domingo, 29 de junho de 2014

Anita

Anita*

Nasci em São Paulo. Meu pai é italiano do norte da Itália; minha mãe é brasileira, descendente de italianos. Então toda a minha história de família está envolvida com a cultura italiana. A família do meu pai eu só fui conhecer depois de entrar para a aviação, quando viajei para a Itália. Conheci duas irmãs dele, ainda vivas, com seus maridos. Os meus avós paternos, porém, já haviam falecido. A família da minha mãe é muito grande. Eram nove irmãos e eu cheguei a conhecer os meus avós maternos. Cresci naquele clima de família italiana, família grande, que se reunia no Natal e Ano Novo e fazia aquele grande almoço. Nesses almoços toda a família se reunia com os filhos e os netos. Depois, a gente jogava tômbola. Meus pais, no entanto, só tiveram dois filhos. Tenho um irmão mais velho.
Infância e adolescência
Sempre fui uma criança muito quieta, uma menina muito retraída.  Meu pai era um pouco rígido, mas ele e minha mãe nunca foram de proibir, de não permitir isso ou aquilo. Na adolescência continuei sendo quieta e retraída. Mas o que não vivia na realidade eu vivia nos sonhos e fantasias que alimentava. Vivia num mundo só meu, mas sonhava muito com o mundo lá fora. Era muito estudiosa, tinha meu quarto, meus livros, meus cadernos de inglês. Sempre gostei de estudar inglês. Tinha um tio que morava em São Francisco, na Califórnia (EUA). Cada vez que ele vinha ao Brasil, ele contava muitas novidades de lá e isso tudo me despertava grande interesse.
Estudos e trabalho
Eu gostava muito de línguas, então entrei para uma escola de inglês, onde estudei durante muitos anos. Depois do primeiro grau cursei o Clássico e fiz vestibular para Letras na USP, mas não passei. Não sei por que não passei porque, sinceramente, acho que deveria ter passado. Aí fiquei um pouco desestimulada e fui trabalhar em um Banco. Comecei a trabalhar meio período, na parte da tarde. E continuei estudando inglês. Também aprendi corte e costura e fiz curso de manequim, à noite, no SENAC, porque eu tinha uma grande paixão pela moda. Cheguei até a ser modelo fotográfico por alguns meses. Lembro-me de que cortaram meus cabelos curtinhos e os pintaram. Fiquei loiríssima por uns seis meses. Gostaria de ter feito um curso superior. Acho que queimei uma etapa de minha vida, que perdi aquela experiência boa de estar na faculdade, de viver naquele ambiente universitário. Arrependo-me de não ter insistido nesse aspecto. Acho que fez falta na minha vida.
Aviação
No início trabalhei meio-expediente, depois passei a trabalhar o dia todo no setor de câmbio e comércio exterior. Trabalhava no Banco há mais de três anos e já não aguentava mais aquela rotina. Um dia, num sábado, assistindo a um programa na televisão, que se chamava “Almoço com as Estrelas”, eu fiquei sabendo, através do relações públicas da Pan American, que era um dos convidados do programa, que a empresa dele estava procurando moças para trabalhar como aeromoças. Também falou das vantagens que a profissão oferecia. Para começar, ficaria um mês em Huston, Dallas, fazendo o curso. Depois viajaria pelo mundo inteiro, se hospedaria em ótimos hotéis etc. Aquilo me pareceu o máximo!
Eu estava procurando alguma coisa diferente para fazer na vida, pois estava me sentindo muito presa. Então, na segunda-feira seguinte, eu fui lá. E fui entrevistada pelo mesmo senhor que apareceu na televisão. Ele disse que os testes seriam feitos com pessoas que viriam dos Estados Unidos e que, portanto, eu não faltasse no dia marcado. Uns 10 dias depois, quando fui fazer o teste, senti que não agradei. Fui atendida por uma senhora e, quando entrei na sala, senti que ela não gostou de mim. Ela me fez duas ou três perguntas e nem me mandou sentar. Talvez porque eu não fosse alta ou não tivesse o tipo norte-americano.
Não me mandaram a resposta, mas eu queria saber por que não tinha passado. Liguei para eles e só o que soube era que a pessoa que tinha feito a entrevista não estava mais lá. Fiquei bastante chateada. Mas a ideia de entrar para a aviação ficou na minha cabeça. Logo depois eu soube que a VASP estava oferecendo vagas. Fui lá, mas as inscrições já estavam encerradas. Pouco tempo depois, vi num jornal o anúncio da Varig. Isso foi em 1970. Então fui fazer a inscrição, depois a entrevista e os testes. Nessa época, eu já tinha pedido demissão no Banco e estava sem trabalhar há uns três ou quatro meses. Uma das razões que também me chateava no banco era o assédio do meu chefe. Se fosse hoje eu poderia até processá-lo por assédio sexual.
Fui para o Rio de Janeiro fazer o curso, que teve a duração de dois meses. Foi uma maravilha! Depois, voltei para São Paulo que ficou sendo a minha base durante dois anos. Comecei voando AVRO e fazendo voos para o Nordeste. Continuei morando com minha família. Meus pais não foram contra, mas ficaram preocupados, inclusive uma vez eu ouvi meu pai perguntar para minha mãe, o que dizer se os amigos perguntassem sobre o trabalho da filha. Havia ainda um pouco de preconceito, mas eles nunca foram contra. Inclusive, fiquei sabendo pela minha mãe, há pouco tempo, que quando fui transferida para o Rio, meu pai entrou no meu quarto e começou a chorar, vendo o quarto vazio. Ele era aquele italianão duro, que falava grosso. Eu nunca imaginei que ele fosse capaz de chorar...
Mudança para o Rio de Janeiro
O primeiro ano foi terrível porque o carioca é muito diferente do paulista e eu sou muito paulista. Até hoje levo tudo muito a sério, talvez até demais. Então, o jeito despreocupado e descompromissado do carioca me incomodava muito. Não sou de fazer amizade com facilidade e, naquela época, menos ainda. Mudei para o Rio com uma colega da mesma turma e moramos juntas por algum tempo. Depois ela mudou para outro apartamento porque a família ia morar com ela. Nunca fui de viver enturmada, mas me senti muito sozinha. Nós trabalhávamos no B-727 e fazíamos as conexões dos voos internacionais. Quando eu chegava ao aeroporto de Congonhas, em São Paulo, descia do avião com a minha malinha e tinha vontade de ir direto para a casa dos meus pais. Mas como também era muito forte em mim aquela vontade de conhecer a Europa, de viajar para fora do Brasil, eu tinha que continuar no Rio. Os voos internacionais saíam todos de lá.
Voos internacionais, outras culturas
A aviação internacional é um mundo completamente diferente e para mim foi quase um choque. O grupo era bem maior e o pessoal mais individualista. Nos voos nacionais a tripulação é menor e o pessoal é mais unido. A gente saía junto para jantar e passear. Na internacional isso é mais difícil de acontecer. Não conhecia ninguém, mas aos poucos fui conhecendo os colegas e me acostumando.
O mais empolgante era conhecer outros lugares, outras culturas. Sonhava com a Europa, com Paris, aqueles lugares que eu tanto ouvira falar. Estudei francês apenas no curso ginasial e no clássico. No clássico, a professora era excelente, muito rigorosa e exigente. E o francês que sei devo a ela. Não falo fluentemente, mas consigo me comunicar, ler e entender, se falarem um pouco devagar. Teve uma época, logo que chegou o DC-10, em que eu fazia voos frequentes para Paris, porque fiquei trabalhando no B-707. Se tivesse feito prova de francês, na Varig, naquela época, eu teria nota nesse idioma. O conhecimento de uma língua estrangeira depende muito de você ouvir e praticar.
Meu primeiro voo internacional foi para Roma. Adorei! Depois Paris! Depois Londres! Sempre amei esses lugares. Também tenho saudades de Lisboa. Hoje em dia, ando um pouco desmotivada, parece que tudo perdeu um pouco a graça. Recentemente eu fiz um voo para Paris e até que recuperei um pouco do encanto que sentia. O hotel, em Paris, fica na Place de La Republique e é muito bom. Sempre gostei muito mais da Europa do que da América. Mas depois de ficar baseada em Los Angeles durante dois anos a minha concepção mudou um pouquinho.
Na América do Norte, o que mais gosto é o lado prático e fácil da vida no dia a dia. Questões de banco, supermercado, estacionamento, limpeza da casa, tudo é fácil e acessível. Ficar numa fila para mim é a morte. Lá isso dificilmente existe. Os supermercados são limpos, não têm cheiro de coisas velhas ou estragadas. Então, quando a gente volta para o Brasil é um choque. Depois desse baseamento em Los Angeles eu passei a gostar mais dos Estados Unidos, não que eu tenha deixado de gostar da Europa. Na Europa o dia a dia não é tão fácil assim.
Perfil dos passageiros
O verdadeiro passageiro da primeira classe está cada vez mais raro. Com o tempo, o perfil desse passageiro também foi mudando. Quando eu entrei, 25 anos atrás, a aviação era um meio de transporte de elite. Na primeira classe viajavam passageiros de muita classe. A gente lidava com pessoas que reconhecia de notícias de jornal, de coluna social. Onde estão essas pessoas? - eu me pergunto. Ou elas trocaram de companhia ou já não viajam tanto. É raro você viajar com uma pessoa que você conheça. Passageiro de primeira classe é aquele que viaja sempre, que conhece os vinhos, a comida. Se você está servindo caviar e pergunta se ele prefere com torradas ou com blinis, ele sabe do que se trata. São pequenos detalhes. É aquele passageiro tranquilo que viaja no lugar que já conhece e gosta. Ele não faz questão de assistir ao filme; geralmente prefere dormir. Vai chegar ao destino e tem muitas coisas para resolver.
Passageiro que não é de primeira e viaja de primeira classe, a gente também percebe pelos pequenos detalhes: quando você passa o carrinho de hors d’oeuvre ele pede “um pouco de cada”. Antigamente tínhamos três opções: caviar, lagosta e patê de foie gras, então ele pedia um pouco de cada coisa. No carro de sobremesa ele faz a mesma coisa, pede queijos, pede torta e pede frutas. Também não sabe usar os talheres... É gente que até tem dinheiro, mas não tem “finesse”.
O passageiro brasileiro, muitas vezes, não tem educação e é prepotente. O passageiro italiano é baderneiro, mas não é prepotente; ele gosta de falar alto, de ficar em pé nos corredores... O passageiro brasileiro, como o italiano, acha que é dono daquele espaço, que pode fazer o que bem entender. O passageiro alemão é muito chato e prepotente, só quer saber de falar na língua dele. Os voos para Frankfurt, depois que a Varig começou a fazer joint venture com a Lufthansa, ficaram insuportáveis. Não sei se é porque eles compram passagem com a Lufthansa e depois entram num avião da Varig, mas ficam indignados e reclamam o tempo todo! O passageiro argentino também é muito prepotente e grosseiro. O passageiro japonês é o mais educado e disciplinado do mundo!
Passageiros famosos
Já viajei com a Candice Bergen, com o George Hamilton, com o Omar Chariff - Que homem lindo! Nunca vi dois olhos tão lindos! Um olhar aveludado que não dá para explicar. Viajei com Pelé, Emerson Fitipaldi, Tom Jobim, Ayrton Senna. Viajei com o Ibraim Sued. Ele entrou uma vez num DC-10, num voo para Paris, com aquela camisa aberta no peito e aquele cordão de ouro todo exposto. Parecia um daqueles donos de jogo do bicho ou de escola de samba. Entrou com aquele olhar de quem já tinha bebido muito. Quando viu que o lugar que ele queria não era o que recebera, já soltou um palavrão: “aquela filha da ...” se referindo à moça do check in. O Renato Aragão é muito simpático.
