sábado, 5 de julho de 2014

Michiko

Michiko*

Nasci em Hiroshima, no Japão. Naquela época a cidade ainda estava destruída pela guerra e o Japão era um país pobre. Os alimentos eram escassos e até leite faltava quando eu era recém-nascida. Meus pais sobreviveram porque na hora dos bombardeios se protegeram nos abrigos. Eles eram estudantes e durante a guerra tiveram que deixar os estudos e ir para as fábricas fazer fardamentos para os soldados. 
Infância e adolescência
Comecei a estudar aos quatro anos, no jardim da infância. Naquela época a pressão para estudar já era forte. Eu era uma criança arteira, gostava muito de brincar com os meninos, subir nas árvores, e minha mãe tinha que pedir desculpas aos vizinhos pelas artes que eu fazia.  Minha casa era um pouco afastada da rua principal e tinha um caminho para chegar até lá. À noite, no inverno, eu colocava água no caminho e assim, durante o dia, ficava tudo gelado e nós podíamos patinar e escorregar no gelo. Um dia uma amiga da minha avó foi nos visitar, escorregou no gelo, caiu e ralhou todo mundo. Minha avó ficou muito chateada comigo. 
Excluindo as crises de asma e a tosse que eu tinha durante a noite, tenho boas lembranças da minha infância. A gente se divertia muito. Os prédios semidestruídos pela guerra eram os lugares onde eu e as outras crianças íamos excursionar. Eram áreas abandonadas e nós íamos lá com a expectativa de encontrar fantasmas, mas eles nunca apareceram.
Quando eu estava com 12 anos, minha família mudou para Tóquio. Meu pai era engenheiro e trabalhava para a Mitsubishi. Foi uma grande mudança em minha vida, pois tudo era muito diferente. Até o idioma era diferente. Só a minha mãe, que era de Tóquio, não sentiu dificuldades. Eu, meu pai e meus avós, que falávamos o dialeto de Hiroshima, tivemos que reaprender o idioma. Por exemplo: uma expressão que em Hiroshima significava “chamar” no sentido de “convidar para comer” não era conhecida em Tóquio. Um dia minha avó convidou um senhor, que foi fazer um serviço lá em casa, para almoçar conosco, mas ele não entendeu e foi embora. Na escola eu era uma estudante mediana, fui sobrevivendo até terminar o segundo grau.
Mudança para o Brasil
Meu pai foi transferido para o Brasil quando eu estava com 17 anos. Ficamos morando em São Paulo durante três anos e meio, nos anos de 1967 a 1970. Foi uma grande mudança e um choque cultural. Em São Paulo estudei durante algum tempo em uma escola americana, mas não gostei. Nessa escola eu também estudava português. Depois fui fazer o curso de Letras em uma Faculdade em Indianópolis. Era época de movimentos estudantis contra a ditadura militar.
Um dia, os policiais, armados de rifles, cassetetes e gás lacrimogênio, invadiram e fecharam a Faculdade. Voltei para casa assustada e chorando, sem entender o que estava acontecendo. Por isso deixei a Faculdade de lado e comecei a estudar francês. As aulas de francês eram muito divertidas porque a professora era muito engraçada. Uma vez fui até a casa dela e fiquei impressionada com os objetos de arte e antiguidades que ela colecionava. Madame Levi era gorda, tinha mais de 60 anos e animava a turma fazendo brincadeiras e contando piadas. A língua francesa não era fácil, mas as aulas eram muito divertidas.
As lembranças que tenho desse período no Brasil são muito boas. Nós viajávamos muito e eu era a intérprete porque meus pais não falavam o português. Até vir morar no Brasil eu quase não conhecia meu pai porque lá em Tóquio ele trabalhava muito e nos fins de semana passava a maior parte do tempo dormindo. Aqui, ele voltava mais cedo do trabalho e nos fins-de-semana a gente viajava para as cidades próximas. Tínhamos muitos amigos, japoneses e nisseis. Eu tinha também uma amiga americana, filha de missionários, e outra brasileira. Foi aqui que aprendi a dirigir e tirei a minha licença de motorista.
Retorno ao Japão
Quando voltamos para o Japão foi outro choque cultural e eu senti muitas saudades do Brasil. Lá, continuei a estudar francês por mais algum tempo, mas não era nada divertido. Os estudantes eram mais novos e o professor não era engraçado. Ele era francês e apaixonado pelo Japão. Só lecionava porque precisava de dinheiro. Mesmo assim eu era a melhor aluna de francês. Depois, aos 21 anos, comecei a trabalhar na Faculdade de Sofia, em Tóquio. Trabalhava meio expediente como assistente de secretária no Centro de Estudos Luso-Brasileiro. Só consegui a vaga porque falava português. 
