quinta-feira, 10 de julho de 2014

Lila

Lila*

Minha mãe é descendente de austríacos. Eles vieram durante a primeira guerra mundial quando a cidade de Trieste, onde moravam, foi tomada pelos italianos. A família de meu pai era portuguesa e tem um sobrenome que é um termo náutico e quer dizer “nuvens negras que vêm antes das tempestades”. Meu avô paterno era jornalista.  Comprou um jornal de esportes e tinha uma vida folgada.
Nasci no Rio, mas eu vivia indo e voltando para a Europa. Estudava na Inglaterra em colégio interno, enquanto ficava aos cuidados da minha avó materna que morava na França. Fui alfabetizada em português, inglês e francês. Nasci nove meses depois do casamento de meus pais. Minha mãe tinha 23 anos e meu pai 26. O apartamento deles ainda não estava pronto e eles tiveram que ficar morando uma temporada com os meus avós. Fiquei morando com minha avó até os 13 anos, quando ela faleceu.
Relação difícil com os pais
Depois da morte da minha avó, vim morar com meus pais. Sempre fui diferente, quase não tinha amigos, por causa dessa história de ficar pra lá e pra cá. Como eu era grandona, todos os meus amigos eram mais velhos e minha mãe não me deixava sair com eles. Eu achava aquilo um absurdo! Aos 15 anos eu saí de casa e fui morar com uma tia, pois a minha convivência com meus pais estava muito difícil. Antes de ir morar com minha tia eu já tinha saído de casa e tinha morado com uma amiga num apartamento alugado em Ipanema. A mãe dela é que alugava o apartamento. Ela era bem mais velha do que eu, devia ter uns 19 anos. Passei uns quatro meses fora de casa. Mas morar com minha amiga deu certo até acabar o meu dinheiro.
Primeiros trabalhos, amigos
Comecei a trabalhar aos 15 anos como secretária da América Fabril, uma fábrica de tecidos. Foi então que comecei a ter vida social, porque antes tudo era temporário e passageiro: Em Londres, onde estudava, eram as questões ligadas ao colégio e coleguinhas. Em Paris, onde minha avó morava, eram os passeios, as festas, o teatro. No Brasil eram as férias, onde eu passava o verão e tudo era uma maravilha. Tive uma vida ativa, mas sem deixar rastros. Eu tinha amigas estrangeiras, cujos pais tinham uma vida meio nômade e elas moravam aqui no Brasil. Só comecei a ter amigos brasileiros depois que entrei na aviação.
Trabalhei em Congressos e como modelo, trabalhei em filmes publicitários e em recepção de hospital. Fui disk- jóquei, trabalhei em rádio. Cheguei a ter um programa na rádio Continental, com músicas americanas, blue, jazz. Na rádio eu ganhava pouco, mas era um bom trabalho porque gravava dois programas num dia e o programa passava de madrugada. E ganhava convites, discos...
Aviação
Com 17 anos me inscrevi na Varig. Eu já estava morando novamente com os meus pais. Meu pai disse que jamais assinaria a autorização para eu entrar na aviação, então ameacei sair de casa de novo. Ainda era muito arteira e gostava de sair à noite, ir à discotecas... Meus pais pensavam que eu ia dormir, mas eu dava um jeito de sair pela porta de serviço, sem que eles percebessem. O dono da discoteca Girau era meu amigo e por intermédio dele conheci um rapaz que trabalhava na aviação. Achei interessante o trabalho dele e foi assim que vim para a Varig.
Curso de Comissários
Entrei para a Varig com 18 anos. Minha turma foi a primeira de 1970 e o cursinho foi ministrado na Associação Cristã de Moços, na Lapa. Lembro que no início do curso o meu pai mandava o motorista me buscar pra gente almoçar junto no Museu de Arte Moderna, que era lá perto. O tititi entre os colegas era que eu tinha um coronel. Durante os três meses de cursinho, o pessoal dizia que eu estava tirando o emprego de quem precisava dele para comer. Eles achavam que eu estava apenas curtindo com a cara deles. Depois, tive que comer no “cai duro” (restaurante dos funcionários da Varig) e tive até uma infecção intestinal. Comi feijão, abóbora e carne seca. Nunca tinha comido essas coisas!
Meus colegas achavam engraçado o meu jeito de ser e falar. Naquela época eu tinha um pouco de dificuldade para falar o português. Uma vez, quando não soube falar “maçaneta”, eu disse “aquilo que abre a porta”. Também se falava muito sobre maconha e eu dizia “E o que tem demais?”. Então, no dia seguinte, falavam que eu fumava maconha.