Há pouco tempo, viajou comigo um jogador de futebol que está jogando em Paris, no Saint Germain, o Raí. Que homem lindo! Eu estava na porta recebendo os passageiros e quando vi lá estava ele, ocupando quase todo o espaço da porta... Aí comentei com minha filha, em casa, e ela me cobrou o autógrafo. Já pedi autógrafo para a minha filha, algumas vezes.  Ela fica me cobrando. Mas eu ia me sentir um pouco ridícula pedindo o autógrafo para o Raí. Peço quando se trata de um conjunto musical, de um grupo de músicos jovens, de uma atriz ou cantora. Minha filha fica toda orgulhosa e mostra para as coleguinhas na escola. Já pedi autógrafo para a Luíza Brunet, quando ela era mais jovem e ainda trabalhava para a Dijon. Ela era muito linda, sem um pingo de pintura no rosto!
Geralmente as pessoas mudam muito quando estão a bordo, principalmente as que são famosas. Na maioria das vezes, a imagem que a gente tem de uma pessoa famosa não corresponde ao que a gente vê, quando a encontra pessoalmente. O Sílvio Santos, por exemplo, é totalmente diferente daquela pessoa que a gente vê na televisão. Ele entrou, sentou, pegou um livro e leu até o fim. Na televisão é uma pessoa muito comunicativa, fala muito, mas dentro do avião é outra pessoa. Só dizia: “Sim” e “Muito obrigado.” Eu sempre procurei tratar todos os passageiros com a mesma atenção, sem fazer distinção entre os famosos e os não famosos.
Problemas com passageiros
Posso dizer que tive, recentemente, uma experiência inusitada. Foi uma experiência constrangedora que aconteceu num voo da Soletur. Vale lembrar que nos voos da Soletur o serviço da primeira classe é, na realidade, serviço de classe executiva. Então, uma passageira, que estava viajando na primeira classe, só faltou me chamar de “bonita”, para não dizer outra coisa. Ela levantou, foi até a galley e disse que eu tinha sido grosseira no atendimento, que parecia que eu estava fazendo um favor quando oferecia alguma coisa. Eu nem lembro mais de tudo o que ela falou. Só sei que fiquei tão chocada, que nem acreditei que aquilo estivesse acontecendo comigo. Para a minha sorte ali estavam a chefe de equipe e o comandante. Tinha certeza de que não tinha feito nada daquilo, porque não sou uma pessoa grosseira!  Fiquei arrasada!
Na cabine, ao lado dessa passageira, do outro lado do corredor, tinha um casal de idade e a senhora falou para mim: “Não fique chateada, não! Você lê a coluna da Ildegard Angel? Essa fulana aí faz parte da sociedade emergente do Rio de Janeiro. Não sabe nada, não conhece nada. O que ela está querendo? Um serviço de primeira classe num voo de fretamento da Soletur?” Essa passageira falou isso para mim porque tinha presenciado o zunzunzum na cabine com os outros passageiros.
Fiquei arrasada e levei dias para me livrar daquele clima negativo. Durante esses anos todos, essa foi a primeira e única vez que tive problema com passageiro. Imagino que coisas semelhantes aconteçam com minhas colegas. Outro dia eu soube de um caso em que o passageiro jogou o cardápio da primeira classe na cara da comissária porque faltava alguma coisa que ele queria...
Vida profissional, promoções
Trabalhei muitos anos na primeira classe, praticamente toda a minha vida. Quando fui para a rota internacional fiquei um ano na cabine econômica e depois fui para a primeira classe, de onde nunca mais saí. Agora sou supervisora da primeira classe. Fui chamada para ser supervisora, pela primeira vez, há uns 10 anos atrás. Naquela época havia separação de equipamentos. Ou você voava B-747 ou voava DC-10. Eu voava B-747, só fazia voos para Nova York e Frankfurt.  Então, quando a pessoa era promovida, voltava para o DC-10 e ia trabalhar na cabine econômica. Era uma promoção na concepção dos nossos chefes, mas para nós era castigo. E a gratificação do cargo era muito pequena, não compensava. Eu recusei o cargo umas três vezes.
Quando voltei do baseamento de Los Angeles, há dois anos, a situação era outra. Já estava me incomodando o fato de ser auxiliar de pessoas mais novas e menos experientes do que eu. Então aceitei a promoção, passei nos testes e assumi a função de supervisora. Fiz dois voos na cabine econômica e depois voltei para a primeira classe. Não gosto de trabalhar na cabine econômica. Na realidade eu detesto!
O trabalho em si é muito simples, se comparado com o serviço que fazíamos na época em que eu comecei a trabalhar nas linhas internacionais. O que é feito hoje é quase nada! A dificuldade está no número de passageiros. Os aviões são grandes e é muita gente, muito problema para administrar. É o fumante que está sentado em lugar de não fumante, é o passageiro que embarcou com a mulher, mas deram assentos separados, é o passageiro que bebe demais e se torna inconveniente... É muita gente e são muitos os problemas! Prefiro trabalhar numa cabine menor.
Como supervisora também tenho que tomar conta de muitas pessoas, ao mesmo tempo em que tenho meu trabalho para fazer. Sei que há muito supervisor que não trabalha; há muita queixa de comissário auxiliar a esse respeito. Tanto que a maioria dos auxiliares evita trabalhar no mesmo corredor que o supervisor de cabine porque sabe que vai ter que trabalhar por dois. Mas eu trabalho. Então, além de trabalhar, temos que supervisionar.
No meu primeiro voo, como supervisora, fui trabalhar na cabine econômica onde não trabalhava há muitos anos. Além da mudança de cabine, ainda tinha essa mudança de postura que é bem diferente. Foi num voo Londres – Copenhagen, que é um voo pesado. Achei que ia morrer naquele voo, ainda mais naquele trecho de Londres para Copenhagen que é curtinho mas está sempre lotado. No final tudo deu certo. Acho que foi a prova de fogo. O segundo voo foi para Amsterdam. Depois que terminou o mês, já passei para a cabine executiva. Fiquei lá pouco tempo e voltei para a primeira classe.
 Na primeira classe os auxiliares são todos bons. Nunca peguei um auxiliar que não trabalhasse direito, que não tivesse uma boa apresentação. Nas outras cabines o que mais se vê, hoje em dia, é colega com aparência desleixada. As meninas não se maquiam, não pintam nem as unhas. Esses problemas são maiores na cabine turística. O que acontece, às vezes, com as auxiliares da primeira classe, é que elas estão tão acostumadas a fazer o serviço que até ignoram a presença do supervisor. Os problemas com aqueles que trabalham na galley são maiores e há aqueles que deixam muito a desejar no trabalho. Não é questão de idade, nem de sexo. Muitos estão lá naquela função porque não querem atender passageiros, e no fundo não querem nem trabalhar. Então a sopa é servida fria, a omelete queima, o café é fraco... Eu parto do princípio de que todo mundo sabe o que tem que fazer. Ficar perguntando para a pessoa se o café está quente, se a sopa está quente é tão desagradável para quem ouve como para quem pergunta. Procuro não fazer isso, mas depende da pessoa com quem estou trabalhando...
Atualmente, parece que não existe muita consciência profissional. As pessoas estão ganhando tão mal que não dá nem para criticar. Sem contar a falta de material para trabalhar... Recentemente fiz um voo, num MD-11, em que dois toaletes da cabine turística estavam sem as torneiras. É muito difícil trabalhar assim, tendo que lidar com vários problemas cujas soluções não dependem de nós: os atrasos dos voos, a qualidade da comida que está decaindo etc. Já me chamaram para ser Chefe de Equipe, mas não aceitei.  Perto da aposentadoria, quem sabe.
Relacionamento com os colegas
Sempre procurei ser uma boa colega, ajudar, trabalhar. Acho que, no avião, o meu relacionamento com os colegas é bom. Não quero dizer que fora do avião não seja bom, mas, hoje em dia, não sei se é o desgaste, se é o estresse, já não tenho mais paciência para procurar conhecer as pessoas. Já não tenho mais paciência para quase nada. Não tenho mais aquela vontade de telefonar, convidar algum colega para sair, para jantar junto. Quando assumi a função de supervisora, num dos voos que fiz na cabine econômica, conheci a Júlia, que é uma pessoa muito legal e trabalha muito bem. Com ela eu gosto de conversar.  Depois, fizemos um voo para Amsterdam e fizemos uma excursão juntas.
Um dia, depois de alguns meses, nos encontramos no aeroporto e ficamos conversando mais um pouco. Ela estava saindo para fazer um voo e estava muito deprimida porque tinha um filho de cinco anos e a empregada tinha começado a trabalhar na casa dela naquele mesmo dia. Sabe aquele desespero? Falou que tinha feito um voo para o México e não tinha ninguém da tripulação com quem conversar e que se sentiu muito sozinha. Foi ao “Denys” fazer um lanche e estava tão arrasada que começou a chorar. As meninas que atendiam perguntaram o que ela tinha e ela só conseguia chorar.
Sugeri que a gente pedisse para voar juntas. Assim faríamos companhia uma à outra, para sair para jantar e, quando quiséssemos, para conversar. Então, nesse ano, nós passamos a voar juntas. Para conseguirmos isso tivemos que inventar uma história para o pessoal que faz a escala de voo. Dissemos que a babá da minha filha é a mesma do filho dela. Nem sei por que a gente precisa se justificar se quer voar fixo com alguém. Acho que esses detalhes não deviam interessar a eles. Recentemente, pedimos um voo para Copenhagen para levar as crianças e deu tudo certo. Ela disse que não tinha coragem de levar o filho sozinha. A gente voa junto e nem todo tempo está junto, mas sabe que tem alguém na tripulação com quem pode contar, se precisar. Na América tudo é mais fácil e não faz diferença se você tem companhia ou não, mas na Europa, em voos com dois ou três dias de pernoite, fica mais complicado. E hoje em dia, nas tripulações, as pessoas que conheço são as mais antigas e são minoria. Os jovens são a maioria e têm outros interesses.
Vida amorosa, casamento
Quando jovem, eu era muito retraída. Tinha uma ou duas amigas e nosso programa era ir ao cinema. Comecei a namorar muito tarde. Já tinha entrado para a aviação quando tive o primeiro namorado. Ele também era do voo, mas saiu alguns anos depois. Acho que sempre coloquei uma barreira muito grande entre as pessoas e eu. Um colega veio me dizer, muitos anos depois, que eu era a musa do Avro! Eu nunca soube disso! Também namorei um piloto. Hoje ele é comandante de Jumbo. Eu era apaixonada por ele e quando terminamos o namoro fiquei sofrendo um bom tempo.
Tive outros namorados, inclusive um homem casado. Aquilo era um tabu para mim. Estava sozinha, morando no Rio, e muito carente. Ele era um amor de pessoa. Eu já o conhecia e ele ficou me rodeando um bom tempo. Mas sempre deixou claro que era muito feliz com a mulher e não pensava em se separar. Pelo menos não fez o jogo sujo que muitos fazem dizendo que estão infelizes com a mulher, que querem se separar etc. Ficamos juntos algum tempo e quando o romance terminou, ficou a amizade.
Depois conheci o Paulo. Namoramos um ano e meio e nos casamos. Achei que ele era o homem dos meus sonhos. Era carinhoso, muito educado e muito culto.  Só que tinha um temperamento, um gênio, que não mostrava naquela época. Com o passar dos anos o casamento foi ficando muito difícil. Ele é uma pessoa que não pode conviver com ninguém porque é muito egoísta. Está sempre em primeiro, em segundo e em terceiro lugar, depois vêm as pessoas que ele ama. Tudo tem que girar em torno dele, tem que ser como ele quer, na hora que quer. Não tem diálogo. Nunca reconhece quando está errado. É muito difícil conviver com ele. Nem a mãe dele consegue.
Tentamos nos separar algumas vezes, mas eu acabava ficando porque gostava dele e achava que ia mudar. No início parecia que mudava, mas depois tudo voltava ao habitual. Quando entrava em casa, já ia arrumando as cadeiras do jeito que queria. Mexia em tudo. Como eu me ausentava para trabalhar, ele tomava conta da casa e mudava tudo. Era uma pessoa extremamente organizada, muito metódica, um exagero! Achava que eu era uma bagunceira. Pela vida que levo, chegando de viagem e saindo para viajar, até que sou bastante organizada. O problema é que eu não conseguia manter uma empregada. Elas não aguentavam a chatice dele. Ficava dando ordens, cobrando o tempo inteiro.
