domingo, 29 de junho de 2014

Anita

Anita*

Nasci em São Paulo. Meu pai é italiano do norte da Itália; minha mãe é brasileira, descendente de italianos. Então toda a minha história de família está envolvida com a cultura italiana. A família do meu pai eu só fui conhecer depois de entrar para a aviação, quando viajei para a Itália. Conheci duas irmãs dele, ainda vivas, com seus maridos. Os meus avós paternos, porém, já haviam falecido. A família da minha mãe é muito grande. Eram nove irmãos e eu cheguei a conhecer os meus avós maternos. Cresci naquele clima de família italiana, família grande, que se reunia no Natal e Ano Novo e fazia aquele grande almoço. Nesses almoços toda a família se reunia com os filhos e os netos. Depois, a gente jogava tômbola. Meus pais, no entanto, só tiveram dois filhos. Tenho um irmão mais velho.
Infância e adolescência
Sempre fui uma criança muito quieta, uma menina muito retraída.  Meu pai era um pouco rígido, mas ele e minha mãe nunca foram de proibir, de não permitir isso ou aquilo. Na adolescência continuei sendo quieta e retraída. Mas o que não vivia na realidade eu vivia nos sonhos e fantasias que alimentava. Vivia num mundo só meu, mas sonhava muito com o mundo lá fora. Era muito estudiosa, tinha meu quarto, meus livros, meus cadernos de inglês. Sempre gostei de estudar inglês. Tinha um tio que morava em São Francisco, na Califórnia (EUA). Cada vez que ele vinha ao Brasil, ele contava muitas novidades de lá e isso tudo me despertava grande interesse.
Estudos e trabalho
Eu gostava muito de línguas, então entrei para uma escola de inglês, onde estudei durante muitos anos. Depois do primeiro grau cursei o Clássico e fiz vestibular para Letras na USP, mas não passei. Não sei por que não passei porque, sinceramente, acho que deveria ter passado. Aí fiquei um pouco desestimulada e fui trabalhar em um Banco. Comecei a trabalhar meio período, na parte da tarde. E continuei estudando inglês. Também aprendi corte e costura e fiz curso de manequim, à noite, no SENAC, porque eu tinha uma grande paixão pela moda. Cheguei até a ser modelo fotográfico por alguns meses. Lembro-me de que cortaram meus cabelos curtinhos e os pintaram. Fiquei loiríssima por uns seis meses. Gostaria de ter feito um curso superior. Acho que queimei uma etapa de minha vida, que perdi aquela experiência boa de estar na faculdade, de viver naquele ambiente universitário. Arrependo-me de não ter insistido nesse aspecto. Acho que fez falta na minha vida.
Aviação
No início trabalhei meio-expediente, depois passei a trabalhar o dia todo no setor de câmbio e comércio exterior. Trabalhava no Banco há mais de três anos e já não aguentava mais aquela rotina. Um dia, num sábado, assistindo a um programa na televisão, que se chamava “Almoço com as Estrelas”, eu fiquei sabendo, através do relações públicas da Pan American, que era um dos convidados do programa, que a empresa dele estava procurando moças para trabalhar como aeromoças. Também falou das vantagens que a profissão oferecia. Para começar, ficaria um mês em Huston, Dallas, fazendo o curso. Depois viajaria pelo mundo inteiro, se hospedaria em ótimos hotéis etc. Aquilo me pareceu o máximo!
Eu estava procurando alguma coisa diferente para fazer na vida, pois estava me sentindo muito presa. Então, na segunda-feira seguinte, eu fui lá. E fui entrevistada pelo mesmo senhor que apareceu na televisão. Ele disse que os testes seriam feitos com pessoas que viriam dos Estados Unidos e que, portanto, eu não faltasse no dia marcado. Uns 10 dias depois, quando fui fazer o teste, senti que não agradei. Fui atendida por uma senhora e, quando entrei na sala, senti que ela não gostou de mim. Ela me fez duas ou três perguntas e nem me mandou sentar. Talvez porque eu não fosse alta ou não tivesse o tipo norte-americano.
Não me mandaram a resposta, mas eu queria saber por que não tinha passado. Liguei para eles e só o que soube era que a pessoa que tinha feito a entrevista não estava mais lá. Fiquei bastante chateada. Mas a ideia de entrar para a aviação ficou na minha cabeça. Logo depois eu soube que a VASP estava oferecendo vagas. Fui lá, mas as inscrições já estavam encerradas. Pouco tempo depois, vi num jornal o anúncio da Varig. Isso foi em 1970. Então fui fazer a inscrição, depois a entrevista e os testes. Nessa época, eu já tinha pedido demissão no Banco e estava sem trabalhar há uns três ou quatro meses. Uma das razões que também me chateava no banco era o assédio do meu chefe. Se fosse hoje eu poderia até processá-lo por assédio sexual.
Fui para o Rio de Janeiro fazer o curso, que teve a duração de dois meses. Foi uma maravilha! Depois, voltei para São Paulo que ficou sendo a minha base durante dois anos. Comecei voando AVRO e fazendo voos para o Nordeste. Continuei morando com minha família. Meus pais não foram contra, mas ficaram preocupados, inclusive uma vez eu ouvi meu pai perguntar para minha mãe, o que dizer se os amigos perguntassem sobre o trabalho da filha. Havia ainda um pouco de preconceito, mas eles nunca foram contra. Inclusive, fiquei sabendo pela minha mãe, há pouco tempo, que quando fui transferida para o Rio, meu pai entrou no meu quarto e começou a chorar, vendo o quarto vazio. Ele era aquele italianão duro, que falava grosso. Eu nunca imaginei que ele fosse capaz de chorar...