No final do curso soubemos que nossa turma tinha que ir para a base de São Paulo. Quando entrei na empresa, apresentei uma carta de recomendação do Ministro da Aeronáutica (através de meu pai) e até isso meus colegas souberam. Não queria pedir ajuda ao meu pai, novamente, mas cheguei a pedir que ele fizesse alguma coisa porque eu queria ficar no Rio. Acabei tendo que ir para São Paulo.
Primeiro voo, amor à primeira vista
Em São Paulo, fui registrar a carteira de habilitação técnica no Departamento de Aeronáutica Civil. Lá encontrei um rapaz muito simpático, muito sorridente, que olhou para mim e disse: “Ah, comissária nova!”. Então ele disse que ia fazer o primeiro voo como comandante. Fiquei meio constrangida. Quando fui fazer meu primeiro voo, lá estava ele. Era o comandante do meu primeiro voo e de todos os outros que fiz naquele mês. Depois eu soube que foi ele que pediu para fazer os voos que eu tinha na minha escala.
No mês seguinte eu voltei para o Rio de Janeiro. Estava justamente no voo dele quando recebi a informação de que voltaria para o Rio e vi que ele ficou meio surpreso com a notícia. Falou que eu não podia voltar para o Rio sem conhecer São Paulo e assim me convidou para dar uma volta no Ibirapuera e depois jantar. Sabia que ele era casado e achei que ia jantar na casa dele.
Saímos e então fiquei sabendo que a mulher estava no Rio, esperando neném. Lembro que eu estava com um vestido da Mary Queen e que ele botou a mão na minha perna. Então eu falei: “Olha, eu tenho 18 anos e não vou ser amante de um homem casado”. Aí ele perguntou: “Se eu fosse solteiro você casaria comigo?” Eu respondi que sim.
Naquela época, o pessoal de São Paulo voava no Avro e o pessoal do Rio voava no Electra. Quando voltei para o Rio comecei a voar Electra, direto. Ele me telefonava toda vez que ia para o Rio. Um dia eu estava em Fortaleza e recebi um telegrama com a seguinte mensagem: “Vencemos, venha comigo”! Eu não entendi nada e quando cheguei ao Rio ele falou: “Olha, eu estou levando a Sônia para casa e já estou tratando do desquite. Quero saber quando você vem para São Paulo comigo”.
Ele era uma pessoa muito interessante, foi uma espécie de pai e amigo que eu não tive. Era uma pessoa muito carismática, um gentleman. Ele foi uma pessoa muito importante na minha vida e eu acho que tive a oportunidade de ter essa vivência porque também era uma pessoa diferente. A Liane, que foi de uma turma antes da minha e com quem morei (e sempre acompanhou esse meu relacionamento), me disse: “Se eu fosse você nunca teria coragem de fazer isso”.
Nunca me passou pela ideia casar com um homem que estava largando a mulher. O casamento deles já não devia estar dando certo. Um ano depois nós nos casamos porque a minha mãe insistiu. Acho que foi uma belíssima história de amor e acho que foi amor à primeira vista. A nossa relação foi ótima, foi um presente do céu. Foi uma fase muito boa na minha vida. Se amadurecei e cresci foi graças a ele. Eu não tinha o básico. Ele foi fundamental na minha vida e acho que se sou o que eu sou, devo a ele.
Existem coisas na vida que estão além de nosso controle. Ele morreu de câncer, quando a Samanta tinha cinco anos e a Bianca, um ano e meio. Tive a primeira filha com 20 anos. Não tomei cuidado nenhum e só fui saber que estava grávida no terceiro mês. Foi uma surpresa e ele ficou radiante! Então entrei na água dele. Nunca na minha vida eu tinha pensado em casar e ter filhos. Até pela minha própria história de vida. Lembro que nem sabia segurar a minha filha, logo que ela nasceu. Nunca tinha segurado uma criança antes. Foi ele que me ensinou a trocar fralda.
Primeira grávida oficial na empresa
Fui a primeira grávida assumida, na Varig. Tive uma colega que namorou um comandante, ficou grávida e não quis abortar por motivos religiosos. Pediu licença na Varig e foi vender enciclopédias Barsa para se sustentar. O comandante não assumiu a criança e nós acompanhamos toda aquela história e a ajudamos a fazer o enxoval; isso nos meus primeiros meses de voo.