Aviação
Foi através de uma das minhas colegas do Centro de Estudos Luso-Brasileiro que eu soube que a Varig estava procurando candidatas a Comissárias de Voo. Então eu pensei que essa era a oportunidade de voltar ao Brasil. Pretendia ficar viajando por uns três anos. Depois, voltaria para continuar os estudos, com algum dinheiro economizado.
Meu pai queria que eu me casasse com um colega da Mitsubishi e chegou a levar alguns rapazes lá em casa para eu conhecer. Mas não era o que eu queria. Hoje, pensando bem, talvez tenha perdido uma grande chance. Poderia estar casada, ter uma grande casa, filhos...
A entrevista foi feita pela Dona Lílian, Chefe das Comissárias no Brasil e pelo gerente da Varig, em Tóquio. Eles selecionaram cinco candidatas: a Mariko, a Mio, a Hiroko, a Eiko e eu. Depois de alguns exames, fomos contratadas, mas tivemos que esperar uns três meses para preparar os documentos necessários. Além do visto de permanência do Consulado Brasileiro, para trabalhar em companhia brasileira, nós precisávamos entregar vários documentos, inclusive ficha de bons antecedentes na polícia.  
Curso de Comissários
Viemos fazer o curso no Rio de Janeiro, no segundo semestre de 1972. Antes do curso tivemos que fazer novos exames médicos, primeiro no CEMAL, depois no serviço médico da Varig. Também fizemos os testes psicotécnicos. E, finalmente, fizemos o curso que durou quase três meses. Para mim foi um choque ficar sozinha no Rio, longe da minha família. Quando meu pai trabalhava em São Paulo, ele tinha uma boa posição e era muito respeitado. Nossa vida era muito boa. Mas na Varig, fazendo o curso, eu era apenas uma aluna, uma anônima...
O curso não foi difícil. Minhas colegas japonesas tinham mais dificuldades porque não falavam português, elas sabiam espanhol e inglês. Nós ficamos hospedadas no Pensionato Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. No mesmo pensionato estavam hospedadas as moças que vieram de outros lugares do Brasil para fazer o curso. O relacionamento entre nós, japonesas, às vezes era um pouco problemático. Mas com as colegas brasileiras o relacionamento era muito bom. A maioria tinha vindo do interior do Rio Grande do Sul e estavam entusiasmadas para iniciar a vida profissional.
Primeiros voos
Meu primeiro voo, ainda em instrução, foi para Nova York. Eu não sabia que o trabalho era tão cansativo. Durante aquele voo eu pensei que assim que pudesse sairia da aviação. Era muito pesado e eu achei que não ia aguentar. Mas como tinha dito a meus pais que queria ser aeromoça e me tornar independente, eu não podia largar tudo e voltar para casa correndo. Então fui aguentando. O segundo voo já foi um pouco melhor. Não me esqueço do cheiro forte do perfume “Brut”, usado junto com água quente para molhar as toalhinhas que eram servidas aos passageiros para limpar as mãos antes das refeições. 
Eu chegava do voo muito cansada e com vontade de chorar de tanta dor nos pés. Nos dias de folga só fazia descansar. De vez em quando ia visitar um amigo de meu pai, que morava no Rio.  Ele tinha uma empregada japonesa, que fazia comida japonesa. Assim amenizava um pouco a saudade de casa.
Transferência para a base de Los Angeles
Poucos meses depois, em 1973, fui transferida para a Base de Los Angeles. Foi um período difícil porque eu não conhecia os Estados Unidos e tive que resolver todos os problemas sozinha. No início fiquei hospedada no Hotel Roosevelt, em Hollywood. Naquela época a gente fazia dois voos por mês para Tóquio e um para o Rio de Janeiro. Nos dias de folga eu saia a pé procurando apartamento para alugar. Finalmente encontrei um e assinei o contrato.
Depois da mudança descobri que o ponto de ônibus ficava bem embaixo da janela do meu quarto. O barulho começava bem cedo e era impossível descansar. Além disso, algumas colegas moravam lá perto e havia muito “tititi”. Sempre gostei de privacidade e de liberdade. Por isso aluguei um carro e fui procurar apartamento em outro lugar. Encontrei um apartamento como eu queria em Brentwood. E lá morei de 1973 até 1994. Nesse período fiz três mudanças, mas sempre na mesma área, onde todos se conheciam. Agora estou morando num apartamento que comprei em Mar Vista, perto de Santa Mônica.
