Isabela*
Nasci no Rio Grande do Sul. Meus pais tiveram três filhas. Eu era a
mais nova e tinha apenas três anos de idade quando minha mãe faleceu. Meu pai
casou novamente e proibiu a família de minha mãe de nos procurar. No início eu
e minhas irmãs fomos para uma escola internas. Depois fomos morar com meu pai e
a madrasta, mas logo depois as minhas irmãs foram morar com nossas tias. Eu
queria ficar com minha madrinha, mas meu pai não permitiu. Minha madrasta me
maltratava muito. Uma vez, quando tinha nove anos, nós brigamos e eu saí de
casa. Então me mandaram novamente para o internato. Fiquei lá até os 13 anos.
Nas férias ia para a casa de familiares.
No internato, que era um colégio de freiras, havia as alunas que
pagavam, as que estudavam com bolsa de estudo e as asiladas. Havia muita
discriminação por parte das freiras. As asiladas faziam faxina, lavavam as
roupas e eram maltratadas. Eu estudava com bolsa de estudos e procurava proteger
as asiladas. Elas eram discriminadas no uso do dormitório e do refeitório. Isso
me incomodava e eu procurava defendê-las. Só não fui expulsa porque a madre
superiora gostava de mim.
Aos 13 anos fui morar com uma
tia. Meu pai não mais se opôs e sumiu de nossas vidas. Depois ele também se
separou da madrasta. Na cidade onde eu morava com minha tia, além da escola das
freiras, só tinha escola noturna. Como não queria mais estudar em escola de
freiras, fui estudar na escola noturna, onde os estudantes, na sua maioria, eram
adultos. Foi uma experiência interessante, mas não foi fácil conviver com minha
prima. Ela era filha única e oito anos mais velha. Eu era mais extrovertida, gostava
de sair e dançar, mas só podia sair se ela fosse junto. Mas ela não queria sair
comigo.
Mudanças,
primeiros trabalhos
Aos 17 anos, fiz amizade com a costureira, com quem aprendi a costurar
e acabei indo morar com ela. Minha tia ficou chateada, mas acabou concordando.
Naquela época eu cursava o Clássico, à noite, em São Leopoldo. Não cheguei a
terminar o curso porque comecei a trabalhar como vendedora de livros numa
editora. Como vendedora eu precisava viajar e não dava para conciliar os
estudos. Então, fui morar em Porto Alegre num pensionato que ficava no centro
da cidade. As outras garotas que moravam no pensionato também tinham vindo de
cidades do interior, à procura de emprego. Para sobreviver, muitas delas
acabavam se prostituindo. Quando mudei para o pensionato já sabia da fama do
lugar, mas era o que eu podia pagar com o que eu ganhava na época. Eu não me
importava com o que as outras faziam. No pensionato conheci uma moça que se
tornou minha amiga e entrou para a aviação comigo.
Aos 20 anos consegui um emprego no escritório de uma empresa e comecei
a estudar inglês à noite. Foi nessa época que comecei a namorar. Até então,
estava envolvida em trabalhar e ganhar o meu sustento. Não gostava de trabalhar
no escritório e ficava procurando outro trabalho nos anúncios dos jornais. Um
dia fui visitar a madrinha da minha irmã mais velha, cujo marido trabalhava na
Varig. Ele disse que as inscrições para candidatas a aeromoças estavam abertas
e eles perguntaram se eu não queria fazer os testes.
Aviação
Desde pequena, sempre tive vontade de ser aeromoça. Mas, naquela época,
o emprego era mal visto. Diziam, por exemplo, que se a aeromoça não dormisse
com o comandante ela perdia o emprego. Por isso deixei de lado. Meu avô, pai do
meu pai, foi um dos fundadores da Varig. Ele era jornalista e foi ele quem
redigiu a ata de fundação da empresa. Meu pai viajava bastante e era um dos que
falavam mal da profissão. Lembro-me de quando o Caravelle chegou a Porto
Alegre. Nós éramos pequenas e fomos numa excursão da escola até o aeroporto para
ver o avião chegar. Achei uma beleza ficar vendo o avião de longe e lembro que
ele fazia muito barulho. Fiquei muitos dias sem dormir direito por causa desse
passeio.