Depois que voltamos do baseamento de Los Angeles, ele cismou que a filha tinha que estudar italiano, porque eu tenho passaporte italiano. Ela estava com 11 anos, já falava inglês, estava estudando francês e ele insistia que ela tinha que estudar italiano. Só que ela não queria e eu não ia forçá-la a fazer isso só para agradar o pai. Seria muito bom se ela quisesse, mas eu não podia obrigá-la. Falei que tendo passaporte italiano seria um vexame chegar à Itália sem falar o idioma. E isso realmente aconteceu quando ela foi para a Itália comigo e teve que passar pela imigração. Enfim, ele chegou a matriculá-la no curso do consulado da Itália e foi um problema. 
No trabalho, ele não consegue ficar muito tempo no mesmo emprego porque acha que sabe mais que todo mundo. Na época em que voltamos de Bogotá, conseguiu um bom emprego numa grande empresa. E foi trabalhar com Comércio Exterior, que era o que ele queria. Fez viagens para a Austrália, Japão, Cingapura, ficou fora quase um mês. Mas logo entrou em confronto com o chefe que viajou com ele. Depois ficou um tempão sem trabalhar. Durante certo período inventou de plantar ervas medicinais, mas não deu certo. Depois arrumou outro emprego, onde conseguiu ficar oito anos, até irmos para o baseamento em Los Angeles. Ele conseguiu pegar uma licença sem vencimentos e foi junto. Só que deram uma rasteira nele, pois quando voltou estava desempregado. E assim está. Tem um computador que trouxe de Los Angeles, tem mil ideias na cabeça e vive fora da realidade. Talvez porque o meu lado responsável desse alguma segurança, ele soltava as asas da imaginação. Se desse certo seria uma maravilha, mas nada deu certo. Estamos separados há dois anos e só agora ele está dando pensão para a filha.
Discriminação
As vizinhas e amigas, que não são da aviação, acham que a nossa vida é maravilhosa. São curiosas e fantasiam a nosso respeito. Tem também, da parte das mulheres, o lado da inveja. Algumas nos olham com uma cara que parece ser de raiva. No condomínio onde moro, desde que a minha filha era pequena, as pessoas se acostumaram a me ver com ela no playground, na piscina, saindo para levá-la ao balé. Então não tenho esse problema. Mas há muitas mulheres que não me cumprimentam, enquanto que os maridos me cumprimentam. Elas vivem presas à casa, ao marido, aos filhos, e ficam achando que a nossa vida é maravilhosa. E ainda temos a possibilidade de levar os nossos filhos junto para viajar. Só que tem outro lado que elas ignoram...
Preparação para o voo
Quando visto o uniforme, sinto que há uma transformação e separo a vida particular da profissional. De uniforme sou a comissária de voo. Já na véspera de voar parece que começo a entrar no ritmo do voo. Mesmo que o voo seja no dia seguinte à noite. Quero deixar a mala pronta para, no dia seguinte, não ter que fazer muita coisa. No dia do voo não consigo dormir à tarde, mas procuro deitar um pouco para relaxar, descansar as pernas. A gente fica muito exposta, todos ficam nos observando, por isso procuro cuidar da minha aparência, me maquiar. Eu, por exemplo, já me sinto muito velha para estar nessa profissão.
Há uns anos atrás, uns 10 anos mais ou menos, quando houve a fusão do B-747 com o DC-10, eu passei por uma crise. Comecei a voar com muita gente mais jovem. Tinha 39 anos e me achava muito velha. Apesar de saber que tenho uma boa aparência, acho que essa profissão é para mulheres jovens, de, no máximo, até 40 anos.
Sinceramente já não tenho mais paciência para fazer as malas. Antes era um deslumbre! Combinava tudo bonitinho, roupa, sapato, bolsa e bijuteria. Hoje em dia, principalmente a mala de inverno, é quase um uniforme. É a mesma roupa. Só tiro da mala para lavar. Já não tenho mais paciência para ficar pensando em coisas diferentes, em me produzir. As mudanças de clima nos países da Europa é que atrapalham um pouco. Às vezes, é inverno e faz calor, ou é primavera ou verão e faz frio...
Atividades paralelas, alfândega
 Nunca gostei de trazer muamba para vender, mas houve uma época, quando comprei meu apartamento, que precisei ganhar um dinheiro extra. Tive uma vizinha como sócia. Eu comprava e ela vendia. Durante um ano, mais ou menos, nós fizemos isso juntas. Nós rachávamos tanto os gastos quanto os lucros. Em Nova York eu comprava cosméticos, perfumaria, bijuteria, brinquedos, óculos, coisinhas diferentes. Depois minha vizinha  se mudou, ficou sem empregada e tudo ficou mais difícil. Fizemos até um bom dinheirinho, mas era muita dor de cabeça. Sempre havia reclamações: o relógio parou de funcionar, o brinco ficou preto...  Eu não tenho paciência para essas coisas.
Depois disso, quando as pessoas me perguntam se trago coisas para vender eu respondo que não. É muito cansaço e aborrecimento. E não gosto de sair para viajar com o compromisso de ter que fazer compras. Nesse voo, por exemplo, uma amiga que é esteticista, me pediu algumas coisas. Ela me paga 50% em cima do gasto. Mas eu prefiro não ter essa obrigação de ter que levar o que ela pediu. Sinto-me obrigada, amarrada. E além disso tem o problema de passar pela alfândega. Já me aborreci algumas vezes. Em São Paulo, ainda é um pouco melhor, mas no Rio a alfândega está uma rapinagem. Eles tiram as coisas para eles: “O que você tem aí? Quero isso para mim.” Toda vez que passo na alfândega é um aborrecimento. Há pouco tempo, voltei de um voo de Roma, onde comprei dois sapatos, um para minha filha e outro para minha mãe. E tinha na mala mais dois sapatos que eram meus. Estava com quatro sapatos. “Ah, mas é muito sapato...” Respondi que dois eram meus e dois eram presentes. “Então vou pegar esse spray...” E pegou o spray de cabelo que era meu, para uso pessoal. No último voo que fiz para Nova York, antes de entrar de férias, eu fiz algumas compras no mercado e levei coisas duplas porque ia ficar algum tempo sem viajar. Eram coisas para mim, mas o cara foi pegando tudo. Pegou biscoito, sabonete, shampoo, tudo! É isso que me irrita. Eles estão até tirando sanduíches de colegas nossos!
Questões de saúde
Acho até que sou uma pessoa bastante privilegiada em relação à saúde porque converso com colegas que têm 35 ou 40 anos e elas já estão na menopausa. Muitas estão entrando na menopausa precocemente por causa do voo. Eu ando com muitos altos e baixos porque entrei na menopausa há uns dois anos. Há épocas em que estou num astral terrível. Mas evito usar medicamentos. No início, fui fazer exames ginecológicos e constatei que a taxa de hormônio estava muito baixa. O médico até me perguntou se eu não estava sentindo muito cansaço. Respondi que sim, mas achava que era consequência do trabalho, do retorno do baseamento, das mudanças de fuso, do meu casamento que não estava dando certo. Aí ele falou que a minha taxa de hormônio estava muito baixa.
Tomei um remédio para a “tiroide” para ver se melhorava, mas não melhorou. Comecei a me sentir pior. Depois parou a menstruação e eu fiquei muito pior, com uma depressão que nunca tinha tido na minha vida. Não tinha ânimo para nada. Sentia uma ansiedade enorme, acordava no meio da noite com ondas fortes de calor, depois não conseguia mais dormir. Isso tudo são sintomas do climatério, da menopausa. Muitas vezes deitava e não conseguia dormir.  Na época, estava sem empregada, sem ninguém para me ajudar. Chegava e não sabia se fazia compras, se limpava a casa, se fazia comida, se falava com minha filha. E me sentia muito mal. Se você tem saúde e energia você ainda consegue ir resolvendo os problemas.
 Aí voltei ao médico e iniciei um tratamento de reposição hormonal, que durou três meses. Melhorei muito. Quando você entra na menopausa o seu estrogênio para de ser produzido e essa reposição hormonal tem que ser feita de fora para dentro. Se parar, o efeito vai acabando. E foi o que aconteceu. Voltaram os sintomas. Fiz novo tratamento no ano passado e, desta vez, o efeito não foi tão bom. Talvez a dosagem tivesse que ser maior. Mas o problema da reposição hormonal tem o outro lado da moeda, o estrogênio tem que ser tomado junto com a progesterona, porque o estrogênio é altamente cancerígeno. Mesmo com a progesterona há um risco elevado de se desenvolver um câncer de mama ou de útero. Então é uma opção que nós temos que fazer. Quando entramos na menopausa, deixamos de produzir esse hormônio e começamos a envelhecer. A pele perde a elasticidade, o corpo perde a umidade, perde-se massa muscular, é um colapso! Para o tratamento hormonal ter efeito e prevenir a osteoporose, tem que durar pelo menos dois anos direto. E é aí que a mulher tem que fazer a sua opção.
Escala de voo
Depois deste voo, vou ter uma boa folga na minha escala, uns cinco ou seis dias, mas o que vem depois já estragou o meu mês e o meu humor: um sobreaviso, um voo para Buenos Aires, outro sobreaviso, um voo para Manaus, um dia de folga e um voo para Roma. Todos os voos tendo que ir para São Paulo um dia antes. Um dos sobreavisos começa às seis horas da manhã e acaba às oito horas da noite!  Ficar todo este tempo à disposição da empresa, sem saber se vai ou não voar, é de enlouquecer! Não vejo saída! O meu cansaço e a vontade de me aposentar são maiores graças à escala de voo, pela maneira como é feita. Se fosse uma escala decente, uma escala humana, tudo seria mais fácil. Mas parece que isso é impossível.
Toda vez que tem mudança de Gerência, a nossa escala fica pior. Um voo para Buenos Aires, depois de um voo para Miami é de enlouquecer. Fiz um voo para Copenhagen de dois dias inativos e uma colega falou que tinha três voos internacionais na escala com um dia de folga entre cada voo. Assim ninguém aguenta. Sem contar que a gente volta para o Brasil – Rio de Janeiro ou São Paulo - e tem que ficar não sei quantas horas esperando para voltar para a nossa base. No mês passado, eu fiz apenas 54 horas de voo e quase não fiquei em casa. Se não fazemos hora extra, deveríamos, pelo menos, ficar em casa, assim uma coisa compensaria a outra. Mas se não fazemos hora extra nem ficamos em casa, a situação fica terrível!
Para fazer um voo simples como é o de Buenos Aires, temos que ir à São Paulo um dia antes, pernoitamos lá, fazemos o voo para Buenos Aires no dia seguinte, voltamos e pernoitamos em São Paulo novamente e só no dia seguinte, à noite, voltamos para o Rio de Janeiro fazendo uma conexão! Isso é horrível! São três dias em que ficamos de um lado para o outro, à disposição da empresa, sem fazer horas de voo! É um desgaste tão grande que não dá para aguentar! Por isso estou ansiosa para sair, não aguento mais! Não vejo sinais de mudança para melhor. Se fosse uma coisa mais normal, se tivéssemos folgas suficientes para nos recuperar depois de um voo, para tocar nossa vida particular para frente, seria tão melhor! Mas vivemos em função da escala de voo e do trabalho.
Isso tudo sem contar o tempo de folga que gastamos limpando uniformes e nos arrumando para viajar. Nos dias de folga temos que fazer supermercado, pagar as contas, ir ao dentista ou levar o filho no médico. Vida social e lazer, nem pensar! O resultado é que não temos amigos. Tenho poucas amigas na aviação, mas no dia em que estou de folga elas estão voando. A gente acaba sempre ficando muito só. Eu, na minha vida pessoal, estou muito só. Procuro caminhar, fazer natação, mas é difícil dar continuidade por causa das viagens. Na aviação a gente não tem condições de fazer outra coisa. Às vezes, quero fazer uma reciclagem de inglês e até isso é um parto. A escala nunca permite.