Mudança para o Rio de Janeiro
O primeiro ano foi terrível porque o carioca é muito diferente do paulista e eu sou muito paulista. Até hoje levo tudo muito a sério, talvez até demais. Então, o jeito despreocupado e descompromissado do carioca me incomodava muito. Não sou de fazer amizade com facilidade e, naquela época, menos ainda. Mudei para o Rio com uma colega da mesma turma e moramos juntas por algum tempo. Depois ela mudou para outro apartamento porque a família ia morar com ela. Nunca fui de viver enturmada, mas me senti muito sozinha. Nós trabalhávamos no B-727 e fazíamos as conexões dos voos internacionais. Quando eu chegava ao aeroporto de Congonhas, em São Paulo, descia do avião com a minha malinha e tinha vontade de ir direto para a casa dos meus pais. Mas como também era muito forte em mim aquela vontade de conhecer a Europa, de viajar para fora do Brasil, eu tinha que continuar no Rio. Os voos internacionais saíam todos de lá.
Voos internacionais, outras culturas
A aviação internacional é um mundo completamente diferente e para mim foi quase um choque. O grupo era bem maior e o pessoal mais individualista. Nos voos nacionais a tripulação é menor e o pessoal é mais unido. A gente saía junto para jantar e passear. Na internacional isso é mais difícil de acontecer. Não conhecia ninguém, mas aos poucos fui conhecendo os colegas e me acostumando.
O mais empolgante era conhecer outros lugares, outras culturas. Sonhava com a Europa, com Paris, aqueles lugares que eu tanto ouvira falar. Estudei francês apenas no curso ginasial e no clássico. No clássico, a professora era excelente, muito rigorosa e exigente. E o francês que sei devo a ela. Não falo fluentemente, mas consigo me comunicar, ler e entender, se falarem um pouco devagar. Teve uma época, logo que chegou o DC-10, em que eu fazia voos frequentes para Paris, porque fiquei trabalhando no B-707. Se tivesse feito prova de francês, na Varig, naquela época, eu teria nota nesse idioma. O conhecimento de uma língua estrangeira depende muito de você ouvir e praticar.
Meu primeiro voo internacional foi para Roma. Adorei! Depois Paris! Depois Londres! Sempre amei esses lugares. Também tenho saudades de Lisboa. Hoje em dia, ando um pouco desmotivada, parece que tudo perdeu um pouco a graça. Recentemente eu fiz um voo para Paris e até que recuperei um pouco do encanto que sentia. O hotel, em Paris, fica na Place de La Republique e é muito bom. Sempre gostei muito mais da Europa do que da América. Mas depois de ficar baseada em Los Angeles durante dois anos a minha concepção mudou um pouquinho.
Na América do Norte, o que mais gosto é o lado prático e fácil da vida no dia a dia. Questões de banco, supermercado, estacionamento, limpeza da casa, tudo é fácil e acessível. Ficar numa fila para mim é a morte. Lá isso dificilmente existe. Os supermercados são limpos, não têm cheiro de coisas velhas ou estragadas. Então, quando a gente volta para o Brasil é um choque. Depois desse baseamento em Los Angeles eu passei a gostar mais dos Estados Unidos, não que eu tenha deixado de gostar da Europa. Na Europa o dia a dia não é tão fácil assim.
Perfil dos passageiros
O verdadeiro passageiro da primeira classe está cada vez mais raro. Com o tempo, o perfil desse passageiro também foi mudando. Quando eu entrei, 25 anos atrás, a aviação era um meio de transporte de elite. Na primeira classe viajavam passageiros de muita classe. A gente lidava com pessoas que reconhecia de notícias de jornal, de coluna social. Onde estão essas pessoas? - eu me pergunto. Ou elas trocaram de companhia ou já não viajam tanto. É raro você viajar com uma pessoa que você conheça. Passageiro de primeira classe é aquele que viaja sempre, que conhece os vinhos, a comida. Se você está servindo caviar e pergunta se ele prefere com torradas ou com blinis, ele sabe do que se trata. São pequenos detalhes. É aquele passageiro tranquilo que viaja no lugar que já conhece e gosta. Ele não faz questão de assistir ao filme; geralmente prefere dormir. Vai chegar ao destino e tem muitas coisas para resolver.
Passageiro que não é de primeira e viaja de primeira classe, a gente também percebe pelos pequenos detalhes: quando você passa o carrinho de hors d’oeuvre ele pede “um pouco de cada”. Antigamente tínhamos três opções: caviar, lagosta e patê de foie gras, então ele pedia um pouco de cada coisa. No carro de sobremesa ele faz a mesma coisa, pede queijos, pede torta e pede frutas. Também não sabe usar os talheres... É gente que até tem dinheiro, mas não tem “finesse”.
