “Comissária de Voo”.
As meninas, volta e meia, falam que um dia querem ser comissárias. Eu, por
enquanto, dou a maior força para elas e digo: “Ótimo!”
Sempre
mostrei o lado bom das coisas e nunca falei mal do meu ambiente de trabalho. O
máximo que posso fazer é reclamar que estou cansada, mas com um bom repouso eu
me refaço. Quando chego, procuro descansar primeiro, para depois poder
desempenhar melhor as minhas funções de dona de casa e de mãe.
Já
recebi bilhete de meu marido dizendo o que ele pensa do meu trabalho: “Ser
comissária de voo é arte, elegância, trabalho, saudade, segurança, alegria,
cultura e realização.” E de minhas
filhas: “Mãe, eu senti muita saudade de você, eu te amo”.
Com
relação à Empresa, a gente sempre sonha e tem expectativas de melhorar um pouco
no sentido de desenvolver o lado profissional e ver o nosso trabalho mais
valorizado. Acho que é isso que todo mundo espera. Antes de parar de voar
espero sentir mais essa valorização profissional.
Preparação para viajar
Sinto que no dia em que vou viajar fico um
pouco alterada, com um pouco de ansiedade. Isso acontece apenas no dia do voo.
Não sofro por antecipação. Procuro não ficar obcecada, viver em função da
escala de voo, apesar de nossa vida ser direcionada pela escala. Mas não deixo
essa escala atrapalhar minha vida em casa. Sei que vou viajar, mas não vou
ficar todo dia pensando na próxima viagem. Só no dia eu me preocupo com a
aquele voo e arrumo as malas rapidinho, pouco antes de sair de casa. Levo uma
hora para me arrumar. Nesse tempo fico pensando nas recomendações que tenho que
deixar em casa, as ordens que têm que ser cumpridas, o que eles têm que fazer
na minha ausência. Na hora em que estou indo para o aeroporto, meu marido me
pergunta se tenho alguma recomendação especial. Sempre que possível, ele me
leva para o aeroporto. Quando morávamos no Rio de Janeiro ele sempre me levava,
mas agora que moramos em São Paulo nem sempre o horário de trabalho dele permite.
Carrego livros para ler e alguma coisa de casa que lembre a minha família, como
fotografias, por exemplo.
Pernoites
Em
alguns pernoites procuro descansar. Em outros, mais longos, procuro me ocupar,
leio jornais, revistas, livros, tenho meus momentos de oração e conversa com
Deus. Não fico pensando nas coisas em casa. Sempre tenho coisas na mala para
fazer. Não considero os meus pernoites como perda de tempo. Acho que estou aqui
por uma razão especial, pois tudo tem sua razão de ser. Mesmo tendo muitas
coisas para fazer em casa e tendo que ficar aqui parada dois dias, procuro
aproveitar, fazer algum passeio, levar alguma coisa daqui para casa, nem que
seja do supermercado. Sempre levo coisas para casa, mas meus filhos não
perguntam o que eu trouxe, na minha chegada. Fui acostumando-os: se um precisa
de tênis é para ele que vou levar. Os outros não podem chorar porque não
ganharam. Às vezes, só abro a mala no dia seguinte. Eles não ficam me cobrando.
Problemas de saúde
A nossa saúde é muito importante e precisamos nos cuidar
porque a aviação mexe muito com nosso organismo. Acho que somos muito expostos,
que corremos riscos de complicar nossa
saúde em função das oscilações de temperatura, fusos horários,
alimentação, noites sem dormir. Sem dúvida, nossas condições de trabalho são
prejudiciais à nossa saúde. E há também a questão do desgaste familiar.
Às
vezes, penso que sou diferente das outras mulheres da aviação porque procuro
não tornar as coisas mais difíceis. Procuro sempre ver o lado bom e positivo
das coisas, procuro não me estressar. E isso me faz bem. Acho que ter uma
estrutura familiar estável é muito importante. Deve ser uma vida bem difícil a
da mulher da aviação que tem filhos e tem de administrar tudo sozinha. Mal
chega em casa e logo precisa sair correndo para pagar contas, resolver outros
problemas etc.