Queria fazer um curso de dança de salão, seria mais uma forma de terapia. Também comecei a fazer terapia analítica no ano passado mas não consegui continuar. Naquela época nossa escala saía de 15 em 15 dias. Não dá para viver nem planejar a vida com uma escala assim. Era uma loucura! A minha terapeuta era muito ocupada e não podia ser flexível com os horários. Eu só conseguia ir uma vez por mês e ela disse que assim não tinha condições de continuar. Eu precisava ir pelo menos uma vez por semana. E depois também entra o fator dinheiro. Com o salário que a gente está ganhando, a gente quer fazer uma porção de coisas, mas não pode.
Experiência de vida
Acho que a minha vida na aviação me deu uma experiência muito boa. Só o fato de ter saído de casa, onde eu me sentia muito presa e sem perspectivas... Acho que mudei bastante porque era muito tímida. Inclusive as pessoas que me conheceram quando eu era adolescente jamais imaginaram que fosse escolher essa profissão. Mas eu tinha essa ânsia enorme de conhecer o mundo e pude conhecer muitos lugares. Acho que minha visão de mundo, sem a aviação, seria muito estreita. Não sei o que teria feito. Provavelmente teria tido um emprego medíocre. A não ser que eu voltasse a estudar.
Também acho que poderia ter aproveitado mais, no sentido de ter viajado mais, de ter conhecido outros lugares. Acho que me amarrei por causa do casamento. Meu ex-marido gostava muito de viajar, mas viajar com ele nunca deu certo porque o que ele queria fazer sempre tinha prioridade. Quando moramos em Bogotá, fizemos uma viagem para a Europa e outra para Nova York. Ficamos 45 dias fazendo camping. Nesses 45 dias nós visitamos muitos países. Essa viagem foi boa mas foi muito cansativa! Ele não é de ficar muito tempo em cada lugar. Tem uma ansiedade que parece que é a última vez que vai ver aquilo. Quando estávamos no baseamento de Los Angeles, só fizemos uma viagem para o Havaí. A gente queria conhecer as ilhas todas, mas também queria curtir uma praia. Eu e minha filha queríamos ficar na praia. Mas com ele tinha que ser tudo correndo. Dez minutos numa praia, dez minutos na outra e a gente não ficava em lugar nenhum.
Aposentadoria
Pretendo me aposentar dentro de três anos, aos 52 anos de idade. Pago o AERUS e penso que vou ganhar em torno de 70% do meu salário. Falando de aviação, acho que é uma profissão para poucos anos. No máximo 10 anos. Ficar 20 ou 30 anos é demais, é um sacrifício muito grande. A profissão tem suas vantagens, não há a menor dúvida. Minha filha me disse há pouco tempo: “Mãe, você está louca para parar, não é? Mas você vai sentir falta”. Sei que vou sentir falta dos lugares de que gosto, das coisas que gosto de fazer em alguns lugares, e das compras, é claro. Comprar coisas de qualidade por um preço menor, quem não gosta? Vou sentir falta. Mas, sinceramente, não estou mais aguentando essa vida.
Quero sair do voo basicamente porque me sinto muito cansada. Além disso, sinto o problema da minha filha adolescente que tem ficado sozinha quando viajo. A aviação, para mim, já não tem mais aquele atrativo que tinha antes. O voo, em si, se tornou muito cansativo. Por outro lado, eu paro para pensar no que eu vou fazer quando me aposentar. No início vai ser muito bom. Vou relaxar, cuidar da minha casa, ter uma vida normal. Mas me preocupo com o que vou fazer depois. Às vezes, fico entusiasmada, penso em voltar a estudar, fazer isso, fazer aquilo. Mas, de repente, eu olho para frente e vejo muita solidão. Minha filha está com 14 anos e daqui a uns quatro anos estará cuidando de sua própria vida e eu não vou impedir. Não vou prendê-la, quero que ela viva bem a sua vida. Quero que aproveite todas as chances que a vida lhe proporcionar, sempre procurando manter o equilíbrio, a cabeça no lugar. Mas, para mim, vejo uma vida muito solitária pela frente. Gosto de estudar, mas penso que já não tenho mais a disciplina para acompanhar um curso regular.
Perspectivas, sonhos a realizar
Como já falei, estou numa fase de altos e baixos. Então, há horas que faço planos, penso em fazer isso e aquilo, mil coisas! Mas, aí, repentinamente, caio naquele desânimo e não vejo perspectivas. Não vejo o que possa fazer depois que sair da aviação. A coisa que mais quero no momento é parar de voar, para botar minha vida em ordem, apesar de saber que vou sentir falta. Quando estava fazendo terapia analítica, falei muito sobre minha filha, meu marido, meu trabalho e aí minha terapeuta disse: “A gente já falou sobre seu papel de mãe, seu relacionamento com o ex-marido, seu lado profissional, e o seu lado mulher?” Aí eu respondi: “a mulher está morta!”
Eu não estava bem naquela época. Hoje estou um pouco melhor. Mas minha filha está crescendo e no Rio não tenho ninguém, só algumas amigas. Minha mãe, que mora em São Paulo está com 73 anos. Preciso de mais energia para mudar o rumo das coisas.


*Anita (pseudônimo) estava com 49 anos de idade e 25 de voo quando concedeu esta entrevista em Nova York (USA), em 1996.



sábado, 28 de junho de 2014

Vera

Vera*

Nasci em Estrasburgo, na França. Sou filha de imigrantes húngaros e fui registrada como apátrida. Meus pais tiveram três filhos, depois se separaram. Vim para o Brasil com minha mãe e meus irmãos num navio italiano. Eu tinha seis anos de idade e foi nessa viagem que aprendi as primeiras palavras em italiano. Anos depois eu estudei esse idioma. Chegamos ao Rio de Janeiro e prosseguimos até o porto de Santos, onde meu avô materno nos esperava.
Sempre moramos em Campo Belo, perto do aeroporto de Congonhas. O início de nossa vida no Brasil foi muito difícil, quase passamos fome. Minha mãe trabalhava como costureira. Minha avó Verônica não tinha muita cultura, mas dominava bem o lado prático da vida. Ela tinha uma horta, criava galinha, fazia crochê. Foi ela que me ensinou a cozinhar. Lembro que eu achava muito estranho o brasileiro comer arroz e feijão todo o dia...
Estudos, trabalho
Fiz um grande esforço para aprender a falar o idioma português e isso só aconteceu aos nove anos, quando fui para a escola. Em casa nós só falávamos húngaro. Também tive muita dificuldade para aprender a ler em português. Aprendi sobre a cultura brasileira através dos livros de Aloísio de Azevedo, Érico Veríssimo, Jorge Amado. Na escola eles não eram recomendados, mas eu sempre fui um pouco rebelde.
Comecei a trabalhar em escritório aos quinze anos. Como não conseguia trabalhar e estudar interrompi os estudos. Graças a Deus consegui terminar o Ginásio. Chegava do trabalho e tinha que ajudar minha mãe em casa. Fazia a feira, limpava a casa, cozinhava, passava roupa, cuidava de meus irmãos mais novos. Tive outros trabalhos antes de entrar para a aviação. Também trabalhei com uma senhora húngara, em promoção de eventos.
Hoje tenho cidadania brasileira e falo quatro idiomas: português, húngaro, italiano e alemão. Nunca gostei muito do idioma inglês, pois não me toca o coração. O italiano foi pelo coração que aprendi. O alemão foi por necessidade, para me comunicar com amigos que fiz. Acho que para aprender outro idioma é preciso ter motivação.
Aviação
Sempre fui muito alegre e minha grande paixão era entrar para a aviação. Com seis anos eu não brincava de cozinha, brincava de ser aeromoça. Além de morar perto do aeroporto, o meu padrinho tinha sido da força aérea alemã. Com quinze anos eu já queria entrar para a aviação. Um dia, conheci uma pessoa que tinha trabalhado no setor de atendimento Vip da Varig. Ele me deu as dicas de como eu deveria fazer para me inscrever na empresa e passar nos testes. Isso aconteceu em 1969. Fui à Varig sozinha. Fiz a inscrição, a entrevista, os exames de saúde e fui aprovada. No cursinho eu era a mais aplicada de todos, pois queria voar de qualquer jeito. O cursinho foi ótimo! Gostei das colegas da turma e elas continuam sendo minhas amigas até hoje. A mais velha era a Ana Baraldi, que mora em Gramado.
Primeiros voos
O meu primeiro voo foi um bate-volta que começou no Rio de Janeiro, fez escala em Buenos Aires, prosseguiu para Santiago do Chile, voltou para Buenos Aires e finalmente retornou ao Rio de Janeiro. Foi um pesadelo! Em cada trecho havia um serviço de refeição aos passageiros e nós trabalhávamos o tempo todo! A instrutora era boazinha, mas era muita coisa nova ao mesmo tempo. Eu era e ainda sou muito tímida, apesar de usar uma máscara de “cara-de-pau”. Trabalhei na cabine econômica do Boeing 707. O voo estava lotado e eu estava usando o sapato exatamente do tamanho do meu pé. Depois de duas horas de correr para lá e para cá, como uma doida, mantendo o penteado, não me descompondo, eu estava exausta! Meus pés ficaram inchados e doloridos! Hoje eu uso sapatos de tamanho maior e trabalho numa boa.
Meus colegas de turma começaram a trabalhar na ponte aérea, servindo caixa de lanche, mas por ser estrangeira, fui de cara para os voos internacionais, onde o serviço era bem mais pesado. No retorno eu estava exausta e ao mesmo tempo muito excitada. Meus pés doíam terrivelmente e estavam tão inchados que eu não conseguia nem tirar os sapatos.
Depois de quatro meses e de fazer vários voos para a Bacia da Prata, fiz um voo para Miami. Foi um voo noturno. O ar do avião estava muito seco e meu nariz sangrou. Na hora do meu descanso não consegui dormir. Era um voo com pernoite de três dias. A tripulação foi muito legal. A minha instrutora me passou uma imagem positiva da aviação. Ela também me explicou que a gente inchava durante o voo e aí eu descobri a origem do meu desconforto. Incho muito durante os voos e isso tem a ver com as glândulas renais. Se tiver que comprar roupas no dia da chegada eu tenho que comprar números menores. Sempre tive roupas com tamanhos diferentes. Procuro resolver esse problema com tratamento ortomolecular.
Relacionamento com colegas, pernoites
Sempre tive bom relacionamento com meus colegas. Mas se acontece algum problema, eu fico de boca calada e me retiro. Quando não sou bem-vinda, fico na minha. Ultimamente sinto que não me convidam mais para sair e jantar fora. Os mais velhos vão numa direção e os mais jovens para outra. Antigamente, mesmo sem afinidade, as pessoas saíam juntas. Hoje elas se afastam, não dão tempo para o mútuo conhecimento. De modo geral, acho que todos estão mais egoístas e materialistas. Nos pernoites existe muita solidão. Muitas vezes, as pessoas gostariam de trocar ideia com alguém, mas ficam sozinhas. Voltam para suas casas e continuam sozinhas. Ficam carentes. Por isso muitos bebem, outros têm comportamento esquisito. Alguns procuram ajuda psicológica. No meu caso, aprendi a ser sozinha e me dou bem comigo mesma.
Problemas com passageiros
Na aviação, nós conhecemos todo tipo de pessoas, temos contato estreito com o ser humano. Vemos muitas coisas boas e também as ruins, tanto de colegas quanto de passageiros. Alguns voos são muito difíceis. Há passageiro que acha que, pelo fato de você estar ali servindo, você é a sua mucama particular. Não dizem “por favor”, estão sempre exigindo alguma coisa. Alguns são egoístas e não conseguem ver os outros tantos passageiros que estão esperando para serem atendidos. Ou então não podem nos ver paradas um minuto sequer. Acham que somos máquinas e que não precisamos parar para nos alimentar, ir ao banheiro e outras coisas. Mas até as máquinas precisam de combustível. A verdade é que se eu estiver servindo e tiver vontade de ir ao banheiro, eu simplesmente não posso ir. Mas sou humana: tenho fome, sinto sono, sinto cansaço.