Quando fui ao Dr. Dias Campos, médico da empresa, ele disse que ia arranjar uma licença, por qualquer outro motivo. Falei que não, que eu estava grávida. Eu podia falar assim porque não tinha que batalhar pelo dinheiro. Se a empresa me mandasse embora, tudo bem, eu ia brigar na justiça. Então falei com o nosso diretor, Sérgio Prates. Ele ficou meio espantado e disse que ia ver como fazer em relação a isso.
Oficialmente, fui a primeira grávida assumida e o Chefe dos Comissários, Sr. Norton, nunca se conformou com isso. Ele dizia: “Sabe quantas grávidas tem aqui?” Até então a empresa não admitia nem queria admitir o problema. As comissárias entravam de licença médica por outros motivos e recebiam aquela miséria do INPS. A partir do meu caso a empresa começou a complementar o salário das que se afastavam por gravidez.
Isso causava um ônus grande para a empresa. Além de ter que suprir o quadro de voo com outra comissária. Quando elas retornassem para o trabalho, o que fazer com elas? Era caro para a empresa. Eles precisavam admitir as mulheres, mas não podiam esterilizá-las. Depois do nascimento da minha filha, pedi licença sem vencimentos por mais um ano.
Nova gravidez, questões domésticas, doenças
Quando eu ia voltar ao trabalho, fiquei grávida da segunda filha. Aí pedi demissão, pois não achei justo com a empresa. Naquela época a gente tinha condições, eu tinha uma governanta que tomava conta de tudo na minha casa. Eu era uma espécie de filha dela. Então era ótimo! Depois ela teve câncer, sofreu cirurgia e nós cuidamos dela.
Colocamos a irmã para trabalhar no lugar, até ela ficar boa. Durante dois anos vivemos essa história. Quando meu marido soube que tinha câncer, ela quis ir embora, disse que não tinha condições de aguentar tudo aquilo. Quando mais precisei, ela foi embora.
Meu marido teve metástase no pulmão. Nós não sabíamos e a doença teve uma disseminação muito rápida. Eu estava representando a Varig num Congresso na Bélgica – a cidade de Liège convidou diversas aeromoças para um evento relacionado com a aviação. A Chefe das Comissárias, Dona Lílian, me chamou e disse: “Estou enviando você porque é única que pode ir desacompanhada”. Então, antes da minha viagem, meu marido reclamou que estava com uma dor estranha. Ele já andava estressado sem motivo especial.
Quando voltei, soube que ele estava fora do voo. Cheguei a pensar que ele queria me fazer uma surpresa. Quando abri a porta de casa, vi que ele tinha emagrecido muito. Estava com um gânglio imenso no pescoço. Ele já sabia o que tinha e disse para eu me preparar para o pior. Foi uma coisa muito louca. No dia seguinte, fomos fazer uma biopsia no Instituto do Câncer e depois do exame os médicos me chamaram e disseram que ele teria uns 10 dias de vida. “Vamos começar a fazer quimioterapia, mas é melhor não falar nada para ele”. Na hora eu achei que ia morrer junto. Aí me dei conta da responsabilidade que tinha com ele. Quando entramos no quarto e ele quis saber o resultado do exame, eu falei: “Esqueça o resultado. Milagre existe e vai acontecer um agora”.
Eu já tinha conhecimento de terapias alternativas e pretendia colocá-las em prática. Ele ainda teve três meses de sobrevida, mas faleceu em 1979. Aqueles três meses foram uma loucura. Eu estava no meio da Faculdade de Direito e interrompi o curso, que só consegui concluir anos depois.
Sempre fiz cursos alternativos. Desde os treze anos, depois da morte da minha avó, eu me interessei pelo estudo da parapsicologia. Também estudei Shiatsu, que é uma terapia um pouco mística que nos joga além do aqui e do agora. Estudei hipnose (reescrita por Erikson, psiquiatra norte americano) e programação neurolinguística. Fiz uma série de cursos, fui aluna do Padre Quevedo, da Maria Lídia Gomes de Mattos. Estava fazendo aulas com Flávio Zanata, que era macrobiótico. Esses estudos me ajudaram a cuidar melhor de meu marido na fase mais difícil da doença.
No final, a situação econômica foi ficando mais difícil e a família dele começou a dizer que ele devia ter um tratamento normal. Eu achava que não, que seria mais traumatizante. Ele concordou com a família e acabou falecendo uma semana depois, com hemorragia interna. Mas eu achava que se havia uma chance de cura ela tinha que vir de dentro...