O passageiro brasileiro, muitas vezes, não tem educação e é prepotente. O passageiro italiano é baderneiro, mas não é prepotente; ele gosta de falar alto, de ficar em pé nos corredores... O passageiro brasileiro, como o italiano, acha que é dono daquele espaço, que pode fazer o que bem entender. O passageiro alemão é muito chato e prepotente, só quer saber de falar na língua dele. Os voos para Frankfurt, depois que a Varig começou a fazer joint venture com a Lufthansa, ficaram insuportáveis. Não sei se é porque eles compram passagem com a Lufthansa e depois entram num avião da Varig, mas ficam indignados e reclamam o tempo todo! O passageiro argentino também é muito prepotente e grosseiro. O passageiro japonês é o mais educado e disciplinado do mundo!
Passageiros famosos
Já viajei com a Candice Bergen, com o George Hamilton, com o Omar Chariff - Que homem lindo! Nunca vi dois olhos tão lindos! Um olhar aveludado que não dá para explicar. Viajei com Pelé, Emerson Fitipaldi, Tom Jobim, Ayrton Senna. Viajei com o Ibraim Sued. Ele entrou uma vez num DC-10, num voo para Paris, com aquela camisa aberta no peito e aquele cordão de ouro todo exposto. Parecia um daqueles donos de jogo do bicho ou de escola de samba. Entrou com aquele olhar de quem já tinha bebido muito. Quando viu que o lugar que ele queria não era o que recebera, já soltou um palavrão: “aquela filha da ...” se referindo à moça do check in. O Renato Aragão é muito simpático.
Há pouco tempo, viajou comigo um jogador de futebol que está jogando em Paris, no Saint Germain, o Raí. Que homem lindo! Eu estava na porta recebendo os passageiros e quando vi lá estava ele, ocupando quase todo o espaço da porta... Aí comentei com minha filha, em casa, e ela me cobrou o autógrafo. Já pedi autógrafo para a minha filha, algumas vezes.  Ela fica me cobrando. Mas eu ia me sentir um pouco ridícula pedindo o autógrafo para o Raí. Peço quando se trata de um conjunto musical, de um grupo de músicos jovens, de uma atriz ou cantora. Minha filha fica toda orgulhosa e mostra para as coleguinhas na escola. Já pedi autógrafo para a Luíza Brunet, quando ela era mais jovem e ainda trabalhava para a Dijon. Ela era muito linda, sem um pingo de pintura no rosto!
Geralmente as pessoas mudam muito quando estão a bordo, principalmente as que são famosas. Na maioria das vezes, a imagem que a gente tem de uma pessoa famosa não corresponde ao que a gente vê, quando a encontra pessoalmente. O Sílvio Santos, por exemplo, é totalmente diferente daquela pessoa que a gente vê na televisão. Ele entrou, sentou, pegou um livro e leu até o fim. Na televisão é uma pessoa muito comunicativa, fala muito, mas dentro do avião é outra pessoa. Só dizia: “Sim” e “Muito obrigado.” Eu sempre procurei tratar todos os passageiros com a mesma atenção, sem fazer distinção entre os famosos e os não famosos.
Problemas com passageiros
Posso dizer que tive, recentemente, uma experiência inusitada. Foi uma experiência constrangedora que aconteceu num voo da Soletur. Vale lembrar que nos voos da Soletur o serviço da primeira classe é, na realidade, serviço de classe executiva. Então, uma passageira, que estava viajando na primeira classe, só faltou me chamar de “bonita”, para não dizer outra coisa. Ela levantou, foi até a galley e disse que eu tinha sido grosseira no atendimento, que parecia que eu estava fazendo um favor quando oferecia alguma coisa. Eu nem lembro mais de tudo o que ela falou. Só sei que fiquei tão chocada, que nem acreditei que aquilo estivesse acontecendo comigo. Para a minha sorte ali estavam a chefe de equipe e o comandante. Tinha certeza de que não tinha feito nada daquilo, porque não sou uma pessoa grosseira!  Fiquei arrasada!
Na cabine, ao lado dessa passageira, do outro lado do corredor, tinha um casal de idade e a senhora falou para mim: “Não fique chateada, não! Você lê a coluna da Ildegard Angel? Essa fulana aí faz parte da sociedade emergente do Rio de Janeiro. Não sabe nada, não conhece nada. O que ela está querendo? Um serviço de primeira classe num voo de fretamento da Soletur?” Essa passageira falou isso para mim porque tinha presenciado o zunzunzum na cabine com os outros passageiros.
Fiquei arrasada e levei dias para me livrar daquele clima negativo. Durante esses anos todos, essa foi a primeira e única vez que tive problema com passageiro. Imagino que coisas semelhantes aconteçam com minhas colegas. Outro dia eu soube de um caso em que o passageiro jogou o cardápio da primeira classe na cara da comissária porque faltava alguma coisa que ele queria...
Vida profissional, promoções
Trabalhei muitos anos na primeira classe, praticamente toda a minha vida. Quando fui para a rota internacional fiquei um ano na cabine econômica e depois fui para a primeira classe, de onde nunca mais saí. Agora sou supervisora da primeira classe. Fui chamada para ser supervisora, pela primeira vez, há uns 10 anos atrás. Naquela época havia separação de equipamentos. Ou você voava B-747 ou voava DC-10. Eu voava B-747, só fazia voos para Nova York e Frankfurt.  Então, quando a pessoa era promovida, voltava para o DC-10 e ia trabalhar na cabine econômica. Era uma promoção na concepção dos nossos chefes, mas para nós era castigo. E a gratificação do cargo era muito pequena, não compensava. Eu recusei o cargo umas três vezes.
