Michiko*
Nasci
em Hiroshima, no Japão. Naquela época a cidade ainda estava destruída pela
guerra e o Japão era um país pobre. Os alimentos eram escassos e até leite
faltava quando eu era recém-nascida. Meus pais sobreviveram porque na hora dos
bombardeios se protegeram nos abrigos. Eles eram estudantes e durante a guerra
tiveram que deixar os estudos e ir para as fábricas fazer fardamentos para os
soldados.
Infância e adolescência
Comecei
a estudar aos quatro anos, no jardim da infância. Naquela época a pressão para
estudar já era forte. Eu era uma criança arteira, gostava muito de brincar com
os meninos, subir nas árvores, e minha mãe tinha que pedir desculpas aos
vizinhos pelas artes que eu fazia. Minha
casa era um pouco afastada da rua principal e tinha um caminho para chegar até
lá. À noite, no inverno, eu colocava água no caminho e assim, durante o dia,
ficava tudo gelado e nós podíamos patinar e escorregar no gelo. Um dia uma
amiga da minha avó foi nos visitar, escorregou no gelo, caiu e ralhou todo
mundo. Minha avó ficou muito chateada comigo.
Excluindo
as crises de asma e a tosse que eu tinha durante a noite, tenho boas lembranças
da minha infância. A gente se divertia muito. Os prédios semidestruídos pela
guerra eram os lugares onde eu e as outras crianças íamos excursionar. Eram
áreas abandonadas e nós íamos lá com a expectativa de encontrar fantasmas, mas
eles nunca apareceram.
Quando
eu estava com 12 anos, minha família mudou para Tóquio. Meu pai era engenheiro
e trabalhava para a Mitsubishi. Foi uma grande mudança em minha vida, pois tudo
era muito diferente. Até o idioma era diferente. Só a minha mãe, que era de
Tóquio, não sentiu dificuldades. Eu, meu pai e meus avós, que falávamos o
dialeto de Hiroshima, tivemos que reaprender o idioma. Por exemplo: uma
expressão que em Hiroshima significava “chamar” no sentido de “convidar para
comer” não era conhecida em Tóquio. Um dia minha avó convidou um senhor, que
foi fazer um serviço lá em casa, para almoçar conosco, mas ele não entendeu e
foi embora. Na escola eu era uma estudante mediana, fui sobrevivendo até
terminar o segundo grau.
Mudança para o Brasil
Meu pai foi transferido para o Brasil quando
eu estava com 17 anos. Ficamos morando em São Paulo durante três anos e meio,
nos anos de 1967 a 1970. Foi uma grande mudança e um choque cultural. Em São
Paulo estudei durante algum tempo em uma escola americana, mas não gostei.
Nessa escola eu também estudava português. Depois fui fazer o curso de Letras em
uma Faculdade em Indianópolis. Era época de movimentos estudantis contra a
ditadura militar.
Um dia, os policiais, armados de rifles,
cassetetes e gás lacrimogênio, invadiram e fecharam a Faculdade. Voltei para
casa assustada e chorando, sem entender o que estava acontecendo. Por isso
deixei a Faculdade de lado e comecei a estudar francês. As aulas de francês
eram muito divertidas porque a professora era muito engraçada. Uma vez fui até
a casa dela e fiquei impressionada com os objetos de arte e antiguidades que
ela colecionava. Madame Levi era gorda, tinha mais de 60 anos e animava a turma
fazendo brincadeiras e contando piadas. A língua francesa não era fácil, mas as
aulas eram muito divertidas.
As
lembranças que tenho desse período no Brasil são muito boas. Nós viajávamos
muito e eu era a intérprete porque meus pais não falavam o português. Até vir
morar no Brasil eu quase não conhecia meu pai porque lá em Tóquio ele
trabalhava muito e nos fins de semana passava a maior parte do tempo dormindo.
Aqui, ele voltava mais cedo do trabalho e nos fins-de-semana a gente viajava
para as cidades próximas. Tínhamos muitos amigos, japoneses e nisseis. Eu tinha
também uma amiga americana, filha de missionários, e outra brasileira. Foi aqui
que aprendi a dirigir e tirei a minha licença de motorista.
Retorno ao Japão
Quando
voltamos para o Japão foi outro choque cultural e eu senti muitas saudades do
Brasil. Lá, continuei a estudar francês por mais algum tempo, mas não era nada
divertido. Os estudantes eram mais novos e o professor não era engraçado. Ele
era francês e apaixonado pelo Japão. Só lecionava porque precisava de dinheiro.