Já voei com passageiros mal educados. Uma vez uma passageira veio reclamar que os dois homens sentados nas poltronas de trás estavam falando palavrões e dizendo coisas maldosas para ela por que achavam que o jovem ao seu lado era seu amante, mas era o seu filho! Eles estavam bêbados. Primeiro eles vieram mexer comigo e como não dei bola escreveram uma carta de reclamação a meu respeito. Uns dois anos depois, um desses passageiros foi preso, envolvido com tráfico de drogas e a notícia saiu no jornal...
Os passageiros da cabine econômica são mais simples e, muitas vezes, mais educados. Muitos dos passageiros da cabine executiva acham que deviam estar na primeira classe. Os novos ricos acham que têm “o rei na barriga” e que devem ser sempre os primeiros no atendimento. O mais chato é o que quer viajar na primeira classe sem pagar a diferença. O verdadeiro passageiro de primeira classe quase não dá trabalho. Há outros que quando viajam na primeira classe, geralmente de favor, querem mostrar que são o que não são. Uma vez, um deles, embarcou com três latas de caviar e comeu as três durante o jantar!
Perfil da Comissária de Voo
A Comissária de Voo é uma pessoa educada, que anda bem arrumada, decentemente maquiada. Alguém que está ali exercendo sua tarefa e sendo respeitada pelo trabalho que está fazendo. Antigamente, havia um pouco mais de glamour, pois havia mais exigência e disciplina. Também se exigia mais educação. Hoje há mais liberdade e as pessoas estão mais à vontade. Se a empresa não cuidar disso vai virar relaxamento. Liberdade demais também não é bom. É preciso ter um padrão de qualidade.
Paqueras e cantadas
Na aviação, criei aquela fama de que a todos encanto e não sou de ninguém. Fui paquerada, mas nunca tive namorados, preferia ter amigos. Eu sabia que não estavam a fim de assumir compromissos, só queriam passar um bom momento e depois dizer: “Consegui faturar!”. Aí eu também sacaneava. Uma vez, um comandante, de um metro e noventa de altura, metido a astro de Hollywood, mas com uma cultura bem provinciana, levou a dele. Foi num voo para Roma. Ele tinha comentado com um colega que naquele voo eu não escaparia. E é claro que eu fiquei sabendo do comentário. Então pensei: “Deixe comigo”.
Ele me convidou para jantar num restaurante bem chique. Inclusive outro colega nosso foi junto. Fez questão de pagar a minha conta e depois me convidou para ir dançar no Scarabóchio. Lá fomos nós. Foi lá que eu conheci o Sérgio Endrigo, cantando maravilhosamente! Provavelmente o comandante queria me deixar de porre, só que ele não sabia das minhas origens e da minha resistência para a bebida. Eu não tomo bebidas destiladas, mas vinho e champanhe é comigo mesmo. Tomamos muito champanhe, mas eu também tomei muita água mineral. E quando chegamos à terceira garrafa quem estava de porre era ele.
Tive que chamar os seguranças para ajudar a colocá-lo no táxi que nos levou de volta ao hotel. Quando chegamos ao hotel, foi preciso quatro homens para tirá-lo do táxi, pois era grande e pesado. Pedi ao pessoal do hotel que o deixassem no quarto dele e tirassem os sapatos. Eu ainda fiquei conversando com o pessoal da recepção por um bom tempo. Eles estavam terminando o serviço e foram jantar às quatro horas da manhã. Ainda comi um prato de macarrão com eles e tomei mais dois copos de vinho. Depois é que fui dormir. E o comandante, no dia seguinte, não sabia como tinha ido parar no quarto e como tinha tirado os sapatos. Não sabia de nada. Depois disso começou a me tratar com distância e frieza.
Fui bastante paquerada por passageiros e por colegas. Mas eu tratava a todos como irmãos e logo eles mudavam o comportamento. Já tive passageiro que foi me cantar na galley, durante o plantão, enquanto a mulher estava na poltrona sentada. Eu não deixei passar. Ele tinha me pedido o número do telefone. Eu anotei o número e entreguei para ele na frente da mulher: “O Senhor pediu o meu telefone. Aqui está”. Ele ficou branco, verde, amarelo, azul. Esse eu tenho certeza de que nunca mais cantou comissária!
Relacionamento amoroso, mudanças, casamento
Ainda bem jovem, tive um namorado e fui muito apaixonada por ele, mas a minha família não aceitava o namoro porque ele era dez anos mais velho que eu. Ele era italiano, descendente de judeus e separado. Minha mãe e meu padrasto, antes de se casarem também eram separados, mas eles queriam que eu me cassasse com outro rapaz, de quem eu não gostava. Foi uma briga. Eu já trabalhava fora e acabei saindo de casa. Fui morar com a família de uma amiga e fiquei namorando o italiano até descobrir que ele mentia. Não suporto mentiras nem traições. Quando comecei a trabalhar na aviação, morei algum tempo com uma colega de voo, que arranjou um namorado e foram morar juntos. Depois eu fui morar num quarto alugado, na casa de uma senhora que é minha amiga até hoje.
Toda mãe acha que a filha deve casar e ter filhos. Mas depois do italiano e de outro, minha família nunca mais se meteu. Casar era importante para mim, mas acho que nunca encontrei realmente a minha cara metade. Casei uma vez com alguém que eu conhecia desde criança, que era um grande amigo, depois que ele ficou viúvo. Isso foi há dezenove anos. Ele era catorze anos mais velho, tinha três filhos e nossas famílias eram amigas. No início foi uma boa experiência e uma grande mudança em minha vida, pois de uma hora para a outra eu tinha uma grande família. Os filhos, que eu conhecia desde pequenos, ajudaram a nos juntar.
Casamos e ficamos juntos doze anos. Nesse período me dediquei integralmente à família. Criei os filhos dele. Eles mesmos reconhecem que, se não fosse a minha presença e dedicação, seriam vagabundos. Acho que essa foi a minha missão. Muitas vezes tive que ser uma madrasta, dura mesmo! Na época eles tinham 13, 14 e 16 anos. Hoje são homens casados e excelentes pais de família. Estão bem economicamente. Eu era muito dedicada, vivia só em função da família. Quando viajava, fazia comida e deixava quase tudo pronto. Sofri, me decepcionei muito, e só não terminei o casamento antes porque gostava muito dos filhos, meus enteados. A minha sogra também era uma pessoa maravilhosa. Foi uma mãe, alguém que amei muito. Ela me ajudava em tudo.
Vida familiar
Antigamente as mulheres da aviação viviam uma disciplina quase militar. Não podiam casar nem ter filhos. Quando decidiam casar, tinham que sair do voo. As que não casavam acabavam ficando sozinhas e carentes, pois dedicavam sua vida à aviação. Algumas tinham casos com comandantes e eles só podiam ficar juntos nos pernoites.
Essa situação mudou e devemos isso ao nosso diretor do Serviço de Bordo, Sr. Sérgio Prates. Ele permitiu que elas assumissem seus compromissos e dizia que o importante é que fossem felizes e realizadas emocionalmente, pois assim trabalhariam melhor. Ele também permitiu que os casais trabalhassem juntos. Então surgiu a questão dos filhos e assim cresceu a responsabilidade e aumentaram as preocupações da mulher comissária.
Acredito que se a comissária é casada com um colega de trabalho, existe mais compreensão e respeito na relação. Os homens que não são da aviação geralmente não compreendem a ausência da mulher. E quando a mulher chega cansada do voo e quer descansar, o companheiro quer sair, fazer outras coisas. Ou as crianças estão precisando de seus cuidados. Neste caso, ela precisa se desdobrar e ainda se sente culpada porque uma criança pequena precisa da mãe e ela tem que se afastar para trabalhar.
Conquistas profissionais
Durante muito tempo, as mulheres trabalharam como auxiliares, não podiam ascender aos cargos de Supervisores e Chefes de Equipe. As mudanças foram acontecendo aos poucos. Primeiro, foram promovidas como Primeiras Comissárias, depois Supervisoras de Cabine e, finalmente, Chefes de Equipe. E hoje, no Brasil, já temos mulheres pilotos. Coisa que 20 anos atrás ninguém podia imaginar dentro de nossa empresa, tão machista que era!
Preparação para os voos
Não gosto de arrumar as malas, para mim é o pior momento da viagem. Também não gosto de desfazer as malas porque chego muito cansada. Tiro os perecíveis e deixo o resto para depois. Há coisas que já fazem parte da bagagem e que nem tiro da mala. Quando estou de plantão ou sobreaviso, fico muito ansiosa se as malas não estiverem arrumadas. Então fico maquiada e com as malas prontas, perto do telefone, esperando que me chamem para trabalhar.
Nas programações normais, eu sigo um ritual: arrumo as malas, vou tomar banho, e enquanto me arrumo, mentalizo um bom voo e o trabalho com colegas, com os quais me sinta bem. 
Questões de saúde
Quando a escala está apertada ficamos estressadas, não importa a idade. A saúde declina e a atuação também. Com “stress” a gente desenvolve doenças orgânicas porque o nosso sistema imunológico deixa de funcionar direito. O trabalho em excesso é prejudicial a qualquer um. Nós trabalhamos em condições bem adversas, com altitude, cabine pressurizada, micro-vibração. Algumas pessoas têm mais resistência, outras menos. Eu tive “stress” e precisei me afastar do voo.
Tinha um voo para fazer, mas estava resfriada e fui ao serviço médico da empresa. Eles não quiseram me dar licença médica e me receitaram um antigripal. E assim, resfriada, viajei para Nova York. Lá, a temperatura estava quatro graus abaixo de zero. Quando voltei, estava com pneumonia, com a pleura estourada. Fiquei afastada do trabalho por muitos meses. Foram meses horríveis!
Nos quatro primeiros, tive que ficar na cama em repouso absoluto. O ar tinha que ficar ligado o tempo todo para manter a temperatura seca. Não podia nem ler muito, para não me cansar. Mesmo assim aproveitei aquele tempo para ler. Li a Bíblia. É o livro da humanidade, mas contém também muita mentira e contradição. Foi interessante por que pude levantar outras questões. Sempre tive muita sensibilidade e intuição. Também li sobre história, arqueologia, dogmas e religiões.
Viagens nas férias
Além dos voos que fazemos a trabalho, nas férias já fui para muitos lugares. Na Hungria eu tenho as minhas raízes. Desde o primeiro dia em que pisei lá, me senti em casa. Em Budapeste, conheci parentes que não conhecia e eles estavam me esperando. Fui de navio porque eu queria saber como era chegar pelo Danúbio. Isso aconteceu pela primeira vez em 1984. Tenho ido a Budapeste todo ano. Antes de voltar, faço jantares de despedida e cada vez a mesa fica maior. Já pensei, quando estou em Budapeste, em ficar por lá porque a vida cultural é intensa. A Hungria tem dez milhões de habitantes. Budapeste é pequena em relação ao Rio de Janeiro e São Paulo, mas a atividade cultural é muito intensa.
Os húngaros magiares são muito cultos, mesmo em profissões mais humildes. O jeito que eles cumprimentam as mulheres é: “Beijo suas mãos, minha senhora”! Eles são educados assim desde pequenos. E mesmo quarenta anos de comunismo não tirou essa maneira gentil de cumprimentar. Os húngaros são os homens mais gentis. Mas as minhas raízes no Brasil também são muito fortes.
Geralmente, nas minhas viagens, visito os museus, visito os mercados. Gosto de ver o que o povo come e assim analiso a cultura de cada lugar, pois gosto de cozinhar. Gosto muito da Itália. Na Itália podemos estudar a história em suas várias épocas. Gostaria muito de ir para o Oriente Médio, mas tenho medo.
Acidente e separação
Sete anos atrás, em dezembro de 1988, torci o pé e fiquei afastada do trabalho. Fui operada por um ortopedista da própria empresa, um profissional excelente e um ser humano maravilhoso. Naquela época eu tinha 42 anos, era casada e sustentava a casa, pois meu marido estava desempregado. Em matéria de dinheiro ele me deve muito. Hoje, vejo que fui muito burra, mas eu achava que era importante ter uma família e me dediquei a ela com lealdade. Sou uma leoa lutadora. O que mais me doeu foi quando, ainda de muletas e muito insegura, sem saber se ia voltar para o voo, descobri que meu marido tinha uma amante e mentia para mim. Os filhos já estavam casados e ele estava acostumado com as minhas viagens. Então, quando fiquei de licença médica, por causa do acidente, exigindo cuidados especiais, ele não aguentou a falta de liberdade e começou a mentir.