Tinha uma moça da cidade que
era aeromoça e de vez em quando ia visitar os familiares. Eu ficava olhando de
longe num misto de admiração e inveja. Tinha vontade de ir conversar com ela e
perguntar muitas coisas, mas não tinha coragem. Minha família e os vizinhos
nunca me incentivaram. Nesse dia, na casa da madrinha de minha irmã, eles me
disseram que aquela história da aeromoça ter que dormir com o comandante não
era verdadeira. Então me animei e fui fazer os testes. Eu era muito magra, me
mandaram ganhar um pouco de peso e esperar mais um tempo até completar 21 anos.
Meu pai não quis assinar a autorização. Ele não fazia nada por mim.
Aos 21 anos voltei à Varig com uns quilos a mais e passei nos testes.
Depois viajei para o Rio de Janeiro, onde fiz o Curso de Comissários. A viagem
foi maravilhosa! Eu nunca tinha entrado em um avião na minha vida. Fomos de
Electra e fiquei até um pouco assustada quando nos aproximamos do Aeroporto
Santos Dumont. Nessa época eu estava noiva. Meu noivo era bancário e havia a
possibilidade de conseguir transferência para o Rio de Janeiro. Eu gostava
muito dele, sentia muita saudade e foi muito difícil ficar longe, mas ele me
dava a maior força e dizia que logo estaríamos juntos.
Durante o curso, fiquei hospedada num hotel com uma colega de quarto
com quem eu não tinha muita afinidade. Mais tarde fiquei com outra colega e
somos amigas até hoje. Terminei o curso e comecei a voar. Nos pernoites em
Porto Alegre eu me encontrava com meu noivo. Como ele não conseguiu a
transferência, começou a ter muito ciúme de mim. Não queria nem me ver de
uniforme. Pedia que eu trocasse de roupa no toalete do aeroporto e ficava me
esperando lá fora. Eu também não podia falar de aviação. Às vezes, a minha irmã
e o meu cunhado iam me esperar no aeroporto e iam jantar com a gente. Eles
faziam perguntas e o meu namorado ficava chateado. Um dia ele perdeu a paciência
e me deu um beliscão. E me pediu para escolher entre ele e a aviação. Escolhi a
aviação.
Adaptação
à nova vida
Não tive problemas para me
adaptar à nova vida. Talvez pelo fato de ter morado em muitos lugares
diferentes. Fiquei baseada em São Paulo e fui morar numa república, no
apartamento de uma senhora. O marido dela era copiloto e ela tinha um salão de
beleza no aeroporto de Congonhas. Eles alugavam o apartamento para cinco
aeromoças. Três eram da Varig, uma da Vasp e uma da Transbrasil. Depois de
algum tempo consegui alugar um apartamento para mim. Foi a realização de um
sonho. Consumia muito do meu salário, mas era o meu teto, a minha privacidade.
Quando fui morar no Rio de Janeiro também fiz questão de continuar morando
sozinha.
Passei muitos anos sem contato
com minha família. Tenho muitas amigas, mas com minhas irmãs eu não tinha muita
afinidade. Não gostava de morar em São Paulo e me adaptei com facilidade ao Rio
de Janeiro. Na base São Paulo tinha pouca folga, viajava bastante e me distraía
com os voos. Não tinha tempo para me relacionar com os paulistas. Minha
convivência maior era com a síndica do prédio onde eu morava, com quem
conversava de vez em quando. A empresa já estava tentando nos transferir para o
Rio, com a chegada do B-727. Na época eu não aceitei a transferência porque
namorava um colega da aviação. Depois o relacionamento começou a ficar
complicado e eu aceitei a transferência. Era uma maneira de fugir do problema.
Problema
com a chefia
Uma vez, ainda na base de São Paulo, tive um problema com a chefia. Fui
fazer reserva no aeroporto, mas não estava me sentindo bem. Eles queriam me
acionar para um voo e eu disse que não podia ir, que ia para casa por não estar
me sentindo bem. Era um domingo e, mesmo assim, procurei o serviço médico.