Lembro-me da situação que vivi no dia em que meu marido faleceu. Ele estava internado e eu saí para fazer um voo. Cheguei ao aeroporto e liguei para ele no hospital, mas foi a minha sogra quem atendeu. Ela disse que ele estava dormindo, mas eu insisti em falar com ele. Ele não estava dormindo e quando me atendeu disse que estava esperando eu ligar. Ele falou que ia dormir porque estava com muito sono, eu mandei um beijo e disse que a gente se falaria quando eu voltasse.
Fiz um voo para Belo Horizonte, que ia e voltava duas vezes, mas no meio da programação me avisaram que ele tinha falecido. Fui ao enterro dele ainda de uniforme. Nesse dia eu percebi que são pouquíssimas as pessoas que aparecem para ajudar. Quando você se defronta com a morte, você vê que é totalmente impotente para lidar com a situação.
Mistérios da vida e da morte
Muito cedo, na minha vida, comecei a me interessar por essas questões ligadas ao mistério da vida e da morte. Um dia, eu ia a uma festa e quis usar um vestido preto. Minha mãe achou que ele era muito decotado e queria que eu vestisse outro, mas eu não concordei. Então surgiu mais uma discussão entre nós, pois eu era considerada a ovelha negra da família. Minha mãe sempre dizia, em tudo, que a culpa era minha, que eu fui criada pela minha avó porque era uma criança insuportável. Então, quando minha avó faleceu, com problemas cardíacos, chegaram a dizer que a culpa era minha. Ouvir aquilo foi horrível!
Minha avó era alucinada por rosas vermelhas e eu nunca gostei de rosas vermelhas. Então eu disse para mim mesma: se eu não tiver nada com a morte dela, eu quero ganhar uma rosa vermelha. E o que aconteceu? Eu lembro até hoje: estava andando, na esquina de N. S. de Copacabana com a República do Peru quando um engraxate me deu uma rosa vermelha! Ele deve ter encontrado aquela flor em algum lugar, eu passei e ele simplesmente me deu a rosa. A partir daquele dia me libertei daquele peso e procurei entender o mistério que envolve nossas vidas. Quando alguém diz que fala com Deus, eu acredito piamente. É possível. Eu não consigo falar com Ele, mas as respostas aparecem. Encontrar meu marido foi a coisa mais bonita que me aconteceu na vida, depois da minha avó.
Um amigo na aviação
Nós tínhamos um amigo, na aviação, que sempre nos visitava e eu o conhecia desde garota porque ele morava na mesma rua da casa da minha mãe. Ele foi muito importante neste período mais difícil porque era da Associação dos Pilotos da VARIG e, por intermédio dele, a Associação nos deu muita força. Câncer é uma doença que faz a gente gastar o que tem e o que não tem. Meu pai também me ajudou muito. Só com o enfermeiro eu gastava três vezes o que ganhava.
Acabei me envolvendo com esse piloto que nos deu muita força. Ele sempre foi uma pessoa muito badalada, foi chefe de todos os equipamentos na empresa. Quando fiquei viúva, ele meio que quis assumir a personalidade do meu marido. Tinha trânsito livre lá em casa e assumiu o papel de pai das crianças. E me disse que já se interessava por mim antes de eu me casar. Nosso envolvimento durou apenas uns três meses. Chegamos a falar em casamento, pois ele já estava separado da esposa.
Foi uma relação muito forte. Mas, num belo dia, eu acordei e disse para mim mesma: “O que é isso? Ele não é a pessoa que eu quero colocar no lugar do meu marido!” Isso aconteceu num dia em que cheguei e o encontrei usando o cachimbo do meu marido. Ele já estava usando os óculos e o compasso... Então, naquele momento em que o vi fumando, achei que ele estava ali querendo substituir o meu marido. E não era nada disso que eu queria! Depois ele voltou para a mulher e agora está casado com outra. Nunca pedi nada para ele, embora algumas vezes ele tenha facilitado a minha vida.
Relacionamento mãe e filha
Com a morte do meu marido, o meu mundo ruiu. Para piorar a situação, a minha mãe, quando estava com as minhas filhas, falava mal de mim o tempo inteiro. Dizia que em vez de cuidar delas eu vivia passeando. Para ela, o meu trabalho era passeio. Isso não era nada bom para a cabecinha das meninas. Minha mãe queria que eu saísse da Varig e fosse morar com eles. Até fizeram um apartamento para mim lá na casa deles. Não tinha o menor cabimento, ainda mais para mim que saí de casa aos 15 anos. Nossa relação sempre foi muito difícil. Quando eu fiquei grávida da Samantha e falei para ela, ela disse: “Que ótimo, agora você vai pagar por tudo o que me fez!” O maior trauma dela é que tenho um relacionamento muito bom com as minhas duas filhas. Por isso, ela diz que devo ser muito bruxa.