Quando voltei do baseamento de Los Angeles, há dois anos, a situação era outra. Já estava me incomodando o fato de ser auxiliar de pessoas mais novas e menos experientes do que eu. Então aceitei a promoção, passei nos testes e assumi a função de supervisora. Fiz dois voos na cabine econômica e depois voltei para a primeira classe. Não gosto de trabalhar na cabine econômica. Na realidade eu detesto!
O trabalho em si é muito simples, se comparado com o serviço que fazíamos na época em que eu comecei a trabalhar nas linhas internacionais. O que é feito hoje é quase nada! A dificuldade está no número de passageiros. Os aviões são grandes e é muita gente, muito problema para administrar. É o fumante que está sentado em lugar de não fumante, é o passageiro que embarcou com a mulher, mas deram assentos separados, é o passageiro que bebe demais e se torna inconveniente... É muita gente e são muitos os problemas! Prefiro trabalhar numa cabine menor.
Como supervisora também tenho que tomar conta de muitas pessoas, ao mesmo tempo em que tenho meu trabalho para fazer. Sei que há muito supervisor que não trabalha; há muita queixa de comissário auxiliar a esse respeito. Tanto que a maioria dos auxiliares evita trabalhar no mesmo corredor que o supervisor de cabine porque sabe que vai ter que trabalhar por dois. Mas eu trabalho. Então, além de trabalhar, temos que supervisionar.
No meu primeiro voo, como supervisora, fui trabalhar na cabine econômica onde não trabalhava há muitos anos. Além da mudança de cabine, ainda tinha essa mudança de postura que é bem diferente. Foi num voo Londres – Copenhagen, que é um voo pesado. Achei que ia morrer naquele voo, ainda mais naquele trecho de Londres para Copenhagen que é curtinho mas está sempre lotado. No final tudo deu certo. Acho que foi a prova de fogo. O segundo voo foi para Amsterdam. Depois que terminou o mês, já passei para a cabine executiva. Fiquei lá pouco tempo e voltei para a primeira classe.
 Na primeira classe os auxiliares são todos bons. Nunca peguei um auxiliar que não trabalhasse direito, que não tivesse uma boa apresentação. Nas outras cabines o que mais se vê, hoje em dia, é colega com aparência desleixada. As meninas não se maquiam, não pintam nem as unhas. Esses problemas são maiores na cabine turística. O que acontece, às vezes, com as auxiliares da primeira classe, é que elas estão tão acostumadas a fazer o serviço que até ignoram a presença do supervisor. Os problemas com aqueles que trabalham na galley são maiores e há aqueles que deixam muito a desejar no trabalho. Não é questão de idade, nem de sexo. Muitos estão lá naquela função porque não querem atender passageiros, e no fundo não querem nem trabalhar. Então a sopa é servida fria, a omelete queima, o café é fraco... Eu parto do princípio de que todo mundo sabe o que tem que fazer. Ficar perguntando para a pessoa se o café está quente, se a sopa está quente é tão desagradável para quem ouve como para quem pergunta. Procuro não fazer isso, mas depende da pessoa com quem estou trabalhando...
Atualmente, parece que não existe muita consciência profissional. As pessoas estão ganhando tão mal que não dá nem para criticar. Sem contar a falta de material para trabalhar... Recentemente fiz um voo, num MD-11, em que dois toaletes da cabine turística estavam sem as torneiras. É muito difícil trabalhar assim, tendo que lidar com vários problemas cujas soluções não dependem de nós: os atrasos dos voos, a qualidade da comida que está decaindo etc. Já me chamaram para ser Chefe de Equipe, mas não aceitei.  Perto da aposentadoria, quem sabe.
Relacionamento com os colegas
Sempre procurei ser uma boa colega, ajudar, trabalhar. Acho que, no avião, o meu relacionamento com os colegas é bom. Não quero dizer que fora do avião não seja bom, mas, hoje em dia, não sei se é o desgaste, se é o estresse, já não tenho mais paciência para procurar conhecer as pessoas. Já não tenho mais paciência para quase nada. Não tenho mais aquela vontade de telefonar, convidar algum colega para sair, para jantar junto. Quando assumi a função de supervisora, num dos voos que fiz na cabine econômica, conheci a Júlia, que é uma pessoa muito legal e trabalha muito bem. Com ela eu gosto de conversar.  Depois, fizemos um voo para Amsterdam e fizemos uma excursão juntas.
Um dia, depois de alguns meses, nos encontramos no aeroporto e ficamos conversando mais um pouco. Ela estava saindo para fazer um voo e estava muito deprimida porque tinha um filho de cinco anos e a empregada tinha começado a trabalhar na casa dela naquele mesmo dia. Sabe aquele desespero? Falou que tinha feito um voo para o México e não tinha ninguém da tripulação com quem conversar e que se sentiu muito sozinha. Foi ao “Denys” fazer um lanche e estava tão arrasada que começou a chorar. As meninas que atendiam perguntaram o que ela tinha e ela só conseguia chorar.