Deram-me três dias de licença. No terceiro dia, recebi um telegrama solicitando
meu comparecimento na chefia. Cheguei lá e recebi uma suspensão porque tinha me
recusado a fazer um voo. Apresentei o atestado médico e o chefe da base falou:
“Eu sei como são essas coisas. Vocês são boazudas e conseguem o que querem”.
Na época, era inexperiente e depois que assinei a suspensão me deu um
acesso de fúria e pedi demissão. Ele não aceitou. Disse que eu estava nervosa.
Aí peguei um ônibus e fui até a chefia no Rio de Janeiro com um relatório de
três páginas botando todos os podres para fora. Tenho esse relatório até hoje.
O chefe da base de São Paulo era um ditador e tinha muito preconceito contra as
comissárias. Depois disso, eu e outras colegas fomos transferidas para o Rio.
Casamento,
filhos, afastamento e retorno ao voo
Antes de ir para a base Rio, já conhecia meu atual marido. Éramos
apenas amigos quando eu estava na Base de São Paulo. Começamos a namorar depois
que ele pediu transferência para o Rio de Janeiro. Eu morava sozinha num
apartamento alugado no bairro do Flamengo e ele foi morar com um colega em
Copacabana. Às vezes, quando ia ao apartamento deles, via aquela bagunça e
começava a arrumar, mas ele ficava constrangido. Então arrumei uma empregada
para eles. Algum tempo depois resolvemos
morar juntos em Copacabana. Mais tarde, compramos um apartamento na Ilha do
Governador e nos mudamos. Estamos juntos há 21 anos.
Meu marido é engenheiro de voo
e naquela época trabalhávamos no Boeing 707. Para voar juntos, muitas vezes,
tínhamos que trocar voos com colegas. Uma vez ficamos três semanas sem nos
encontrar. Finalmente nos encontramos em Nova York. Ele foi trabalhando num voo
cargueiro e eu num voo de linha. Justamente nesse encontro eu engravidei. Foi
uma gravidez sem planejamento, mas resolvemos assumir o filho e nos casamos. Fiquei
sabendo que estava grávida porque sofri uma ameaça de aborto, um mês e pouco
depois. Então entrei de licença médica. Fiz exames de ultrassonografia para
acompanhar o desenvolvimento da criança e quando constatamos que estava tudo
bem, levei a gravidez adiante. Fiquei de repouso e só voltei para o voo quando
meu filho tinha três meses.
Quando retornei, o meu primeiro voo foi para a Suíça e fiquei quase uma
semana fora de casa. Foi um castigo para mim. Não tive estrutura para segurar a
barra. Comecei a ter medo de morrer e deixar meu filho sozinho. Não queria que
ele passasse o que eu passei sem a presença da mãe. Comecei a associar o voo
com a morte. Além disso, a minha empregada tinha perdido um filho e se apegou
muito ao meu. Comecei a ter medo que ela o sequestrasse e sumisse com ele.
Quando eu chegava de voo, ela falava claramente para mim: “Lá vem ela pegar meu
filho”. Comecei a ficar em pânico. Não queria largar o voo e tinha medo de
perder meu filho. Começou a dar um nó na minha cabeça. Quando eu chegava do voo
eu o assumia completamente. No início, o problema era com a empregada, depois
fiquei com medo de morrer. Ainda voei algum tempo, mas a depressão e o pânico
aumentaram.
Um dia, eu tinha um voo para Madri e o meu marido, que estava de sobreaviso,
pegou o mesmo voo. Eu não falava do meu pânico para meu marido, pois sabia que
ele ia me fazer parar de voar. Nós tínhamos comprado esse apartamento na Ilha
do Governador e eu achava que não conseguiríamos pagá-lo se eu parasse de
trabalhar. Então escondi dele todo o conflito que vivia. Mas nesse voo eu
entrei em pânico. Achei que nós dois íamos morrer e que nosso filho ia ficar
sem pai e sem mãe. Cheguei a deixar uma carta para minha irmã explicando o que
queria que fosse feito, caso alguma coisa nos acontecesse. Quando me ausentava
para trabalhar, o sentimento de culpa era enorme.