Uns seis meses depois de ficar viúva, disse para a minha mãe: “Já que você é uma avó exemplar, embora não tenha conseguido ser uma mãe exemplar, você vai tomar conta das meninas, porque eu estou sem estrutura para ficar com elas no momento”. Arrumei as malas das meninas e disse para elas: “De hoje em diante vocês vão morar com a avó e eu vou ser mãe de final de semana”. Eu precisava de um tempo para lamber as minhas feridas. Liguei para minha tia, expliquei a situação e ela me deu total apoio. Ela disse que eu não podia abraçar o mundo, que precisava me reestruturar e que minha mãe tinha condições de cuidar das crianças.
Viuvez, discriminação
Eu estava vestindo manequim 38 e ninguém nunca me viu chorar e dizer: “E agora o que eu vou fazer?” Estava totalmente fragmentada por dentro, mas nunca deixei a peteca cair. Meu marido já tinha falecido e eu fui convidada para uma festa do grupo dos pilotos e achei ótimo. Pensei: “Eu vou voltar à vida normal.” Quando cheguei lá, todo mundo parou de falar. Entrei e sentei ao lado da pessoa que hoje faz teste de inglês na empresa. Não lembro o nome dela, mas lembro-me que ela se virou de costas. Então eu perguntei: “Como vai? Tudo bem? Você não me conhece mais?” Ela respondeu: “Tudo bem, você está muito bem!” Senti a ironia e falei: “Pena que não posso dizer a mesma coisa de você, porque piorou muito desde a última vez que a vi”. O problema é que eu não desmoronei, não assumi o papel de mulher sofredora. Então, começaram a me chamar de “viúva negra”.
Quando me casei pela segunda vez, minha mãe deu uma recepção lá na casa dela e apareceram lá a minha ex-sogra, o irmão do meu falecido marido e a esposa dele. No final, a mulher do irmão dele falou: “Agora que você já mostrou o que queria mostrar, não precisa mais ligar para nós, porque já não faz mais parte da nossa família”. O que eu acho engraçado em tudo isso é que sempre fui muito quixotesca. Sempre lutei por algum ideal. E assim é, até hoje.
                                Segundo casamento, terceiro filho                               
Conheci o Salvador num voo e ele foi a paixão da minha vida. Se eu não estivesse tão apaixonada, ia ver que a gente tinha diferenças gritantes. Casamos em novembro de 1980. Durante um tempo, moramos sozinhos em Ipanema. Depois mudamos para perto da casa da minha mãe e então fui, aos poucos, trazendo as minhas filhas. No segundo semestre elas já estavam morando conosco. Ele quis ter um filho e em 1982 nasceu o Conrado. 
Salvador criou uma firma de promoção de eventos. Naquele tempo, a aviação estava difícil para mim, eu não estava mais querendo voar, queria ficar em terra. Tentamos trabalhar juntos, mas não deu certo. É uma longa história. Nosso relacionamento foi de altos e baixos até acabar. Ele voltou para o Chile, mas ficou me ligando e assim ficamos namorando por telefone durante dois anos. Um dia eu resolvi pedir licença na Varig e fui para o Chile com o Conrado. Lá, fiquei sabendo que ele estava morando com outra mulher. Para se explicar, ele me disse que não podia ficar sozinho. Deveria ter dito isso antes...
Enfim, muitas coisas aconteceram. Posso dizer que a minha vida é cinematográfica. Já passei por muita coisa e agora só falta um happy end! Eu não pedi pra nascer, mas já que estou aqui, então a minha vingança é ser feliz!
Varig, questões administrativas
Hoje em dia, a administração da Varig existe para mandar a você, que está aqui no baseamento de Hong Kong, uma circular dizendo que mudou o lacre de não sei o quê. Por que não faz um manual com todas essas porcarias que se alguém tiver vontade de saber vai lá consultar?! Existem normas de procedimentos que são mais importantes para você fazer e outras tantas insignificantes que não têm nem sentido saber. Se o carrinho de comida e bebida estiver com defeito, coloque a etiqueta “está com defeito”, mas cadê a etiqueta? Então não mande circular nenhuma!