Nos primeiros dois anos eu detestei morar em Los Angeles. Felizmente viajava duas vezes por mês para o Japão e tinha alguns dias para ficar com minha família. Mas os voos para o Rio de Janeiro eram muito cansativos. As diferenças de temperatura e de clima me incomodavam. Também me sentia muito sozinha, pois não tinha amigos e o amigo de meu pai já não morava mais no Rio de Janeiro. Na Base de Los Angeles tínhamos dois grupos de comissários: o das japonesas e o dos brasileiros. Eu sempre procurei ficar um pouco distante, preservar a minha privacidade. Com o passar do tempo, fui me adaptando à vida nos Estados Unidos e fui fazendo amigos. Em 1977, com o aumento da frequência dos voos para o Japão, nós, da base de Los Angeles, paramos de voar para o Brasil. Tudo ficou bem melhor.
O prazer de esquiar, amizades
Foi nessa época que fui passar uns dias de folga nas montanhas do Colorado e aprendi a esquiar na neve. No início não foi fácil, mas adorei! E passei a esquiar todos os invernos. O ar puro e fresquinho da montanha é maravilhoso! O pessoal que vai lá é alegre e amigável.
Fiz amizade com um grupo da aviação que ia esquiar todos os anos em algum lugar diferente na Europa. Uma das minhas melhores amigas é uma americana de Chicago que está morando na Suíça. Todos os anos eu vou visitá-la. Ela e o marido também já vieram me visitar em Los Angeles.
Quanto às minhas colegas japonesas, que fizeram o cursinho comigo, aos poucos foram saindo da aviação. A Mariko não se adaptou e saiu três meses depois. A Eiko saiu dois anos depois. A Mio casou com um americano e saiu quatro anos depois. A Hiroko também casou com um americano e não conseguiu conciliar a vida particular com a aviação. Saiu alguns anos depois. Só eu fiquei.
Vida amorosa
Até os 30 anos eu nunca pensei em casamento. Depois dos 30 comecei a pensar. Já tive muitos namorados e quase me casei com um suíço, que era um grande esquiador. Fiquei fascinada por ele. Mas, sem o esqui, ele não era tão fascinante assim, por isso não aceitei seu pedido de casamento. Também namorei um comandante americano, muito bonito. Mas, com o tempo, comecei a achar que ele era um chato. Percebi que ele não tinha o senso de internacionalidade que nós da aviação temos. Ele era de uma cidade pequena e mantinha aquele jeito provinciano. Perdi o interesse. Também namorei um rapaz japonês. Moramos junto por algum tempo e o amor não sobreviveu. Gosto de ser independente, é muito melhor estar só do que mal acompanhada.
Vida social e cultural
Graças à aviação eu tenho aproveitado bem as coisas da vida, principalmente nos dias de folga. Depois que comecei a esquiar, conheci muita gente de lugares diferentes e fiz muitas amizades. Hoje, além do esqui, jogo golfe. No momento estou parada porque ainda estou me recuperando de uma operação que fiz na articulação do joelho, no ano passado. Mas sou uma pessoa ativa e assim vou continuar. Como mulher, tive muitas compensações. Tenho liberdade e independência. Estou satisfeita com a profissão que escolhi. É cansativa, mas vale a pena! Temos mais tempo para pensar na nossa própria vida.
Problemas de saúde
De modo geral tenho boa saúde e nunca tive problemas sérios. Quando viajava para o Brasil, todo ano pegava uma gripe muito forte. Hoje só viajo para Tóquio e a minha vida é mais tranquila e minha saúde mais estável.
Planos para o futuro
Com a promoção para a função de Supervisora, inicio uma nova fase na vida profissional. Terei mais responsabilidade, mas estou bastante animada e com boas expectativas. E depois que me aposentar gostaria de voltar a morar no Japão. Perdi meu pai no ano passado e sinto que preciso dar mais apoio à minha mãe, pois sou filha única. Também quero continuar viajando e visitar os amigos que tenho pelo mundo.
           
*Michiko (pseudônimo) começou a trabalhar na Varig aos 22 anos, em 1972. Estava com 45 anos, tinha 23 de voo e morava em Los Angeles, de onde fazia a rota para o Japão. Concedeu-me esta entrevista na cidade do Rio de Janeiro, no Hotel Luxor - Leme, em março de 1995, onde ficamos hospedadas enquanto fazíamos o curso de Supervisão. 


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