Nesse voo para Madri, com meu
marido a bordo, não consegui me segurar. O avião começou a correr na pista e eu
me descontrolei achando que ele não ia conseguir decolar. O chefe de Equipe
chamou meu marido, falou o que estava acontecendo e disse que estava na hora de
me tirar do voo. No pernoite, meu marido me disse que eu ia ter que pedir
demissão. Falei dos meus receios de não poder pagar o apartamento e ele me fez
ver que isso não seria o problema. Quando voltei do voo fui falar com a chefe
das Comissárias, Dona Lilian, e pedi demissão. Ela não concordou e disse que eu
não era a primeira nem seria a última a passar por essa situação. Como eu era
casada, se pedisse demissão não iria conseguir voltar para o voo depois. Então
ela me encaminhou para o serviço médico da empresa. Eu, realmente, não queria
mais continuar na profissão. Mas o médico achou melhor me afastar do voo e fiquei
naquela situação de INPS, fazendo exames a cada três meses. Nesse meio tempo
nasceu a minha filha.
Sempre soube que não tinha
vocação para dona de casa e comecei a alimentar a ideia de trabalhar de novo,
mas para isso precisava ter alta do INPS. E eles não me davam alta, diziam que
eu ia me aposentar. Na época, estava com trinta e dois anos e não queria me
aposentar. Não queria mais voar, mas queria trabalhar. Como estava morando na
Ilha do Governador, achei que seria bom trabalhar no aeroporto do Galeão.
Seriam seis horas de trabalho, perto de casa. Finalmente, com dois anos e meio
de afastamento, eles cassaram minha carteira da aeronáutica e fiquei sem
habilitação para voar.
Quando minha filha estava com quase dois anos, comecei a sentir vontade
de voltar para o voo. Já estava afastada há quatro anos e meio. Fiz essa
comunicação ao meu marido e ele achou que eu tinha enlouquecido. Aí fui atrás
do que queria. Fiz requerimento à Junta Superior de Saúde, da Aeronáutica, que
tinha me tirado do voo, e o requerimento foi indeferido. Então fui ao gabinete
do Brigadeiro, presidente da junta, e fiquei lá de plantão até ele me atender.
Falei que queria uma chance, que me deixassem fazer todos os exames e então, se
eu realmente não tivesse condições, que não me deixassem voltar. Ele respondeu
que ia deferir o requerimento, em função da minha teimosia, mas que eu iria
fazer todos os exames e outros mais.
Confesso que achei que não ia conseguir, mas tentei. Num belo dia,
recebi o telefonema para ir buscar minha carteira de volta. Voltei para a
aviação e pedi para ficar voando no B-707. Na época tinham chegado os Air Bus e
a gente voava nos dois equipamentos. Voava-se muito, mas dormia-se em casa
quase todas as noites. Só tinha um voo para Miami com três dias inativos e eu
sempre encontrava alguém querendo trocar. Queria me adaptar e adaptar minha
família àquela situação de estar trabalhando novamente. A minha filha chorava,
não aceitava as minhas ausências. Foi um período muito difícil.
Até os oito anos de idade minha
filha ainda chorava quando eu saía para voar. Ela falava: “Eu nunca vou
trabalhar quando tiver meus filhos, vou ficar cuidando deles”. Explicava para
ela que a mulher precisava trabalhar, mesmo que a situação financeira da
família fosse boa, para crescer, evoluir, conquistar seu espaço. Eu ficaria
muito triste se ela, no futuro, decidisse ser apenas dona de casa. Se fizesse
isso sua vida seria medíocre. Depois ela começou a falar que queria ser
veterinária.
Agora ela é adolescente, tem 15 anos e ainda não sabe o que quer e se
realmente quer ser veterinária. Até falou que podia ser comissária de voo.
Perguntou se eu ficaria chateada. Eu disse que não e até daria o meu apoio,
pois acho que é uma escola de vida como nenhuma outra. Como complemento da
educação, acho fundamental. Só não gostaria que ela fizesse isso como carreira,
como eu fiz, porque é uma vida bastante sacrificada. A gente sempre quer o
melhor para os filhos.