Descobri que ele me mentia, nós discutimos e ele me espancou. Foi um covarde! Fiquei estendida no chão, longe das muletas, com três costelas quebradas! Ele ainda me deu joelhadas e chutou meu rosto! Fiquei deitada por mais de duas horas no chão escuro da sala, sentindo uma enorme solidão. Fui socorrida por meu irmão. O médico tirou radiografias e não quis acreditar no resultado. Eu não fiz Boletim de Ocorrência porque não queria aparecer na crônica policial e também para que os filhos não sentissem vergonha do pai. Maior que a dor física, foi a dor moral. Depois disso nunca mais quis falar com ele. Nem no tribunal. Nossa relação tinha sido de amizade e companheirismo. As amizades dele é que não prestavam. Relevei muita coisa.
Demissão, desconsideração, consequências
Eu estava com 47 anos quando recebi um telegrama para comparecer à chefia. Ao chegar lá, eles disseram que eu estava na idade de me aposentar e que deveria pedir demissão, pois a empresa estava passando dificuldades financeiras. Se eu pedisse demissão a empresa não precisaria pagar os 40% do fundo de garantia. Se eu fosse boazinha e aceitasse a proposta, a empresa me daria, por dois ou três meses, uma ajuda de custo, já que a aposentadoria pelo INPS demoraria um pouco. Eles também me dariam duas passagens por ano e assistência médica.
Apesar da revolta eu não perdi a classe. Respondi que não estava querendo me aposentar, pois ainda me sentia jovem e tinha força para o trabalho. Mas eles já estavam com a carta de demissão pronta, onde a empresa dizia que não precisava mais dos meus serviços. Na verdade, eles estavam me demitindo. Acabei assinando a carta de demissão. Eu estava com 24 anos e nove meses de empresa.
Depois de assinar a carta de demissão, eles me deram um papel comunicando que, em 24 horas, eu deveria devolver o crachá, os uniformes e as malas. Também deveria entregar a carteira de trabalho para que dessem baixa. Recebi o salário do mês, o pagamento das férias, sete anos de décimo terceiro e um mês de aviso prévio.
Voltei para casa arrasada. Para mim foi terrível ter que entregar os uniformes. Não conseguia tirar meus objetos pessoais de dentro da bolsa. Uma amiga me ajudou a fazer isso e foi comigo ao setor de uniformes. Ela me deu muito apoio. Comecei a sentir câimbras nos joelhos e quando saí de lá me deu uma dor forte no peito e uma vontade imensa de chorar. Minha amiga percebeu que eu não podia ficar sozinha e me levou para jantar. Ela sentiu meu sofrimento e nós choramos juntas. No fundo do coração eu não queria acreditar que aquilo que estava vivendo fosse verdade.
Depois da demissão, no Departamento de Pessoal, fui tratada como um cachorro velho e imprestável. Se ainda me tratassem com respeito, afinal eu estava bem arrumada, pois sempre fui lá bem vestida e maquiada.
Passaram-se dois dias e eu fui falar com o Diretor do Serviço de Bordo, que na época era o Sr. Tombini. Meus anjos me guiaram. A secretária disse que ele não podia me receber, mas vi que ele não estava ocupado. Eu disse que não tinha pressa. Em 15 minutos ele me recebeu. Disse a ele tudo o que eu fui e o que fiz na empresa. Quando me acidentei, vendi o apto para pagar médicos e fisioterapeutas e fiz tudo o que podia para me recuperar e voltar para o voo porque gostava da minha profissão. Disseram que eu ia ficar dois anos sem trabalhar, mas em seis meses eu fiquei boa. Nem os médicos acreditaram.
Também disse que podia procurar emprego em outra empresa, mas que ia entrar na justiça contra a Varig porque não recebera os meus direitos trabalhistas. Como eu poderia procurar emprego em outra empresa, processando na justiça a empresa onde trabalhei durante vinte e cinco anos? Se eles tivessem me demitido de acordo com a convenção coletiva, deviam ter pago os meus direitos. Disse ainda que entraria na justiça e ganharia a causa. Por isso seria melhor ele me readmitir. Ele me ouvia e parecia não estar acreditando. Depois disse que ia consultar o departamento jurídico.
Muitos colegas mais antigos, que não pagavam o AERUS, tinham passado pelo mesmo problema. Eu não fui a primeira a ir lá pedir a readmissão. Nós íamos exigir a reintegração e todos os direitos e eles iam gastar muito dinheiro. Foi então que se deram conta da burrada que tinham feito. Acho que eles nos subestimaram. Esse pessoal, do Departamento Jurídico e do Departamento de Pessoal da empresa entende muito pouco de aviação e de tripulantes, mas deviam, pelo menos, entender melhor as questões trabalhistas.
Como consequência, tive que mudar de apartamento porque o aluguel ficou alto demais para mim, e eu estava desempregada. Alguns dias depois, eles me ligaram, pediram nova carteira de trabalho e fotografia. Um mês e pouco depois, fui readmitida. Mudou a minha matrícula, mas mantive todos os direitos. Fui buscar os uniformes com a maior alegria, mas só recebi um único conjunto, uma única veste. Mesmo assim fiquei muito feliz, muitos colegas foram solidários comigo. Foi nesse momento que vi quem eram os amigos.
Aprendi, com essa triste experiência, que não devo levar desaforo para casa, nem me rasgar pela empresa. Fiquei mais segura, mais forte. Agora lido melhor com o meu trabalho. Mas encontrei outras colegas que ficaram muito abaladas e envelheceram de uma hora para a outra.
Solidão, discriminação
Agora moro num apartamento alugado e estou sozinha. Acho que já criei manias. De vez em quando, a solidão aparece, mas por outro lado sou dona do meu tempo e da minha vontade. Posso fazer o que quero e ninguém me faz cobranças. Essa é a liberdade que tenho. Se estiver com outra pessoa, e valer a pena, posso sacrificar a liberdade, porque terei compensações.
Hoje sou mais exigente. Em alguns lugares onde não me sinto bem, não tenho mais paciência para escutar “abobrinhas”, ficar com um sorriso amarelo no rosto e um copo na mão. Para me relacionar com as outras pessoas, preciso sentir afinidade, aí sim me sinto bem. A maioria das pessoas é superficial e gosta de coisas que não têm importância.
Prefiro ficar só e ter tempo para meus estudos. Gosto de estudar Ufologia e a vida de extraterrestres. Também gosto de estudar Radiestesia, que é o estudo das formas e das energias. Os terráqueos mais evoluídos, em nosso planeta, mal chegam a 1%...
Não me sinto discriminada, mas as mulheres acham que estou sempre linda, em companhia de homens maravilhosos que carregam as minhas malas, que dentro do avião só faço social, que me hospedo em hotéis deslumbrantes! Nós ficamos em hotéis muito bons. Mas nenhum ser humano consegue ser lindo, maravilhoso, bem arrumado, bem humorado vinte e quatro horas por dia, a semana inteira e o mês inteiro! Elas imaginam que nossa vida é de cinema, mas nós sabemos qual é a nossa realidade...
Aposentadoria
Estou com 49 anos e não estou cansada da aviação nem desiludida. Se tivesse que começar de novo, faria tudo outra vez. Amo a aviação. As mulheres jovens deveriam passar pelo menos dois anos nessa profissão porque é uma boa escola de vida.
Acredito que vou poder voar até os 55 anos, mas conheço colegas que com 45 anos já não aguentam mais. Acho que a idade ideal para a aposentadoria da mulher na aviação é 50 anos e quem quisesse continuar poderia ter essa opção. Mas com uma aposentadoria decente, melhor do que a que temos hoje em dia, que força as comissárias a ficarem trabalhando mesmo sem ter condições.
Planos para o futuro
Não tenho grandes expectativas em relação ao futuro. Quando me aposentar, vou continuar com meus estudos espiritualistas e quero trabalhar nessa área, com a energia cósmica dessa nova era. Quero passar minha experiência para os mais jovens. Vou continuar vivendo, procurando ser saudável e ativa. Continuar sorrindo, brincando, mesmo aos oitenta anos. No futuro isso será normal, não haverá tanta discriminação.
Gostaria, também, de me casar de novo. Ainda não encontrei essa pessoa, mas aqui dentro de mim acredito que vou encontrar alguém com o mesmo nível cultural, alguém que seja companheiro, que tenha savoir-vivre, que seja a minha alma gêmea e espiritualmente elevada. Vai ser um relacionamento muito bom. Tenho a intuição de que isso vai acontecer. Não estou correndo atrás. Não estou desesperada. Considero-me um ser sagrado e tenho tempo.


*Vera (pseudônimo) estava com 49 anos e tinha 27 de voo quando concedeu esta entrevista em um pernoite, em Frankfurt (Alemanha), em 1995.

Mara

Mara*

Nasci em Aracaju, Sergipe. Minha mãe é descendente de holandeses e portugueses. Meu pai é descendente de índios e portugueses. Eles se casaram, tiveram cinco filhos e depois se separaram. Eu sou a mais velha dos cinco filhos do casal. Minha mãe sempre foi muito apaixonada por meu pai e por não suportar vê-lo com outra mulher e outra família, resolveu se mudar para São Paulo. Ela me trouxe junto, mas meus irmãozinhos menores ficaram com meus avós maternos, que eram fazendeiros.
Infância e adolescência
Minha mãe queria mudar de vida e tinha apenas 21 anos quando veio para São Paulo. Eu tinha uns quatro anos e sempre fui sua companheira. Fui uma espécie de confidente, pois ela me falava de todos os seus problemas. Muita coisa eu não entendia e cresci com a sensação de não ter tido uma infância normal. Muitos anos depois, acabei fazendo psicanálise e hoje entendo as coisas que na época não entendia. São Paulo era uma cidade muito grande e não foi fácil a nossa adaptação. Minha mãe conseguiu emprego, mas sentia muita saudade da família e acabou voltando. Alguns anos mais tarde, ela resolveu encarar São Paulo novamente. Veio comigo e com apenas uma mala. Isso foi em 1949. Chegamos no dia do Trabalho. Eu já tinha 12 anos e me sentia adulta, queria trabalhar e ganhar minha independência.
Estudos, trabalho
Ficamos na casa de uma conhecida e fomos as duas procurar emprego. Eu já era alta, com corpo de mulher. Saí a pé e andei durante horas. Só tinha o RG, mas para trabalhar precisava da autorização do juiz de menores, se comprovasse que estava estudando à noite. Então comecei a cursar o ginasial, à noite. Tive que insistir para conseguir o emprego, por causa da pouca idade. De tanto insistir consegui um emprego numa fábrica de calçados. Comecei pintando sola de sapatos. Quando a gente quer a gente consegue. Até hoje acho que “querer é poder”. Só depois é que minha mãe conseguiu um emprego. 
Na casa onde ficamos, tinha um rapaz uns 10 anos mais velho que eu e ele passou a se interessar por mim.  Para minha mãe ele era um bom partido e eu sofri certa pressão para namorá-lo, mas não me interessava por ele e nem queria saber da vida de casada. O maior trauma da minha vida foi o primeiro beijo. Tive vontade de morrer. Depois disso decidi procurar um lugar para alugar e morar com minha mãe. Ela não gostou muito da ideia. Eu tinha 13 anos de idade, já estava me sentindo segura no emprego e trabalhava por produção. Consegui convencê-la a mudar e foi um alívio. O rapaz continuou a me procurar, mas depois desistiu.
Quando completei 14 anos, o pessoal da empresa começou a me pagar o salário mínimo e passei a ganhar mais que minha mãe. Comecei a administrar o meu dinheiro e comprar as coisas para nossa casa. Continuei estudando à noite, fiz secretariado e cursos adicionais de estenografia, taquigrafia e até de inglês. Quem estudava podia sair mais cedo do trabalho. Trabalhei em setores diferentes da empresa e quando terminei o curso de secretariado eles me chamaram para trabalhar no escritório, mas eu não aceitei. Lá eu ganharia menos que na produção e o dinheiro era muito importante para mim. Estava com 16 anos e eles não entendiam que eu preferisse continuar trabalhando na fábrica e não no escritório.