Mesmo assim eu era a melhor aluna de francês. Depois, aos 21 anos, comecei a
trabalhar na Faculdade de Sofia, em Tóquio. Trabalhava meio expediente como
assistente de secretária no Centro de Estudos Luso-Brasileiro. Só consegui a
vaga porque falava português.
Aviação
Foi
através de uma das minhas colegas do Centro de Estudos Luso-Brasileiro que eu
soube que a Varig estava procurando candidatas a Comissárias de Voo. Então eu
pensei que essa era a oportunidade de voltar ao Brasil. Pretendia ficar
viajando por uns três anos. Depois, voltaria para continuar os estudos, com
algum dinheiro economizado.
Meu
pai queria que eu me casasse com um colega da Mitsubishi e chegou a levar
alguns rapazes lá em casa para eu conhecer. Mas não era o que eu queria. Hoje,
pensando bem, talvez tenha perdido uma grande chance. Poderia estar casada, ter
uma grande casa, filhos...
A entrevista foi feita pela Dona Lílian,
Chefe das Comissárias no Brasil e pelo gerente da Varig, em Tóquio. Eles
selecionaram cinco candidatas: a Mariko, a Mio, a Hiroko, a Eiko e eu. Depois
de alguns exames, fomos contratadas, mas tivemos que esperar uns três meses
para preparar os documentos necessários. Além do visto de permanência do
Consulado Brasileiro, para trabalhar em companhia brasileira, nós precisávamos
entregar vários documentos, inclusive ficha de bons antecedentes na polícia.
Curso de Comissários
Viemos
fazer o curso no Rio de Janeiro, no segundo semestre de 1972. Antes do curso
tivemos que fazer novos exames médicos, primeiro no CEMAL, depois no serviço
médico da Varig. Também fizemos os testes psicotécnicos. E, finalmente, fizemos
o curso que durou quase três meses. Para mim foi um choque ficar sozinha no
Rio, longe da minha família. Quando meu pai trabalhava em São Paulo, ele tinha
uma boa posição e era muito respeitado. Nossa vida era muito boa. Mas na Varig,
fazendo o curso, eu era apenas uma aluna, uma anônima...
O
curso não foi difícil. Minhas colegas japonesas tinham mais dificuldades porque
não falavam português, elas sabiam espanhol e inglês. Nós ficamos hospedadas no
Pensionato Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. No mesmo pensionato estavam
hospedadas as moças que vieram de outros lugares do Brasil para fazer o curso.
O relacionamento entre nós, japonesas, às vezes era um pouco problemático. Mas
com as colegas brasileiras o relacionamento era muito bom. A maioria tinha
vindo do interior do Rio Grande do Sul e estavam entusiasmadas para iniciar a
vida profissional.
Primeiros voos
Meu
primeiro voo, ainda em instrução, foi para Nova York. Eu não sabia que o
trabalho era tão cansativo. Durante aquele voo eu pensei que assim que pudesse
sairia da aviação. Era muito pesado e eu achei que não ia aguentar. Mas como
tinha dito a meus pais que queria ser aeromoça e me tornar independente, eu não
podia largar tudo e voltar para casa correndo. Então fui aguentando. O segundo
voo já foi um pouco melhor. Não me esqueço do cheiro forte do perfume “Brut”,
usado junto com água quente para molhar as toalhinhas que eram servidas aos
passageiros para limpar as mãos antes das refeições.
Eu
chegava do voo muito cansada e com vontade de chorar de tanta dor nos pés. Nos
dias de folga só fazia descansar. De vez em quando ia visitar um amigo de meu
pai, que morava no Rio. Ele tinha uma
empregada japonesa, que fazia comida japonesa. Assim amenizava um pouco a
saudade de casa.
Transferência para a base
de Los Angeles
Poucos meses depois, em 1973, fui transferida
para a Base de Los Angeles. Foi um período difícil porque eu não conhecia os
Estados Unidos e tive que resolver todos os problemas sozinha. No início fiquei
hospedada no Hotel Roosevelt, em Hollywood. Naquela época a gente fazia dois
voos por mês para Tóquio e um para o Rio de Janeiro. Nos dias de folga eu saia
a pé procurando apartamento para alugar. Finalmente encontrei um e assinei o
contrato.
Depois
da mudança descobri que o ponto de ônibus ficava bem embaixo da janela do meu
quarto. O barulho começava bem cedo e era impossível descansar. Além disso,
algumas colegas moravam lá perto e havia muito “tititi”. Sempre gostei de
privacidade e de liberdade. Por isso aluguei um carro e fui procurar
apartamento em outro lugar. Encontrei um apartamento como eu queria em
Brentwood. E lá morei de 1973 até 1994. Nesse período fiz três mudanças, mas
sempre na mesma área, onde todos se conheciam. Agora estou morando num
apartamento que comprei em Mar Vista, perto de Santa Mônica.