Sugeri que a gente pedisse para voar juntas. Assim faríamos companhia uma à outra, para sair para jantar e, quando quiséssemos, para conversar. Então, nesse ano, nós passamos a voar juntas. Para conseguirmos isso tivemos que inventar uma história para o pessoal que faz a escala de voo. Dissemos que a babá da minha filha é a mesma do filho dela. Nem sei por que a gente precisa se justificar se quer voar fixo com alguém. Acho que esses detalhes não deviam interessar a eles. Recentemente, pedimos um voo para Copenhagen para levar as crianças e deu tudo certo. Ela disse que não tinha coragem de levar o filho sozinha. A gente voa junto e nem todo tempo está junto, mas sabe que tem alguém na tripulação com quem pode contar, se precisar. Na América tudo é mais fácil e não faz diferença se você tem companhia ou não, mas na Europa, em voos com dois ou três dias de pernoite, fica mais complicado. E hoje em dia, nas tripulações, as pessoas que conheço são as mais antigas e são minoria. Os jovens são a maioria e têm outros interesses.
Vida amorosa, casamento
Quando jovem, eu era muito retraída. Tinha uma ou duas amigas e nosso programa era ir ao cinema. Comecei a namorar muito tarde. Já tinha entrado para a aviação quando tive o primeiro namorado. Ele também era do voo, mas saiu alguns anos depois. Acho que sempre coloquei uma barreira muito grande entre as pessoas e eu. Um colega veio me dizer, muitos anos depois, que eu era a musa do Avro! Eu nunca soube disso! Também namorei um piloto. Hoje ele é comandante de Jumbo. Eu era apaixonada por ele e quando terminamos o namoro fiquei sofrendo um bom tempo.
Tive outros namorados, inclusive um homem casado. Aquilo era um tabu para mim. Estava sozinha, morando no Rio, e muito carente. Ele era um amor de pessoa. Eu já o conhecia e ele ficou me rodeando um bom tempo. Mas sempre deixou claro que era muito feliz com a mulher e não pensava em se separar. Pelo menos não fez o jogo sujo que muitos fazem dizendo que estão infelizes com a mulher, que querem se separar etc. Ficamos juntos algum tempo e quando o romance terminou, ficou a amizade.
Depois conheci o Paulo. Namoramos um ano e meio e nos casamos. Achei que ele era o homem dos meus sonhos. Era carinhoso, muito educado e muito culto.  Só que tinha um temperamento, um gênio, que não mostrava naquela época. Com o passar dos anos o casamento foi ficando muito difícil. Ele é uma pessoa que não pode conviver com ninguém porque é muito egoísta. Está sempre em primeiro, em segundo e em terceiro lugar, depois vêm as pessoas que ele ama. Tudo tem que girar em torno dele, tem que ser como ele quer, na hora que quer. Não tem diálogo. Nunca reconhece quando está errado. É muito difícil conviver com ele. Nem a mãe dele consegue.
Tentamos nos separar algumas vezes, mas eu acabava ficando porque gostava dele e achava que ia mudar. No início parecia que mudava, mas depois tudo voltava ao habitual. Quando entrava em casa, já ia arrumando as cadeiras do jeito que queria. Mexia em tudo. Como eu me ausentava para trabalhar, ele tomava conta da casa e mudava tudo. Era uma pessoa extremamente organizada, muito metódica, um exagero! Achava que eu era uma bagunceira. Pela vida que levo, chegando de viagem e saindo para viajar, até que sou bastante organizada. O problema é que eu não conseguia manter uma empregada. Elas não aguentavam a chatice dele. Ficava dando ordens, cobrando o tempo inteiro.
Depois que voltamos do baseamento de Los Angeles, ele cismou que a filha tinha que estudar italiano, porque eu tenho passaporte italiano. Ela estava com 11 anos, já falava inglês, estava estudando francês e ele insistia que ela tinha que estudar italiano. Só que ela não queria e eu não ia forçá-la a fazer isso só para agradar o pai. Seria muito bom se ela quisesse, mas eu não podia obrigá-la. Falei que tendo passaporte italiano seria um vexame chegar à Itália sem falar o idioma. E isso realmente aconteceu quando ela foi para a Itália comigo e teve que passar pela imigração. Enfim, ele chegou a matriculá-la no curso do consulado da Itália e foi um problema. 
No trabalho, ele não consegue ficar muito tempo no mesmo emprego porque acha que sabe mais que todo mundo. Na época em que voltamos de Bogotá, conseguiu um bom emprego numa grande empresa. E foi trabalhar com Comércio Exterior, que era o que ele queria. Fez viagens para a Austrália, Japão, Cingapura, ficou fora quase um mês. Mas logo entrou em confronto com o chefe que viajou com ele. Depois ficou um tempão sem trabalhar. Durante certo período inventou de plantar ervas medicinais, mas não deu certo. Depois arrumou outro emprego, onde conseguiu ficar oito anos, até irmos para o baseamento em Los Angeles. Ele conseguiu pegar uma licença sem vencimentos e foi junto. Só que deram uma rasteira nele, pois quando voltou estava desempregado. E assim está. Tem um computador que trouxe de Los Angeles, tem mil ideias na cabeça e vive fora da realidade. Talvez porque o meu lado responsável desse alguma segurança, ele soltava as asas da imaginação. Se desse certo seria uma maravilha, mas nada deu certo. Estamos separados há dois anos e só agora ele está dando pensão para a filha.