Estava fazendo o curso de secretariado quando me perguntaram o que eu gostaria de ser. Respondi que queria ser aeromoça porque gostava de viajar. Viajar para mim significava liberdade, independência. Era apenas um sonho, coisa que na época não me preocupava muito, porque o que eu queria mesmo era trabalhar e ganhar dinheiro. Quando fiz 17 anos, pedi para minha avó trazer as minhas irmãs. Uma tinha 15 anos e a outra 14. A minha irmã de 15 começou a trabalhar, a outra continuou os estudos.
Então nos mudamos para um lugar um pouco melhor e montamos uma pequena fábrica de camisolas em casa. No início, a gente pegava as peças cortadas e costurava, depois fazíamos tudo. Passávamos os fins de semana trabalhando. Era uma loucura! Éramos muito unidas. Só faltava o meu irmão que nunca tinha morado com minha mãe. Para ele foi uma grande mudança vir morar conosco, quatro mulheres. Ele tinha 14 anos e eu 19 anos. Continuou os estudos, mas estava muito atrasado e teve que fazer um grande esforço. Foi perseverante, fez o curso de Contabilidade, depois Faculdade de Contabilidade e mais tarde cursou Administração. Ele também teve que trabalhar, ajudar, entrar no nosso ritmo. A gente separava o dinheiro para as despesas e para a poupança. Tudo era dividido igualmente entre nós. Naquela época, não tínhamos muitos amigos nem lazer. Até os vizinhos se preocupavam com isso. A gente quase não saía. Era uma vida de estudo e trabalho.
Eu continuava a trabalhar na mesma empresa e, paralelamente, ajudava na nossa oficina de confecção. Fazia mil coisas. Ainda estudava inglês quando comecei a cursar a faculdade de Filosofia. Depois mudei para o curso de Pedagogia. Sentia muita atração pelo misticismo, gostava de escrever. Sonhava... Delirava... Sonhava e concretizava os meus sonhos. Mas, um dia, a empresa em que eu trabalhava desde os 12 anos, que não estava indo bem, foi à falência. Para mim foi um choque, um golpe muito grande. Eu me sentia o chefe da família e logo fui procurar outro emprego. Comecei a dar aulas em casa, de matemática e português. E continuei estudando à noite e a procurar emprego.
Aviação
Um dia peguei o jornal do Estado de São Paulo e vi um anúncio da Vasp (que guardo até hoje). Isso foi no segundo semestre de 1967. Fui até o aeroporto de Congonhas fazer a inscrição, sem falar nada para a minha família. Voltei para casa, sem acreditar muito, pois ainda era apenas um sonho. Ao mesmo tempo, fiz teste em outra empresa, para trabalhar como secretária. 
Na Vasp, durante os testes, fiz a redação “a importância de ser comissária”, da qual não esqueço até hoje. Estava estudando, trabalhava desde a adolescência, escrevi sem nenhum problema. Depois fiz a entrevista, os exames médicos e passei. Só então contei para a minha família e ninguém acreditou. Parecia meio contraditório, com todos os cursos que eu já tinha feito. Minha mãe não achava um bom trabalho para mim, ainda mais por causa das viagens e por ter que dormir fora de casa. Meus irmãos ficaram neutros. Mas no nosso bairro foi uma grande sensação!
Curso de Comissários
Comecei a fazer o curso em janeiro de 1968. Tinha que pegar duas conduções para chegar lá. O curso durou quatro meses; estudávamos de manhã à noite. A nossa professora se chamava Madre Agnes (ela tinha sido freira) e era ela que cuidava de tudo no ensino da VASP: fazia a seleção, dava o curso que incluía balanceamento do avião, regulamentos do DAC, regulamentos da empresa, primeiros socorros, postura. Tinha outro professor que dava aula de aerodinâmica.
Injustiça
Madre Agnes tinha trabalhado como comissária e depois fora transferida para o Departamento de Ensino da Empresa. Ela se dedicava totalmente ao que fazia e não tinha hora para terminar as aulas. Mais tarde, quando estava com 45 anos de idade, por questões políticas dentro da empresa, foi bruscamente transferida para o voo. Eu cheguei a ser instrutora de voo dela. Foi muito constrangedor. Ela tinha voado DC-3, estava há 15 anos fora do voo e teve que trabalhar no One-Eleven e no Boeing 737-300. Isso aconteceu por volta de 1974. Foi um grande problema para ela, pois para se aposentar tinha que ter um número certo de horas de voo e ela não tinha por ter ficado muito tempo dando instrução no Cursinho de Comissários da Vasp.
Naquela época a empresa estava muito dividida porque os tripulantes ganhavam por milhas e por hora. A Vasp teve vários problemas com as comissárias mais antigas, pois não sabia como encarar o problema daquelas com mais idade. Foi muito difícil para Madre Agnes e para mim, porque ela tinha sido a minha grande instrutora. Ficamos quase seis meses juntas. A partir daquela época, quem dava instrução no departamento de ensino também continuava a voar. A postura da empresa deixou muito a desejar. Madre Agnes trabalhou alguns anos mais e se aposentou. Nunca se casou e teve uma vida muito solitária. A aviação é boa, mas a aposentadoria é muito sofrida.
Primeiros voos, aeronaves, pernoites
Comecei a trabalhar em maio de 1968. Tive que interromper meus estudos, pois não deu para conciliar com a programação dos voos. Durante o curso eu saía e voltava para casa todos os dias, mais parecia um serviço de escritório. Minha família só acreditou que eu ia voar quando peguei minhas malas e uniformes. Naquela época a gente usava chapeuzinho.
Meu primeiro voo foi uma ponte aérea para o Rio de Janeiro. Era disposta, tinha iniciativa, mas tímida na comunicação com as pessoas. Tremia tanto que não consegui fazer o serviço, que era tão simples - colocar suco nos copos, colocar na bandeja e servir. Eu tinha um metro e setenta centímetros de altura e pesava 45 quilos. Era esquelética. Meu colega de voo, que também era meu instrutor, teve que trabalhar quase sozinho.
A Vasp só tinha dois aviões One-Eleven recém-chegados, e os aviões pequenos, os Vickers 701 (com 44 lugares), o 827 (com 56 lugares) e os DC-3, DC-4 e DC-6. No DC-3 tinha que se fazer balanceamento de carga e nesse equipamento só trabalhavam os comissários. As tripulações eram compostas de comandante, copiloto, engenheiro de voo e comissário. Nos pernoites, ficavam dois em cada quarto. Ficavam mais em “casas de pernoite”, onde tinham que dormir em rede. Ou em alguns hotéis.
Fiquei 28 dias só fazendo voos de Ponte Aérea. A minha empolgação foi crescendo a cada voo, como se tivesse consciência de que estava realizando um sonho. No meu primeiro pernoite em hotel, fiquei morrendo de medo, cheguei a encostar os móveis contra a porta. Mas a adaptação foi fácil, pois eu gostava de ter contato com as pessoas, de conversar. Também gostava de seguir as normas da empresa. Sempre fui muito disciplinada. A Madre Agnes tinha nos dado um treinamento bem severo e deixou bem claro que o comandante tinha o poder de desembarcar e botar na rua qualquer comissário que não cumprisse suas obrigações. Então, o mais difícil para mim era me apresentar ao comandante. Quase morria de medo e de vergonha.
Comissárias x Comandantes
Naquela época eu tinha medo dos comunistas, dos militares e dos comandantes. Nunca consegui olhar para eles como homens, via mais a posição e a relação era estritamente profissional. Era muito raro uma comissária se relacionar com um comandante. O primeiro casal que eu conheci no voo era de comissários. A gente ouvia algumas histórias. Tinha um comandante que ficou famoso por ter se casado com muitas comissárias. Diziam que de cada nova turma ela arranjava uma nova esposa, mesmo que tivesse que ir casar no Paraguai. Casava, montava casa para elas e as tirava do voo. Ele era muito divertido e cativava as pessoas com facilidade.
Pressão, sim, sofria muita! Não podia jantar nos pernoites se não fosse com a tripulação técnica. O comandante fazia relatório para a chefia, caso não fôssemos junto. Era o que a gente ouvia. Então, fiz amizade com uma colega de voo e nós combinamos nunca nos envolver com comandantes. Cheguei a inventar que tinha um noivo e então deixei de receber muitos convites para sair ou jantar fora nos pernoites. E assim economizava minha diária e podia ficar lendo no quarto do hotel. Também fazia trabalhos manuais.
Caixa de medicamentos
Nós levávamos a caixa de medicamentos para os pernoites, caso algum tripulante passasse mal. As comissárias eram as responsáveis. Acho que era uma desculpa que eles tinham para nos ligar. A mais nova, por coincidência é que ficava com a caixa. Sonrisal era o remédio que mais pediam. Quando fui Chefe das Comissárias, foi uma das primeiras coisas que eu mudei. 
Uma vez um comandante, que era uma ótima pessoa, mas que ficava totalmente inconveniente quando bebia, insistiu para que eu fosse jantar com ele. Mas eu não fui. Quando voltou do restaurante, ele bateu na minha porta e eu não atendi. Inconformado, ele foi para o quarto dele e telefonou, disse que estava passando mal e queria um Sonrisal. Liguei para a copa e pedi água, pois o comandante ficou de vir buscar o remédio. Quando eu abri a porta ele praticamente caiu em cima de mim, de bêbado que estava. Ele me agarrou e eu fiquei apavorada! Exatamente nesse momento o garçom trouxe a água e bateu na porta, que só estava encostada. Eu falei “entre” e quando falei isso o comandante caiu em si. O garçom já era conhecido nosso e serviu a água. O comandante tomou o Sonrisal e saiu em seguida. Essa cena eu não esqueço! Acho que fui uma das primeiras que conseguiu se safar tão rapidamente. Nunca confrontei; sempre procurei outras saídas.
Relacionamentos nos pernoites
Muitas colegas minhas passavam o voo inteiro alimentando a esperança dos colegas e depois, no pernoite, fugiam. Essa era a queixa que eles faziam. Nunca fiz isso! Sempre fui direta, tratava-os com respeito e distância e até me tornei amiga de muitos deles. Aprendi sobre relacionamentos conversando com eles. Gostava dos colegas que eram educados e objetivos. Nunca me apaixonei por nenhum colega. Minha filosofia era não misturar a vida profissional com a emocional. Namorei muito, mas fora da aviação.
Quando eu era nova na empresa, as comissárias antigas, que tinham caso com comandantes, diziam “você vai viajar com o meu namorado”. Elas já avisavam para enquadrar as colegas mais novas. Ou então, no pernoite, a gente descobria que eles eram casados e aquilo me deixava intrigada. A colega, durante o voo, nem olhava para o comandante, mas no pernoite dormia com ele... Eu ficava sabendo, porque ficávamos juntas no quarto do hotel, mas ela não dormia lá. E no dia seguinte, na apresentação ou durante o voo, eles nem se falavam! Aquele fingimento, aquela hipocrisia me fazia mal.
Conflitos, novos conceitos
Essa foi uma fase difícil! Eu ficava em conflito, pois tudo aquilo desestruturava meus conceitos. Minha mãe era separada do meu pai, mas nós vivíamos de acordo com os conceitos mais tradicionais. Lembro que ficava com uma sensação estranha e procurava entender o que estava acontecendo. Tive que me encontrar sozinha porque não tinha quem me desse suporte dentro da aviação. Não tinha com quem conversar e desabafar, mesmo sendo instrutora e chefe das comissárias.
Foi um período de mudanças e novos conceitos. O importante é que eu gostava do meu trabalho e procurava atender bem os passageiros. Fiquei na aviação por causa do dinheiro, pois precisava pagar meu apartamento. O tripulante é um ser muito carente. Ele quer toda essa liberdade, mas ao mesmo tempo não quer sofrer as consequências, o preço a pagar. Depois que se aposentam, percebem que eram felizes e não sabiam.