O bom senso na administração da empresa acabou. A gente devia se prender no seguinte: Qual é o perfil da empresa? A Varig é o quê? Gaúcha Air Lines? Brasilian air lines? A Varig chegou ao que ela é porque tinha um perfil: treinava melhor os funcionários, principalmente os Chefes de Equipe. Tinha um serviço de classe, diferenciado. Era um show viajar pela Varig, eu lembro bem! Era uma espécie de teatro e nenhuma companhia fazia isso. Tudo na vida a gente colhe depois que planta. Por que a Singapura Air Lines chegou ao que ela é? Porque faz relações públicas com o passageiro!
Enquanto a Varig não desenvolver uma personalidade, não criar um perfil, ela não tem chance. Antigamente, em relação aos comissários de voo, a empresa tinha até uma uniformidade física. Tinha um padrão, dava preferência para as louras, tipo gaúcha; depois ela começou a admitir todos os tipos. Há muita gente que, em termos de aparência física, não tem o perfil que a profissão exige. A Varig está parecendo uma empresa de fundo de quintal que inchou. As pessoas aqui não estão acostumadas a conversar, discutir, dialogar. Elas são contidas, mas quando falam, falam o que querem, e não estão prontas para escutar. É assim que eu vejo.
Para mudar, a Varig precisa primeiro mudar as pessoas que estão nos cargos administrativos. Mudaram no topo, mas e no meio da pirâmide? A Varig conta com uma posição de total vantagem, a qual está perdendo. Ela é “Varig - Brasilian Air Lines” e teve uma visão quando escolheu esse slogan. O que o Brasil representa no mercado mundial? Duas coisas totalmente ambíguas: miséria, carnaval e música. Tem cabimento você servir na primeira classe uma torta chamada “floresta negra”? Faça uma torta de sorvetes tropicais, faça um camarão com leite de coco!
Contrato de trabalho, questões profissionais
Se eu tivesse que fazer um trabalho de consultoria para uma empresa aérea, eu diria o seguinte: tem que haver uma modificação no contrato de trabalho, não pode ser assim do jeito que é. Tem que ter um contrato de dois, três, quatro, ou seis anos e a possibilidade de renovação. Ou, então, que nós fossemos aproveitadas dentro da estrutura administrativa da empresa, depois de alguns anos, porque o nosso trabalho, além de ser mecânico, é muito cansativo e improdutivo e a companhia não nos absorve. Muito ao contrário, ela nos segrega.
Essa história de que sendo comissária você tem que morrer como comissária é um absurdo! Você fica estacionada. Existem “N” coisas que poderíamos fazer dentro da própria empresa. Mas o maior problema está na empresa. Não existe uma liderança na Varig, não existe uma dinâmica! Por exemplo: a maioria do pessoal tem pouca fluência em idiomas estrangeiros. E o inglês, que é o idioma mais usado, poucos falam corretamente. Se a empresa tivesse um laboratório de línguas e investisse neste aspecto, muita coisa ficaria melhor. O CTC deveria atuar nesse sentido, também!
Há companhias aéreas que contratam comissários de voo nas altas temporadas, quando os voos estão mais lotados. Isso contagia os outros funcionários. Aqui na Varig, a gente não pode inovar em nada. Em termos de dinâmica, até a água, que é a substância vital mais necessária, se estiver parada, apodrece. É assim que o nosso grupo está, parado, estagnado. Existem duas alternativas para a empresa sair desta situação: ou ela despede todos os mais antigos, porque desse mato não sai mais cachorro, ou cria uma Diretoria de Ensino que atue no sentido de formar bons profissionais e atualizar os mais antigos. Mas o maior problema é que a empresa está parada no tempo e no espaço.
Falta de criatividade
O que é ser Chefe de Equipe? Para mim não é uma posição de faz de conta! Uma das coisas que mais me impressiona, ainda hoje, é que as pessoas estão tão escondidas atrás de uma coisa chamada “padrão”, que não passa de um escudo, uma ancora. É mais ou menos assim: “Eu sei fazer isso e faço automaticamente”. Digo “Bom dia, senhor, aceita um cafezinho?” e nem olho para o passageiro. Ou seja, o passageiro não é gente, é um número, uma coisa, e nós estamos ali para servi-lo. Não existe pessoa no mundo, por mais idiota que seja, que consiga viver sem usar a criatividade. Sem criatividade, qualquer um enlouquece.