Meu filho sempre curtiu a aviação, tanto que quer ser piloto, para o
meu desgosto, porque eu não queria filho meu voando. Mas ele quer, foi feito no
dia do aviador, em vinte e três de outubro, em Nova York. Nasceu no dia de
Santos Dumont, em vinte de julho! Eu digo que ele é predestinado. Desde pequeno
sempre falou que quer ser piloto. Já tirou o brevê de piloto privado e está
fazendo as horas de voo. Eu pergunto para ele: “Você quer que a sua família
sofra o que você sofreu com as ausências dos pais, no Natal, nos aniversários,
nas formaturas?”. Meu marido até conseguiu estar presente no dia do nascimento
dos filhos. Mas quantos conseguem isso? Agora meu filho está estudando
Informática e eu rezo que ele se encontre em outra coisa e deixe a aviação de
lado. Mas se for isso que ele realmente quer, vou dar força. Seja como Deus
quiser. Se quiser ser comissário de voo, temporariamente, também apoio.
Foi muito difícil criá-los, pois nem eu nem meu marido temos parentes
no Rio de Janeiro. Nossa empregada é muito carinhosa com eles. Ela mora
conosco, mas tem as amigas, frequenta o candomblé e não abre mão das folgas. Só
agora que meus filhos estão grandes é que eu tenho um pouco mais de tempo para
mim e passei a desfrutar finais de semana com meu marido. Eu queria uma aviação
que me possibilitasse estar mais tempo em casa. Durante muitos anos não soube o
que era folga. Nos dias em que estou em casa procuro compensar a minha
ausência.
Tenho muita amizade com meus filhos. Com a minha filha é até demais.
Nós ficamos conversando até de madrugada. Falamos sobre muitas coisas,
inclusive íntimas. Estou curtindo demais. Eu sentia muita culpa e sempre me
cobrei muito. Hoje vejo que meus filhos estão bem e fico feliz em saber que
andam em companhia de pessoas maravilhosas, de famílias bem estruturadas. Vejo
a minha família muito correta e honesta e isso também me gratifica. Procuro
fazer o melhor e acho que dei conta. Quando parar de voar, vou parar tranquila.
Promoções,
questões profissionais
Não posso reclamar da empresa.
Nunca fui preterida nas promoções. Antes do quadro de acesso entrar em vigor,
fui chamada para ser promovida na frente de meus colegas de turma. Trabalhei no
Jumbo logo que ele chegou, fazendo apenas voos para Nova York e Frankfurt. A
nossa escala de voos era uma maravilha e por essa razão não aceitei a promoção
para o cargo de Supervisora de Cabine no DC-10. Mais importante para mim era
ter mais tempo com minha família.
Quando juntaram as tripulações do Jumbo e do DC-10, fui para a Rota de
Los Angeles. Deixei de lado a promoção para ficar na Rota, pelas mesmas razões.
Quando voltei e resolvi aceitar o cargo, eles me promoveram. E para a posição
de Chefe de Equipe foi a mesma coisa. Como Chefe de Equipe, estou muito
desgostosa. Aguardo alguns acontecimentos e se tudo correr como espero vou
continuar, senão vou entregar o cargo. Sinto-me muito desmotivada. Nunca
estivemos tão mal na empresa como estamos agora, em termos de administração.
Faço meus relatórios e nas poucas vezes que peço respaldo não recebo. Só
recebemos cobranças. E os colegas se afastam quando você passa a ser Chefe de
Equipe. Nos pernoites isso acontece muito.
Sempre trabalhei na primeira classe, como auxiliar e como supervisora.
Isso nos bitola muito. Estou há um ano e meio como Chefe de Equipe. Nos três
primeiros meses achei que ia enlouquecer. Comecei a ficar chocada com as coisas
que aconteciam e que eu desconhecia. Fui com o espírito de mãezona, de
conversas e diálogos, o que sempre fiz com meus filhos. Mas com o grupo de
comissários não funciona. Estou decepcionada! O briefing é necessário:
temos que passar as questões básicas do voo: se apresentar para a tripulação
técnica, vistoriar os equipamentos de emergência, conferir o material do
serviço de bordo etc. Estou aguardando a mudança da Diretoria do Serviço de
Bordo para a Diretoria de Operações para ver como vai ficar. Espero que fique
melhor, pois meu marido é subordinado à Diretoria de Operações.