Nos
primeiros dois anos eu detestei morar em Los Angeles. Felizmente viajava duas
vezes por mês para o Japão e tinha alguns dias para ficar com minha família.
Mas os voos para o Rio de Janeiro eram muito cansativos. As diferenças de
temperatura e de clima me incomodavam. Também me sentia muito sozinha, pois não
tinha amigos e o amigo de meu pai já não morava mais no Rio de Janeiro. Na Base
de Los Angeles tínhamos dois grupos de comissários: o das japonesas e o dos brasileiros.
Eu sempre procurei ficar um pouco distante, preservar a minha privacidade. Com
o passar do tempo, fui me adaptando à vida nos Estados Unidos e fui fazendo
amigos. Em 1977, com o aumento da frequência dos voos para o Japão, nós, da
base de Los Angeles, paramos de voar para o Brasil. Tudo ficou bem melhor.
O prazer de esquiar,
amizades
Foi
nessa época que fui passar uns dias de folga nas montanhas do Colorado e
aprendi a esquiar na neve. No início não foi fácil, mas adorei! E passei a
esquiar todos os invernos. O ar puro e fresquinho da montanha é maravilhoso! O
pessoal que vai lá é alegre e amigável.
Fiz
amizade com um grupo da aviação que ia esquiar todos os anos em algum lugar
diferente na Europa. Uma das minhas melhores amigas é uma americana de Chicago
que está morando na Suíça. Todos os anos eu vou visitá-la. Ela e o marido
também já vieram me visitar em Los Angeles.
Quanto
às minhas colegas japonesas, que fizeram o cursinho comigo, aos poucos foram
saindo da aviação. A Mariko não se adaptou e saiu três meses depois. A Eiko
saiu dois anos depois. A Mio casou com um americano e saiu quatro anos depois.
A Hiroko também casou com um americano e não conseguiu conciliar a vida
particular com a aviação. Saiu alguns anos depois. Só eu fiquei.
Vida amorosa
Até
os 30 anos eu nunca pensei em casamento. Depois dos 30 comecei a pensar. Já
tive muitos namorados e quase me casei com um suíço, que era um grande
esquiador. Fiquei fascinada por ele. Mas, sem o esqui, ele não era tão
fascinante assim, por isso não aceitei seu pedido de casamento. Também namorei
um comandante americano, muito bonito. Mas, com o tempo, comecei a achar que
ele era um chato. Percebi que ele não tinha o senso de internacionalidade que
nós da aviação temos. Ele era de uma cidade pequena e mantinha aquele jeito
provinciano. Perdi o interesse. Também namorei um rapaz japonês. Moramos junto
por algum tempo e o amor não sobreviveu. Gosto de ser independente, é muito melhor
estar só do que mal acompanhada.
Vida social e cultural
Graças
à aviação eu tenho aproveitado bem as coisas da vida, principalmente nos dias
de folga. Depois que comecei a esquiar, conheci muita gente de lugares
diferentes e fiz muitas amizades. Hoje, além do esqui, jogo golfe. No momento
estou parada porque ainda estou me recuperando de uma operação que fiz na
articulação do joelho, no ano passado. Mas sou uma pessoa ativa e assim vou
continuar. Como mulher, tive muitas compensações. Tenho liberdade e
independência. Estou satisfeita com a profissão que escolhi. É cansativa, mas
vale a pena! Temos mais tempo para pensar na nossa própria vida.
Problemas de saúde
De
modo geral tenho boa saúde e nunca tive problemas sérios. Quando viajava para o
Brasil, todo ano pegava uma gripe muito forte. Hoje só viajo para Tóquio e a
minha vida é mais tranquila e minha saúde mais estável.
Planos para o futuro
Com
a promoção para a função de Supervisora, inicio uma nova fase na vida
profissional. Terei mais responsabilidade, mas estou bastante animada e com
boas expectativas. E depois que me aposentar gostaria de voltar a morar no
Japão. Perdi meu pai no ano passado e sinto que preciso dar mais apoio à minha
mãe, pois sou filha única. Também quero continuar viajando e visitar os amigos
que tenho pelo mundo.
*Michiko (pseudônimo)
começou a trabalhar na Varig aos 22 anos, em 1972. Estava com 45 anos, tinha 23
de voo e morava em Los Angeles, de onde fazia a rota para o Japão. Concedeu-me
esta entrevista na cidade do Rio de Janeiro, no Hotel Luxor - Leme, em março de
1995, onde ficamos hospedadas enquanto fazíamos o curso de Supervisão.
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