A melhor maneira de se lembrar da Varig é fora do avião. Dentro do avião não existe espaço. À medida que você se prende a um determinado comportamento, como o do nosso grupo, que está doente já há algum tempo, fica mais difícil. Como Supervisora de Cabine e com os problemas que estou enfrentando na classe econômica, eu me vejo como alguém que não tem a quem recorrer. Não existe uma pessoa imparcial para me dizer no que estou errando ou acertando. O que a companhia não quer, em hipótese alguma, é problema.
Como Supervisora, procuro ter empatia com os colegas e sou o que sou em qualquer circunstância. Poderia usar mais a empatia, para perceber o que a pessoa quer ouvir, ser mais condescendente, por tudo o que já aprendi da condição humana...
Planos para o futuro
Gosto de viajar, de estar em muitos lugares. Um dia aqui, no outro lá. Mas vou sair da aviação aos 50 anos e trabalhar com Massoterapia. A ideia de compromisso ainda me incomoda um pouco. Temos um colega, o Pedro, que é psicanalista e atende, mesmo voando. Então como ele faz? Espera sair a escala de voo e liga para as pessoas, para dizer os dias em que pode atender. Mas ele não diz que trabalha na aviação. Eu jamais conseguiria fazer isso. Pretendo ser terapeuta e trabalhar com minha filha que está estudando psicologia.
Desenvolvi uma técnica que é muito legal, mas complexa. Somos energia, então, para o nosso motor funcionar legal é preciso um bom combustível, um bom óleo. Eu uso muitas coisas místicas, trabalho com os elementos terra, fogo, água e ar; cada dia uso uma cor, uma nota musical. E assim eu crio um ambiente vibratório para que a pessoa possa entrar dentro daquela viagem, digamos assim.
O corpo é o nosso passaporte. Todas as coisas estão gravadas no corpo. O corpo é que dá o primeiro sinal de que a pessoa está bem ou não está. Trabalho com água e uma série de toques, para que a pessoa tenha a sensação de integridade. A ideia é sentir as próprias fontes de poder, de desgaste e o equilíbrio. Saber identificar o que é eficiente e o que não é. O contato inicial é usado para criar um ambiente totalmente harmônico. Isso é apenas um esboço do que quero fazer como terapeuta, para ajudar as pessoas na harmonização de suas energias e, consequentemente, de suas vidas.
Os filhos e a profissão
A minha filha mais velha é a Samanta, que está com 22 anos. A Bianca tem 19 e o Conrado,13. A Samanta é Relações Públicas por excelência. Consegue conquistar as pessoas o tempo inteiro. A Bianca também é muito simpática, mas não fica agradando o tempo todo. Estava tirando brevê, fazendo curso de piloto, mas desistiu. Agora está cursando Psicologia. O Conrado é do signo de Áries, é a personificação do “não” o tempo todo.
Existe uma máxima no budismo que diz que o bom pai e a boa mãe são aqueles que ensinam o filho a passar fome e sede, pois é o que ele vai passar na vida.
A aviação é uma coisa boa, apesar de árida, pois a nossa profissão é muito desgastante. Então, tento conciliar todas essas coisas, cuidar de meus filhos e voar. Nesse sentido, acho que a empresa deveria facilitar nossa vida e que as nossas escalas de voo nos dessem melhores alternativas...

Depoimento de Bianca (19 anos):
Acho que ter uma mãe trabalhando como Comissária de Voo é bom porque nos faz amadurecer, pois temos que resolver muitas coisas sem a presença dela. Desde cedo aprendemos que na vida vamos estar quase sempre sozinhos. O lado bom é o da responsabilidade e o lado ruim é o da solidão. Meu pai morreu quando eu tinha menos de dois anos. Eu tive um padrasto, mas ele não estava sempre por perto. Senti a falta de alguém em casa regulando as coisas. Mas essa falta é superada por outros aspectos positivos da profissão da minha mãe.
As minhas amigas, da minha idade, não têm a experiência que eu tenho por ter aprendido a me virar sozinha. Tenho iniciativa, sei tomar decisões. É preciso saber o que é certo e o que é errado, para tomar uma decisão por você mesma, já que não tem a mãe ali do lado orientando a toda hora. Minha mãe já era comissária quando eu nasci e desde pequena fui criada assim. Aprendi o que na visão dela era certo e errado e ela nos permitia uma escolha. Ela me mostrou o caminho e eu pude escolher o que queria. A nossa casa funciona de modo diferente das outras, mas não tenho o que reclamar. É apenas diferente, não é ruim. Nós sempre tivemos uma empregada, mas quando eu era menor sentia muito não ter ninguém para me levar e buscar na escola. Queria que ela me levasse e me buscasse na escola, que fosse passear comigo, que me levasse nas festinhas.