No ano passado, quando aconteceram aquelas demissões de colegas nossos,
que não participavam do AERUS, eu me envolvi muito. Infelizmente, não pude
participar de assembleias porque sempre tinha voo programado no dia. Mas quando
estava em casa eu arregimentava o pessoal por telefone. Foi um período
horrível! Acompanhei o trabalho dos colegas dentro da chefia e vi o que eles
estavam vivendo lá dentro. Era cômodo para os outros ficarem em lobby de
hotel e no aeroporto malhando o trabalho dos colegas na chefia. Mas eu ia lá e
sabia o que eles estavam passando. Eles também não tinham respaldo.
Espero reconhecimento
profissional, espero ser ouvida antes de ser punida. Há dois anos tive uma
ameaça de suspensão e perda do cargo de supervisora por um relatório mentiroso
de um escalador que estava em Miami. Eu, simplesmente, não fui chamada para ser
ouvida. Entregaram-me a carta de suspensão com termos horríveis. Eu me recusei
a assinar. Só então resolveram me ouvir. Não sou de apanhar calada, muito menos
quando sou inocente. O grupo de comissários é totalmente diferente do grupo dos
técnicos e o atual diretor do Serviço de Bordo não me inspira confiança. Ele
passa a impressão de ter raiva de comissários.
Escala
de Voo
Com essa ditadura que reina na Escala de Voo, nós vivemos injustiças e
desumanidade. Não temos tempo para organizar nossa vida e pedir folga com
antecedência. A formatura de segundo grau do meu filho seria em novembro, mas
quando eu soube da data já não podia mais pedir folga. Na minha escala saiu um
voo com três dias de pernoite e eu não consegui trocá-lo com ninguém. Meu
marido também não conseguiu trocar o voo e nós não fomos à formatura do nosso
filho. Minha filha, a empregada e um casal de amigos é que foram à formatura.
Meu filho não é muito de falar de seus sentimentos, mas eu sei que ele sentiu
nossa falta.
Naquele dia pensei em apresentar um atestado médico. Mas mesmo depois
de vinte e cinco anos de voo ainda não tenho coragem de fazer isso.
Afetivamente eu estava doente, mas tenho que estar muito mal fisicamente para
ir ao médico.
Imagem
da Comissária de Voo, cantadas
É fundamental que a pessoa que trabalha com o público tenha uma boa
apresentação pessoal e saiba separar os problemas pessoais. Quando visto o
uniforme (a fantasia) procuro não deixar transparecer os problemas que deixei
em casa. Mau humor não cabe no exercício de nossa profissão, mesmo que
trabalhemos com alguém que detestamos. Comissário de voo deve ter desprendimento
e alto profissionalismo.
Acho que algumas pessoas fantasiam muito a nosso respeito. Até hoje
pintam algumas cantadas, mas nunca me senti agredida. Cartões com telefone,
cartãozinho com elogios do tipo: “Seus olhos e seu serviço são de primeira
classe, se puder lhe ajudar em alguma coisa, faça-me saber”. Isso faz bem ao
ego.
Arrumação
das malas, pernoites
Muito do espaço da mala, ocupo com manuais de speech e documentação.
Sou muito prática e rápida para arrumar as malas. Apenas não gosto da indefinição
da meia estação, pois tenho que levar muito mais roupas. Nos países em que
pernoitamos, procuro passear pelos arredores, em excursões, com colegas ou
sozinha. Mas há muitos lugares que não conheço para evitar despesas, pois a
criação e a educação de meus filhos vem em primeiro lugar.
Fiquei apenas quatro meses trabalhando na rota para o Japão, nos quatro
meses do meu baseamento em Los Angeles. Os voos eram curtos e apenas um deles
tinha um dia inativo. Nos pernoites em Narita, longe de Tóquio, não dava para
fazer nada. Acabei não passeando, não conhecendo quase nada. Em compensação,
achei ótimo ir para lá e só levar a mala pequena.