Discriminação
As vizinhas e amigas, que não são da aviação, acham que a nossa vida é maravilhosa. São curiosas e fantasiam a nosso respeito. Tem também, da parte das mulheres, o lado da inveja. Algumas nos olham com uma cara que parece ser de raiva. No condomínio onde moro, desde que a minha filha era pequena, as pessoas se acostumaram a me ver com ela no playground, na piscina, saindo para levá-la ao balé. Então não tenho esse problema. Mas há muitas mulheres que não me cumprimentam, enquanto que os maridos me cumprimentam. Elas vivem presas à casa, ao marido, aos filhos, e ficam achando que a nossa vida é maravilhosa. E ainda temos a possibilidade de levar os nossos filhos junto para viajar. Só que tem outro lado que elas ignoram...
Preparação para o voo
Quando visto o uniforme, sinto que há uma transformação e separo a vida particular da profissional. De uniforme sou a comissária de voo. Já na véspera de voar parece que começo a entrar no ritmo do voo. Mesmo que o voo seja no dia seguinte à noite. Quero deixar a mala pronta para, no dia seguinte, não ter que fazer muita coisa. No dia do voo não consigo dormir à tarde, mas procuro deitar um pouco para relaxar, descansar as pernas. A gente fica muito exposta, todos ficam nos observando, por isso procuro cuidar da minha aparência, me maquiar. Eu, por exemplo, já me sinto muito velha para estar nessa profissão.
Há uns anos atrás, uns 10 anos mais ou menos, quando houve a fusão do B-747 com o DC-10, eu passei por uma crise. Comecei a voar com muita gente mais jovem. Tinha 39 anos e me achava muito velha. Apesar de saber que tenho uma boa aparência, acho que essa profissão é para mulheres jovens, de, no máximo, até 40 anos.
Sinceramente já não tenho mais paciência para fazer as malas. Antes era um deslumbre! Combinava tudo bonitinho, roupa, sapato, bolsa e bijuteria. Hoje em dia, principalmente a mala de inverno, é quase um uniforme. É a mesma roupa. Só tiro da mala para lavar. Já não tenho mais paciência para ficar pensando em coisas diferentes, em me produzir. As mudanças de clima nos países da Europa é que atrapalham um pouco. Às vezes, é inverno e faz calor, ou é primavera ou verão e faz frio...
Atividades paralelas, alfândega
 Nunca gostei de trazer muamba para vender, mas houve uma época, quando comprei meu apartamento, que precisei ganhar um dinheiro extra. Tive uma vizinha como sócia. Eu comprava e ela vendia. Durante um ano, mais ou menos, nós fizemos isso juntas. Nós rachávamos tanto os gastos quanto os lucros. Em Nova York eu comprava cosméticos, perfumaria, bijuteria, brinquedos, óculos, coisinhas diferentes. Depois minha vizinha  se mudou, ficou sem empregada e tudo ficou mais difícil. Fizemos até um bom dinheirinho, mas era muita dor de cabeça. Sempre havia reclamações: o relógio parou de funcionar, o brinco ficou preto...  Eu não tenho paciência para essas coisas.
Depois disso, quando as pessoas me perguntam se trago coisas para vender eu respondo que não. É muito cansaço e aborrecimento. E não gosto de sair para viajar com o compromisso de ter que fazer compras. Nesse voo, por exemplo, uma amiga que é esteticista, me pediu algumas coisas. Ela me paga 50% em cima do gasto. Mas eu prefiro não ter essa obrigação de ter que levar o que ela pediu. Sinto-me obrigada, amarrada. E além disso tem o problema de passar pela alfândega. Já me aborreci algumas vezes. Em São Paulo, ainda é um pouco melhor, mas no Rio a alfândega está uma rapinagem. Eles tiram as coisas para eles: “O que você tem aí? Quero isso para mim.” Toda vez que passo na alfândega é um aborrecimento. Há pouco tempo, voltei de um voo de Roma, onde comprei dois sapatos, um para minha filha e outro para minha mãe. E tinha na mala mais dois sapatos que eram meus. Estava com quatro sapatos. “Ah, mas é muito sapato...” Respondi que dois eram meus e dois eram presentes. “Então vou pegar esse spray...” E pegou o spray de cabelo que era meu, para uso pessoal. No último voo que fiz para Nova York, antes de entrar de férias, eu fiz algumas compras no mercado e levei coisas duplas porque ia ficar algum tempo sem viajar. Eram coisas para mim, mas o cara foi pegando tudo. Pegou biscoito, sabonete, shampoo, tudo! É isso que me irrita. Eles estão até tirando sanduíches de colegas nossos!
Questões de saúde
Acho até que sou uma pessoa bastante privilegiada em relação à saúde porque converso com colegas que têm 35 ou 40 anos e elas já estão na menopausa. Muitas estão entrando na menopausa precocemente por causa do voo. Eu ando com muitos altos e baixos porque entrei na menopausa há uns dois anos. Há épocas em que estou num astral terrível. Mas evito usar medicamentos. No início, fui fazer exames ginecológicos e constatei que a taxa de hormônio estava muito baixa. O médico até me perguntou se eu não estava sentindo muito cansaço. Respondi que sim, mas achava que era consequência do trabalho, do retorno do baseamento, das mudanças de fuso, do meu casamento que não estava dando certo. Aí ele falou que a minha taxa de hormônio estava muito baixa.