Quando ela chegava de viagem estava sempre muito cansada e não podia fazer essas coisas. E também precisava fazer as coisas da vida dela. Via que ela estava cansada, mas não entendia e achava que se ela era mãe tinha que fazer o que eu queria. Eu sentia mais do que cobrava de minha mãe. Meus irmãos cobravam e cobram mais. Com o tempo fui vendo que existe também o lado bom, pois no final tudo deu certo. Meu irmão tem 14 anos e já se vira sozinho. Ele tem independência, mas ainda cobra muito da mãe.
Eu não pretendo ser Comissária de Voo. Além de achar que a profissão é muito cansativa, acho que a remuneração não é boa. Não está valendo o esforço e o desgaste que o organismo sofre. É uma vida muito estressante! Vejo minha mãe chegar sempre exausta depois de cada viagem. Não acho que valha a pena, nem mesmo a profissão de piloto. Eu estava fazendo um curso de piloto, depois fiquei doente e interrompi. Se eu achasse que vale a pena teria concluído o curso. Ainda não sei exatamente o que quero, mas estou cursando o quarto período de Psicologia.
A vida de viagens tem seus atrativos, mas por outro lado gostaria de ter minha casa, ser mais presente, dar mais atenção à família. Nunca seria uma dona de casa apenas, ainda mais porque não conheci esse modelo em minha vida, pois minha mãe nunca foi uma dona de casa. Nem sei como é!
Penso em ter filhos. Sem querer elogiar minha mãe, ela teve uma sensibilidade fora do comum para educar a gente, porque na maior parte do tempo sozinha e ainda viajando, conseguiu fazer tudo direito. Não sei se eu teria essa capacidade. Acho que teria um pouco de medo.
 Trabalho desde os 14 anos. E como modelo desde os 16. Comecei trabalhando em eventos, fazendo tradução de eventos esportivos internacionais. Isso aconteceu porque tive uma pessoa que confiou em mim, que me deu força e abriu essa porta e nem foi porque eu falava inglês muito bem.
Comecei a estudar inglês aos sete anos. E por viajar muito com minha mãe fui aperfeiçoando o idioma. Esse é o lado ótimo da profissão de minha mãe, que eu aproveito bem. Tenho passagem de graça e como já trabalho há muitos anos, posso viajar com frequência. Não preciso pedir dinheiro para ela. Só dependo de companhia. Então, quando a oportunidade aparece, eu aproveito. No ano passado fui para Londres e adorei! Fiquei no apartamento de umas amigas e foi ótimo!
Viajar é uma chance que poucos têm, a não ser que os pais tenham muito dinheiro. Mesmo assim, as pessoas não viajam com tanta frequência. Ainda mais pelos gastos com hotéis, alimentação, etc. Quando viajo com minha mãe, fico com ela e os gastos são muito menores.
Não sinto que a profissão de minha mãe seja discriminada pelas mães de minhas amigas. As pessoas são muito curiosas a respeito e acham muito legal. Quando eu era menor, não sei se discriminavam, pois quando as minha amigas estavam na minha casa, as mães ficavam chamando e quando eu estava na casa delas ninguém me chamava. Eu é que decidia quando devia voltar para casa. Acho que elas achavam que eu era meio largada, mas por isso mesmo eu me policiava e aprendia a ter limites. Nunca ficava até muito tarde, nem ficava telefonando em horas que não devia. Agia como se sempre tivesse alguém por trás disso, mas era eu quem decidia.
Eu sou a do meio. Tenho uma irmã quatro anos mais velha e um irmão seis anos mais novo, do segundo casamento de minha mãe. Minha irmã mais velha virou nossa segunda mãe; ela sempre olhava por nós e é respeitada por isso. Nem tanto por amizade, mas mais como autoridade. Com meu irmão mais novo não aconteceu o mesmo. Ele pensa diferente, não aceita autoridade e acha que é o dono da própria vida.

*Lila (pseudônimo) estava com 44 anos e tinha 25 de voo quando concedeu esta entrevista no baseamento de Hong Kong (China), em 1996. Seus filhos a acompanhavam. Bianca deu seu depoimento na mesma ocasião.  

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