Passageiros
famosos
Já viajei com muita gente famosa. O Airton Senna era uma graça de
pessoa. Ele viajou comigo muitas vezes. Até me chamava pelo primeiro nome. Era
uma pessoa muito educada, discreta e até tímida. Vestia o agasalho, comia muito
pouco, lia a Bíblia e dormia. No café da manhã, pedia frutas. As pessoas pediam
autógrafos, ele dava, tirava foto junto. Uma vez sentou uma moça muito bonita
do lado dele, mas eles não trocaram uma palavra. O Delfim Neto, quando era
ministro, também viajou na primeira classe. Chamou a nossa atenção porque ele
usava um tigrinho na orelha.
Minha grande decepção foi viajar com a Tina Tunner. Eu era fã dela, mas
quando ela viajou comigo, caiu o pano. Ela não falava com ninguém. Ficava
sentada na poltrona junto à janela, com o guarda-costas do lado. Quando
oferecíamos alguma coisa, ela virava o rosto e era ele quem respondia. Ninguém
podia chegar perto, nem na fila do banheiro. Achei-a muito antipática. Outras
pessoas famosas, aqui no Brasil, se comportam do mesmo jeito.
Atividades
paralelas
A gente precisa juntar parte da diária para reforçar o orçamento. Nunca
fui uma grande comerciante, não levo jeito e meu marido não gosta. Houve uma
época em que as coisas eram mais fáceis e eu fazia transportes para os colegas.
Nunca fiz nada fora da lei, sempre passei na bancada com as coisas dentro da
mala. Nunca trouxe coisas que não eram permitidas. Só bobagens tipo óculos,
cosméticos e bijuterias para agradar a mulherada.
Questões
de saúde
A aviação interfere na saúde
dos tripulantes, principalmente da mulher. Posso dizer que sou uma vítima. Tive
menopausa precoce e depois de junta médica e vários estudos, a conclusão foi no
sentido de que a aviação pode ser a causa do problema. No tratamento da
menopausa nós repomos os hormônios que causam o envelhecimento precoce. Mas
acontece que a reposição piora a osteoporose. Tenho osteoporose e preciso fazer
um controle muito grande da densidade hormonal. Faço reposição local, com
cremes. Tenho que tomar cálcio, tenho que tomar sol todo dia. Mas nem sempre
consigo pegar o sol para fixar esse cálcio no organismo.
Consultei uma médica especialista por causa da osteoporose. Ela disse
que eu era a terceira mulher da aviação que fazia os exames com ela. As outras
pessoas eram do sexo masculino e estavam com osteoporose bem acentuada na
coluna. Ela acrescentou que a osteoporose era uma doença de mulher e de
astronautas. Levei o resultado da densitometria ao Cemal para ficar registrado
na minha ficha, porque a recomendação que tenho é a de que não devo levantar
peso porque posso sofrer uma fratura na coluna e ficar paralítica. Também levei
o resultado ao serviço médico da Varig. O médico ficou irritado e disse que o
que a médica tinha falado era uma bobagem.
A aviação também me trouxe uma violenta sinusite. O médico da empresa
detectou a sinusite, mas não me comunicou. Mais tarde foi que fiquei sabendo.
Uma cirurgia pode ajudar na melhora, mas o problema sempre volta. Quando fico gripada,
sinto muita dor de cabeça e nos seios da face. Se estou em casa, quando fico
gripada, fico de repouso. Mas se estou no pernoite e tenho que enfrentar o voo
da volta, a minha situação fica pior. Sinto que já estraguei muito da minha
saúde por causa do voo.
Psicoterapia
Fiz psicoterapia analítica por cinco anos e foi muito bom. Comecei há
uns sete anos atrás, antes de completar quarenta anos, justamente quando a
mulher começa a se questionar sobre a vida que está levando. Foi muito bom e eu
aconselho esse tipo de terapia para todas as pessoas. Existe um tabu muito
grande de que só os loucos procuram o analista. Para mim é como ir ao dentista.
Infelizmente é uma terapia cara.