Tomei um remédio para a “tiroide” para ver se melhorava, mas não melhorou. Comecei a me sentir pior. Depois parou a menstruação e eu fiquei muito pior, com uma depressão que nunca tinha tido na minha vida. Não tinha ânimo para nada. Sentia uma ansiedade enorme, acordava no meio da noite com ondas fortes de calor, depois não conseguia mais dormir. Isso tudo são sintomas do climatério, da menopausa. Muitas vezes deitava e não conseguia dormir.  Na época, estava sem empregada, sem ninguém para me ajudar. Chegava e não sabia se fazia compras, se limpava a casa, se fazia comida, se falava com minha filha. E me sentia muito mal. Se você tem saúde e energia você ainda consegue ir resolvendo os problemas.
 Aí voltei ao médico e iniciei um tratamento de reposição hormonal, que durou três meses. Melhorei muito. Quando você entra na menopausa o seu estrogênio para de ser produzido e essa reposição hormonal tem que ser feita de fora para dentro. Se parar, o efeito vai acabando. E foi o que aconteceu. Voltaram os sintomas. Fiz novo tratamento no ano passado e, desta vez, o efeito não foi tão bom. Talvez a dosagem tivesse que ser maior. Mas o problema da reposição hormonal tem o outro lado da moeda, o estrogênio tem que ser tomado junto com a progesterona, porque o estrogênio é altamente cancerígeno. Mesmo com a progesterona há um risco elevado de se desenvolver um câncer de mama ou de útero. Então é uma opção que nós temos que fazer. Quando entramos na menopausa, deixamos de produzir esse hormônio e começamos a envelhecer. A pele perde a elasticidade, o corpo perde a umidade, perde-se massa muscular, é um colapso! Para o tratamento hormonal ter efeito e prevenir a osteoporose, tem que durar pelo menos dois anos direto. E é aí que a mulher tem que fazer a sua opção.
Escala de voo
Depois deste voo, vou ter uma boa folga na minha escala, uns cinco ou seis dias, mas o que vem depois já estragou o meu mês e o meu humor: um sobreaviso, um voo para Buenos Aires, outro sobreaviso, um voo para Manaus, um dia de folga e um voo para Roma. Todos os voos tendo que ir para São Paulo um dia antes. Um dos sobreavisos começa às seis horas da manhã e acaba às oito horas da noite!  Ficar todo este tempo à disposição da empresa, sem saber se vai ou não voar, é de enlouquecer! Não vejo saída! O meu cansaço e a vontade de me aposentar são maiores graças à escala de voo, pela maneira como é feita. Se fosse uma escala decente, uma escala humana, tudo seria mais fácil. Mas parece que isso é impossível.
Toda vez que tem mudança de Gerência, a nossa escala fica pior. Um voo para Buenos Aires, depois de um voo para Miami é de enlouquecer. Fiz um voo para Copenhagen de dois dias inativos e uma colega falou que tinha três voos internacionais na escala com um dia de folga entre cada voo. Assim ninguém aguenta. Sem contar que a gente volta para o Brasil – Rio de Janeiro ou São Paulo - e tem que ficar não sei quantas horas esperando para voltar para a nossa base. No mês passado, eu fiz apenas 54 horas de voo e quase não fiquei em casa. Se não fazemos hora extra, deveríamos, pelo menos, ficar em casa, assim uma coisa compensaria a outra. Mas se não fazemos hora extra nem ficamos em casa, a situação fica terrível!
Para fazer um voo simples como é o de Buenos Aires, temos que ir à São Paulo um dia antes, pernoitamos lá, fazemos o voo para Buenos Aires no dia seguinte, voltamos e pernoitamos em São Paulo novamente e só no dia seguinte, à noite, voltamos para o Rio de Janeiro fazendo uma conexão! Isso é horrível! São três dias em que ficamos de um lado para o outro, à disposição da empresa, sem fazer horas de voo! É um desgaste tão grande que não dá para aguentar! Por isso estou ansiosa para sair, não aguento mais! Não vejo sinais de mudança para melhor. Se fosse uma coisa mais normal, se tivéssemos folgas suficientes para nos recuperar depois de um voo, para tocar nossa vida particular para frente, seria tão melhor! Mas vivemos em função da escala de voo e do trabalho.
Isso tudo sem contar o tempo de folga que gastamos limpando uniformes e nos arrumando para viajar. Nos dias de folga temos que fazer supermercado, pagar as contas, ir ao dentista ou levar o filho no médico. Vida social e lazer, nem pensar! O resultado é que não temos amigos. Tenho poucas amigas na aviação, mas no dia em que estou de folga elas estão voando. A gente acaba sempre ficando muito só. Eu, na minha vida pessoal, estou muito só. Procuro caminhar, fazer natação, mas é difícil dar continuidade por causa das viagens. Na aviação a gente não tem condições de fazer outra coisa. Às vezes, quero fazer uma reciclagem de inglês e até isso é um parto. A escala nunca permite.