Aviação tranquila
Tive uma fase muito boa, quando fiquei trabalhando durante 10 anos no Airbus que chegou em 1982. Eram só dois aviões. Nós não ganhávamos muito dinheiro, mas tínhamos um grupo maravilhoso e uma escala muito boa. Em todos os pernoites a gente se reunia, fazia churrasco, ia à praia, passeava. Fazíamos festas, parecíamos uma família, comemorávamos aniversários, trocávamos bilhetes, telefonemas... Foram 10 anos juntos. A empresa estava numa fase de estabilidade. Foi nessa época que me integrei com os colegas.
Imagem da Comissária de Voo
A imagem da mulher comissária já mudou muito. Estou falando do meu tempo, de 1968 até 1996. No início, a mulher da aviação era vista com desconfiança. Ser honesta num convento é uma coisa, mas no meio de um mundo bem mais livre é outra. Uma mulher que fica dentro de casa e não leva cantada, é uma coisa. Trabalhar na aviação, levar cantada e andar pelo mundo, é outra. Dos anos 70 em diante as coisas começaram a mudar, por motivos nossos e também por motivos culturais. A aviação foi se desenvolvendo e a própria empresa começou a mudar, pois queria profissionais competentes. Mudou a postura das novas profissionais, que passaram a ser chefes de cabine e a ter mais responsabilidade na profissão.
Vida amorosa, cantadas
Tive um namorado antes de entrar na Vasp. Gostava dele, mas não foi uma paixão. Eu não queria casar. Saía, procurava me divertir e não transava. Naquela época a pílula estava na moda, mas eu era completamente desligada dessas coisas. Muitas tomavam e diziam que era para regular a menstruação. Meus objetivos eram outros. Depois que entrei para a aviação, no primeiro ano comprei um carro, no segundo viajei para a Europa (um tour de 30 dias, pela agência Abreu, de ônibus a partir de Portugal para outros países), no terceiro ano comprei meu apartamento, para pagar em 15 anos!
Recebi muitas cantadas, pedidos de casamento, cartinhas, presentes... Mas nunca namorei ninguém na aviação e procurava não me envolver. Fora da aviação tive muitos namorados. Uma amiga minha, numa época em que eu estava sozinha, disse que ia me arrumar um namorado e levou meu futuro marido lá em casa. Isto foi em 1974. Faz 21 anos. Namoramos durante seis anos e nos casamos. Eu não queria casar nem ter filhos e dizia: “Por que botar filho neste mundo?” Geralmente  quem assume isso é a mulher. Então não tive filhos. Eu não queria um homem, queria um companheiro.
Vida profissional, promoções
Com um ano e meio de voo passei para a instrução de comissários, depois fui selecionada para ser instrutora efetiva. Fiquei cinco anos como Chefe de Comissários e fiquei como instrutora até me aposentar. A Vasp foi a primeira empresa a ter mulher como Chefe de Cabine. Houve uma reação violenta por parte dos homens. Os tripulantes técnicos e os comissários se uniram contra elas. Faziam piadas, diziam que elas iam passar batom para abrir as portas de emergência e que eles não iam ajudar, pois não eram pagos para isso. Tivemos uma reunião na Diretoria  de Operações para tratar do assunto. Os comandantes diziam que não aceitavam, pois, segundo eles, as mulheres não entendiam de emergência.
Éramos cinco mulheres e estávamos nos sentindo acuadas, mas resistimos. Fizemos o curso de seis meses no setor de Treinamento e Recursos Humanos. Fomos as cobaias. Eles procuraram nos preparar psicologicamente e também colocaram a responsabilidade nas nossas costas. Assumimos a responsabilidade e nos fizemos respeitar. Fazíamos a nossa parte com muita correção e a resistência começou a cair. Seis meses depois já tinha outra turma de mulheres Chefes de Cabine.
Depois os comandantes começaram a nos apoiar. Se algum comissário tentava passar por cima e levava os problemas diretamente para a cabine de comando, o comandante pedia para ele se dirigir à Chefe de Cabine. E assim os conceitos começaram a mudar. Deu certo, foi ótimo, começamos a nos impor. Isso foi em 1974. Eu estava com 28 anos. A maioria das Chefes de Cabine tinha, mais ou menos, uns seis anos de empresa.
Questões profissionais, frustrações
Em 1978, tirei licença-prêmio. Eu nem sabia o que era isso. Quando vi estava fora de escala e fiquei achando que ia ser demitida, apesar de nunca ter tido qualquer problema. Cumpria com muita disciplina as minhas funções, participava das reuniões, dava as instruções, preenchia as fichas. Cheguei a dizer para aqueles que não se realizavam na profissão e estavam lá só por dinheiro, que procurassem outro trabalho. Muitos comissários não se encontram na profissão. Enquanto são jovens eles trabalham bem, gostam de viajar, conhecer gente. Mas depois de alguns anos eles se sentem frustrados. Aí começam os problemas. A profissão é muito limitante para o homem. A imagem do comandante está sempre ali na frente deles para mostrar os limites e indicar que eles nunca chegarão lá... 
Para as mulheres o lado emocional é o mais difícil. Os filhos, a casa, o marido, costumam deixar a mulher muito dividida. Ela gostaria de estar em casa com a família mas, para ganhar seu dinheiro, precisa se afastar. É muito problemático para ela. Se ela não está bem, passa isso para os outros. Como pode uma mãe ir voar com tranquilidade quando deixa o filho pequeno em casa doente? Além do emocional, ela somatiza e cria problemas de saúde. Começa a ficar gripada com facilidade, a ter úlceras... A mulher é mais frágil e carente nesse ponto. Então ela precisa trabalhar a cabeça, fazer terapia, yoga etc.
Acompanhamento do profissional do voo
Seria importante fazer um acompanhamento à distância, ter um gráfico individual de cada profissional. Hoje, com computador, é fácil fazer isso. Anotar aspectos importantes, avaliações, elogios. Quando a pessoa estiver declinando, é preciso fazer alguma coisa para não deixá-la cair. Fiz um trabalho relacionado a isso junto com o pessoal de Recursos Humanos. A média de bom desempenho profissional era de cinco anos. Algumas pessoas tomavam a iniciativa e saíam do voo. Só voltavam aquelas que saíam por influência de outras pessoas, principalmente por causa do marido ou do namorado. Todas as mulheres que saíram por esta razão, voltaram. Mas quando ela própria descobre que não é isso que quer fazer, sai e não volta. É uma pequena faixa. A maioria vai levando. Não aceita sair para não dizer que fracassou na escolha. Os amigos também interferem e desencorajam.
Escala de Voo
Nossas escalas eram horríveis porque eram semanais e nunca sabíamos o que íamos fazer na semana seguinte. Mesmo assim nunca tive uma falta. Uma escala semanal deixa todo mundo neurótico. É a maior pressão que se pode fazer em cima de um grupo profissional. Em plena era da informática, tínhamos que ir lá, pessoalmente, no Despacho Operacional, buscar a escala. Não importava onde morássemos. E não podíamos trocar voos. Solicitar folga, só raramente. Isso pirava muita gente. Não podíamos programar nada, não conseguíamos ter vida social nem familiar. Não podíamos planejar nem mesmo uma consulta médica...
Como é viver a vida com uma escala semanal de voo? Como ir a shows, fazer cursos, sair com amigos, visitar parentes em dias de festas, poder programar a vida, participar de eventos? Na aviação, não é o trabalho que complica, é não poder programar nada além dele. Conseguir harmonizar a vida com o trabalho, eis a questão! Viver na aviação e tentar conciliar todas essas coisas é muito difícil! Quando estamos voando, vivemos para o trabalho, a vida social e familiar fica sempre para depois.
A Vasp tinha uma administração que mudava de quatro em quatro anos, porque era estatal e mudava de acordo com a política. Agora, na gestão do Canhedo, é ainda pior. No meio das programações, tem reservas, sobreavisos. A maioria está pirada. O filho do Canhedo costuma dizer que se o tripulante tiver mais do que oito folgas no mês, ele vai demitir porque tem gente sobrando. E assim tem sido há anos. Os tripulantes, principalmente os comissários, têm apenas oito folgas por mês. E não podem escolher os dias de folga. A Vasp quer ter apenas jovens de 18 a 24 anos. Não dá para entender. Demitiram, compulsoriamente, muita gente mais antiga.
Questões de saúde
Acho que são certos hábitos que estragam a saúde do ser humano. É preciso saber se alimentar de forma equilibrada. Saber repousar, ter uma boa educação em relação à vida que se leva. A nossa profissão tem um desgaste bem maior e cada um precisa ter consciência disso. Muitas pessoas têm uma estrutura muito boa, outras já encontram mais dificuldades. Nosso trabalho exige muito do nosso corpo. A aviação é desgastante, física e emocionalmente e a empresa precisa dar um suporte além do bom treinamento, mas somos nós que devemos cuidar de nossa saúde, respeitar nossos limites.
Aposentadoria
A aposentadoria, principalmente para as mulheres deveria ser após 20 anos de trabalho. Fazer voos internacionais é muito desgastante. Eu só trabalhei três anos nas rotas internacionais. O stress físico e mental é enorme. A questão do oxigênio, da altitude e pressurização, das mudanças de climas... São muitos os fatores que provocam stress na nossa profissão. Participei daquele Seminário sobre a Saúde do Aeronauta (1991) e aprendi muito sobre fusos horários e outros problemas relacionados com a nossa vida profissional.
Muitas colegas minhas, mais antigas, não chegavam a se aposentar. Eram afastadas do trabalho e isso acontecia antes de completarem 40 anos. Outras eram demitidas. Nós já fazemos parte de uma nova fase e eu consegui me aposentar na aviação. Mas não tinha certeza de que isso ia acontecer. Aposentei-me em 1993.
Amava a aviação, mas planejava me aposentar aos 45 anos. Sabia que tinha outro mundo além da aviação. Queria conhecer esse outro mundo e fazer muitas outras coisas. Conversava com as pessoas do voo e sabia como elas sofriam. Então comecei a me preparar para sair. Em 1989  comecei a fazer terapia analítica. Era uma sessão por semana. Comecei a me preparar para uma vida normal, uma rotina familiar e social e analisar todas as coisas que eram convenientes e inconvenientes.   O que vivi na aviação foi compensador, pois sou o somatório desses 25 anos. Tenho essa bagagem de vida graças à aviação. É uma vida intensa. É uma vivência única.
Na aviação as pessoas se perdem por causa do ritmo acelerado em que vivem e devido às exigências da empresa e da família. A mulher é muito mais cobrada, até na aparência física. E quando chega cansada de viagem ainda precisa dar atenção à família que a está esperando e também há aquela questão da culpa por ter ficado ausente...
Aposentadoria aos 60 anos? Acho que é total falta de sensibilidade e de respeito ao ser humano. Na American Airlines eu só viajei com as vovós, mas a estrutura de cada país é diferente, assim como a vida familiar e social. Na América do Norte a vida familiar não está centrada na mulher, todos participam, e a média de vida deles é muito maior.
Saudades da aviação
Sinceramente, acho que não vou sentir saudades da aviação porque tenho vivido intensamente. Uso a minha bagagem e ela me serve muito. Aprendi muita coisa sobre a vida, sobre as viagens, sobre as pessoas. Sei quando elas estão felizes ou não. As pessoas precisam fazer o que gostam. Aos 45 anos a gente faz uma revisão de toda a vida que viveu e pode ver se está feliz ou não. Tudo vale a pena quando se faz o que se gosta e se está bem consigo mesmo. O mundo pode estar em guerra. A aviação nos suga, mas também nos dá muito em troca.
Estou aposentada há dois anos e estou dando continuidade aos meus projetos. Quando nos aposentamos, estamos com muita ansiedade porque deixamos muitas coisas para fazer depois. Estou estudando idiomas, decoração, computação. Estou fazendo essas coisas por mim mesma. Faço o curso de Biodinâmica e Neolinguística. Estou trabalhando a parte espiritual: estou vivendo e me preparando para outras fases de vida e para a morte. Tudo isso faz parte! Vou trabalhar com tudo isso.


*Mara (pseudônimo) aposentou-se com 25 anos de voo, em 1993, aos 45 anos. Concedeu esta entrevista no aeroporto de Congonhas, em 1996.