Estresse
profissional
Nossa profissão é muito
cansativa. Quando chego de um voo no MD-11 o meu cansaço é maior. Meu marido
escreveu no Informativo Dia a Dia, um artigo que explica esse cansaço
que nós sentimos nesses aviões mais modernos, que gastam menos combustíveis,
como o B-747, o MD-11 e o B-767. Logo após a decolagem eles já ficam numa
grande altitude e provocam esse estado de cansaço. Outras vezes o cansaço vem
de “manias” que temos que aguentar até de comandantes muito “estrelas”. A vida
é tão simples, mas as pessoas complicam e já não tenho mais paciência para
esses aborrecimentos. Talvez por isso esteja pensando em parar de voar. Também
acho que estamos ganhando muito pouco para a vida que levamos e o estresse que
vivemos.
Aposentadoria
e planos para o futuro
Acho que a comissária de voo pode trabalhar até os 55 anos, se estiver
bem de saúde. Aquelas que começaram a voar aviões a jato tiveram um desgaste
bem maior, pois esses novos aviões, que voam em atitude maior, afetam mais a
saúde. O tempo de aposentadoria para elas deveria ser menor. Acho necessário
que se faça algum estudo em cima deste assunto, mesmo que o resultado demore.
Por outro lado, quem consegue viver com a aposentadoria do INPS?
Eu não me vejo voando até os 55 anos porque tenho alguns problemas de
saúde. No máximo, espero chegar até os cinquenta e dois e assim conseguir 70%
da aposentadoria do AERUS. Mas tem também o fator psicológico, em função da
desmotivação em que estou vivendo, da escala horrível e da remuneração
insuficiente.
Acho que tudo valeu e que faria tudo de novo, mas está na hora de
amadurecer a ideia de parar de voar. Estou começando a pensar nisso. Se tiver a
oportunidade de ir para o baseamento de Los Angeles seria muito bom e eu me
aposentaria ao voltar. Iria para economizar dinheiro e proporcionar um bom estudo
para o meu filho. Este seria o objetivo principal, pois não posso ficar sem
trabalhar enquanto meus filhos não estiverem formados. Gostaria de fazer uma
economia para manter minha filha na faculdade até ela se formar. Esse é o sonho
que quero realizar.
Depoimento do marido de Isabela:
Sou tripulante técnico, engenheiro de voo,
mas acompanho muito de perto a experiência profissional de minha esposa. Nós
estamos casados há mais de 20 anos e posso falar com segurança: Não é uma
profissão para se ganhar dinheiro, pois vocês comissárias ganham pouco, mas
acho que é uma das melhores profissões que existe para o desenvolvimento
cultural e intelectual da mulher. Ela se torna independente, aprende a
enfrentar qualquer parada.
Por outro lado, é uma profissão
muito cansativa, pois a mulher paga um preço muito alto. O desgaste físico é
muito grande por causa do ar da cabine, que é comprimido e vem do ar quente dos
motores. Este ar passa por um sistema de refrigeração que tira toda a sua
umidade, depois o joga para dentro do avião onde é controlado por válvulas. A
qualidade desse ar é ruim. Trabalhar num ambiente assim prejudica a saúde. A
altitude de cabine é muito elevada e são os comissários que desenvolvem
atividade física lá dentro. A oxigenação é pequena e o desgaste físico é muito
grande. Para os tripulantes técnicos o voo não afeta muito porque não temos
esse desgaste físico e o ar da cabine de comando é um pouco melhor.
Participei, inclusive, na formação do AERUS e
fui uma das poucas pessoas que achou que deveria haver diferenciação no tempo
de aposentadoria para homens e mulheres. Eu achava que as mulheres deveriam se
aposentar aos 50 anos e os homens aos 55, mas ficou decidido que a
aposentadoria seria igual para homens e mulheres, aos 55 anos. Hoje eu acho que
é uma profissão para se ficar no máximo dez anos.
A profissão é muito bonita, mas o tempo
exigido para se aposentar deveria ser menor. A questão da qualidade do ar na
cabine dos aviões deveria ser usada como argumento para se reivindicar menos
tempo de trabalho e mais tempo de descanso e até alterar a regulamentação
profissional específica para os comissários. Ter mais dias de folga após os
voos, para que o organismo possa se recuperar do desgaste de cada viagem. Seria
importante não fazer voos seguidos para lugares de fusos muito diferentes.
*Isabela (pseudônimo) estava com 47 anos e tinha 25 de
voo quando concedeu esta entrevista em sua residência, no Rio de Janeiro, em
1996.
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