Queria fazer um curso de dança de salão, seria mais uma forma de terapia. Também comecei a fazer terapia analítica no ano passado mas não consegui continuar. Naquela época nossa escala saía de 15 em 15 dias. Não dá para viver nem planejar a vida com uma escala assim. Era uma loucura! A minha terapeuta era muito ocupada e não podia ser flexível com os horários. Eu só conseguia ir uma vez por mês e ela disse que assim não tinha condições de continuar. Eu precisava ir pelo menos uma vez por semana. E depois também entra o fator dinheiro. Com o salário que a gente está ganhando, a gente quer fazer uma porção de coisas, mas não pode.
Experiência de vida
Acho que a minha vida na aviação me deu uma experiência muito boa. Só o fato de ter saído de casa, onde eu me sentia muito presa e sem perspectivas... Acho que mudei bastante porque era muito tímida. Inclusive as pessoas que me conheceram quando eu era adolescente jamais imaginaram que fosse escolher essa profissão. Mas eu tinha essa ânsia enorme de conhecer o mundo e pude conhecer muitos lugares. Acho que minha visão de mundo, sem a aviação, seria muito estreita. Não sei o que teria feito. Provavelmente teria tido um emprego medíocre. A não ser que eu voltasse a estudar.
Também acho que poderia ter aproveitado mais, no sentido de ter viajado mais, de ter conhecido outros lugares. Acho que me amarrei por causa do casamento. Meu ex-marido gostava muito de viajar, mas viajar com ele nunca deu certo porque o que ele queria fazer sempre tinha prioridade. Quando moramos em Bogotá, fizemos uma viagem para a Europa e outra para Nova York. Ficamos 45 dias fazendo camping. Nesses 45 dias nós visitamos muitos países. Essa viagem foi boa mas foi muito cansativa! Ele não é de ficar muito tempo em cada lugar. Tem uma ansiedade que parece que é a última vez que vai ver aquilo. Quando estávamos no baseamento de Los Angeles, só fizemos uma viagem para o Havaí. A gente queria conhecer as ilhas todas, mas também queria curtir uma praia. Eu e minha filha queríamos ficar na praia. Mas com ele tinha que ser tudo correndo. Dez minutos numa praia, dez minutos na outra e a gente não ficava em lugar nenhum.
Aposentadoria
Pretendo me aposentar dentro de três anos, aos 52 anos de idade. Pago o AERUS e penso que vou ganhar em torno de 70% do meu salário. Falando de aviação, acho que é uma profissão para poucos anos. No máximo 10 anos. Ficar 20 ou 30 anos é demais, é um sacrifício muito grande. A profissão tem suas vantagens, não há a menor dúvida. Minha filha me disse há pouco tempo: “Mãe, você está louca para parar, não é? Mas você vai sentir falta”. Sei que vou sentir falta dos lugares de que gosto, das coisas que gosto de fazer em alguns lugares, e das compras, é claro. Comprar coisas de qualidade por um preço menor, quem não gosta? Vou sentir falta. Mas, sinceramente, não estou mais aguentando essa vida.
Quero sair do voo basicamente porque me sinto muito cansada. Além disso, sinto o problema da minha filha adolescente que tem ficado sozinha quando viajo. A aviação, para mim, já não tem mais aquele atrativo que tinha antes. O voo, em si, se tornou muito cansativo. Por outro lado, eu paro para pensar no que eu vou fazer quando me aposentar. No início vai ser muito bom. Vou relaxar, cuidar da minha casa, ter uma vida normal. Mas me preocupo com o que vou fazer depois. Às vezes, fico entusiasmada, penso em voltar a estudar, fazer isso, fazer aquilo. Mas, de repente, eu olho para frente e vejo muita solidão. Minha filha está com 14 anos e daqui a uns quatro anos estará cuidando de sua própria vida e eu não vou impedir. Não vou prendê-la, quero que ela viva bem a sua vida. Quero que aproveite todas as chances que a vida lhe proporcionar, sempre procurando manter o equilíbrio, a cabeça no lugar. Mas, para mim, vejo uma vida muito solitária pela frente. Gosto de estudar, mas penso que já não tenho mais a disciplina para acompanhar um curso regular.
Perspectivas, sonhos a realizar
Como já falei, estou numa fase de altos e baixos. Então, há horas que faço planos, penso em fazer isso e aquilo, mil coisas! Mas, aí, repentinamente, caio naquele desânimo e não vejo perspectivas. Não vejo o que possa fazer depois que sair da aviação. A coisa que mais quero no momento é parar de voar, para botar minha vida em ordem, apesar de saber que vou sentir falta. Quando estava fazendo terapia analítica, falei muito sobre minha filha, meu marido, meu trabalho e aí minha terapeuta disse: “A gente já falou sobre seu papel de mãe, seu relacionamento com o ex-marido, seu lado profissional, e o seu lado mulher?” Aí eu respondi: “a mulher está morta!”
Eu não estava bem naquela época. Hoje estou um pouco melhor. Mas minha filha está crescendo e no Rio não tenho ninguém, só algumas amigas. Minha mãe, que mora em São Paulo está com 73 anos. Preciso de mais energia para mudar o rumo das coisas.


*Anita (pseudônimo) estava com 49 anos de idade e 25 de voo quando concedeu esta entrevista em Nova York (USA), em 1996.



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