Em
relação às pessoas que enfrentam o trânsito todo dia, como mulheres que
trabalham fora ou aquela profissional que está fazendo carreira, acho que nós
não estamos em desvantagem. Talvez ela ganhe porque tem as noites bem dormidas.
Neste sentido, o nosso desgaste é maior.
Imagem da Comissária de
Voo
Acho que a Comissária de Voo é uma heroína,
por conseguir administrar essa vida, deixar a família para trás, cumprir a sua
escala de voo até o fim. Enfrentar
atrasos e passar para o passageiro a ideia de que isso é a coisa mais natural,
embora também esteja muito ansiosa para chegar à sua casa. Não é qualquer um
que aguenta isso. Acho que somos diferentes e mesmo as pessoas nos olham de uma
forma diferente. Ou com admiração, ou cheios de indagações, com vontade de
descobrir nossos segredos. Mas acho que somos realmente pessoas especiais.
Na hora em que as portas do avião se fecham,
tenho consciência de que me foi confiada muita responsabilidade e que devo
desempenhar a minha função da melhor forma possível. Considero o meu trabalho
muito importante e procuro passar para o passageiro essa imagem de segurança,
ou faço-o saber que estou ali para cuidar da sua segurança e do seu bem-estar.
Benefícios da profissão
A
aviação nos faz amadurecer, nos abre os horizontes e nos torna independentes. O
meu mundo era muito pequeno e aos poucos foi crescendo. Fui conhecendo lugares
os quais eu nunca tinha imaginado conhecer. Não sonhava conhecer o Japão e, de
repente, eu estava indo para lá, tirando um fininho da Rússia, fazendo escala
no Alasca, em Anchorage, para abastecer. Foi uma experiência incrível! A
própria experiência com a cultura japonesa
acrescentou muita coisa em minha vida. Isso sem falar nos voos para a Europa e Estados Unidos. Hoje esse
mundo maior faz parte da minha realidade.
As
pessoas geralmente vibram quando vou viajar. É como se viajassem comigo.
Participo quando me perguntam. Não digo que vou viajar (sugestão do meu
marido), digo que vou trabalhar. Mas o meu destino é Paris, Nova York, e isso
faz a diferença. As pessoas que conhecem meu trabalho, minhas idas e vindas,
vibram comigo, ficam felizes em saber das coisas. De vez em quando, divido
algumas experiências com elas, conto com quem eu tive a oportunidade de estar,
de conversar. Quando são pessoas famosas, elas se alegram.
Penso
muito no que a minha filha falou da professora de história: “ela me faz
viajar”. Fiquei pensando sobre isso!
Como ela consegue viajar nas aulas de história?! A professora que nunca foi à
Grécia, nunca viajou, mas gosta do que faz, consegue transmitir isso às
crianças. Então, eu que viajo, quero passar isso para as pessoas, permitir que
elas viajem comigo, mesmo que seja só na imaginação. Sentir por onde andei, as
coisas que vi, falar da minha experiência.
Não fiquei apenas trabalhando a noite toda ou dormindo no quarto do
hotel. Eu andei pela cidade, vi coisas diferentes.
Expectativas, planos para
o futuro
Até pouco tempo atrás eu não tinha muita
expectativa em relação ao futuro. Acho que não deixei de fazer nada em função
da aviação. Mas também penso que me acomodei, que deveria ter continuado a
estudar e fazer outras coisas. Sempre participei muito da igreja, na parte da
assistência social, até mesmo antes de casar. Tenho três irmãos que se formaram
em Teologia, que trabalham como pastores. De uma forma ou outra eu os ajudei,
dando apoio financeiro. Tenho um irmão que fez administração de empresa e hoje
é gerente de banco, mas é muito ativo dentro da igreja. Toda a família é muito
voltada para a igreja e essas afinidades ajudaram muito no meu casamento e na
minha vida.
*Helen,
(pseudônimo) estava com 45 anos e tinha 24 de
voo, quando concedeu esta entrevista em um pernoite na cidade de Copenhague,
(Dinamarca), em 1997.
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