Bibiana*
Nasci no interior do Rio
Grande do Sul. Meus pais são descendentes de italianos, com uma cultura muito
europeia no sentido de disciplina de família. Sou a penúltima dos seis irmãos.
Acho que a influência da família é bastante grande na medida em que fiquei
muitos anos em casa. Essa coisa da alegria, de gostar de gente, de respeitar as
pessoas, de ter disciplina e moral, isso é fruto da família. Tinha muita
música, muita festa, e eu sou festeira. Meu pai gostava de tocar clarinete nos
momentos de folga e isso ele passou para mim. E também tem a questão da comida,
tanto que a dificuldade de fazer regime está no imenso prazer do cerimonial que
a alimentação envolve. Ficaram registros muito fortes de uma mesa grande e de
que comida é sinônimo de alegria, de integração, de festa. O regime alimentar é
o oposto de tudo isso.
Minha mãe sempre foi
dona de casa, mas também costurava para a família e para fora. Meu pai foi
comerciante, depois trabalhou como ferreiro. Os pais não precisam ter grande
cultura para perceber as tendências dos filhos e, nesse sentido, de alguma
forma, eles tentavam nos encaminhar. Eu fui a mais nova a ser alfabetizada e
desde pequena gostava muito de ler. Lia tudo o que me caia nas mãos. Eles fizeram
um grande esforço para me dar bons estudos. Fui a única que frequentei escola
particular. Todos me incentivavam muito.
Minha mãe ainda é viva e
a morte do meu pai foi uma grande perda para mim. Faz 10 anos que ele faleceu e
só depois da sua morte é que eu soube o quanto ele era importante na minha
vida. Ele era o elemento integrador da nossa família. Agora é ela que desempenha
esse papel. Ocupou inteiramente o espaço, aumentou a sua dimensão, mesmo sem
ter muita cultura. Todos nós estamos muito admirados e felizes com isso.
Infância e adolescência
Eu não sabia exatamente
o que eu queria ser. Acho que queria ser artista, pois gostava muito de música,
de cantar. Minha mãe cantava na igreja. Eu ia junto aos ensaios e queria ser
cantora. Eu também queria trabalhar com gente. Sempre estava no meio de adultos
e discutia assuntos de adultos. Meu pai, à noite, escutava a radio BBC de
Londres e eu ficava atrás da porta escutando as notícias. Minha mãe me chamava
de intrometida. Eu era muito curiosa, mas não gostava dos assuntos triviais e
até me sentia desconfortável quando as pessoas ficavam falando de roupa ou
comida. Eu queria saber de outras coisas, do que estava se passando, em termos
de notícias, moda, etc. As outras crianças me chamavam para ir brincar com elas,
mas não era disso que eu gostava.
Estudos e trabalho
Fiz o curso normal e
comecei a trabalhar no magistério entre os 18 e 19 anos. Depois da escola
normal eu fiz alguns cursos adicionais e fui convidada para dar aula para
normalistas. Era mais ou menos autodidata, no sentido de que as coisas caiam em
minhas mãos e, por gostar e ser curiosa, eu trabalhava com elas. Alguns anos
depois, comecei a fazer Faculdade de Letras. Onde eu morava não tinha
faculdade, por isso tinha que viajar mais de 200 quilômetros para estudar. Fui
fazendo a faculdade aos poucos, ia uma ou duas vezes por semana e era muito
sacrificado. Interrompi o curso de Letras para entrar na aviação.
As pessoas diziam que eu
tinha jeito de aeromoça. Tinha facilidade para falar outros idiomas (italiano e
francês) e era muito ativa na minha cidade. Saí de lá porque comecei a me
sentir sufocada e a cidade começou a ficar muito pequena para mim. Eu já tinha
feito de tudo na cidade: era eu que promovia os bailes de debutantes e ensaiava
as debutantes. Chegou um momento em que senti necessidade de fazer coisas
diferentes.
Aviação
Quase fiquei noiva, mas
não me via casada e mãe de cinco ou seis filhos, como a maioria das mulheres da
minha época. Precisava buscar alguma coisa compatível com minha forma de
pensar. Não me via casada, morando naquela cidade pequena, sendo professora.
Precisava ver mais, aprender mais. Não tinha nada muito pronto até que surgiu a
aviação. Foi aquele insight para mudar de vida. A aviação surgiu através
de um anúncio no jornal. Eu mesma que li, no jornal Correio do Povo, de Porto
Alegre. A Varig estava admitindo candidatas a aeromoças e descrevia quais eram
os pré-requisitos. Eu me encaixei neles, apenas me faltava estudar um pouco
mais de inglês.
Aproveitei alguns dias
de férias e fui até a Varig, em Porto Alegre, para me informar. Pedi que fossem
bastante honestos comigo porque era uma profissão bastante fora de tudo o que
eu conhecia e por isso mesmo um desafio. O único problema era sair de casa e
deixar a família. Eles disseram que eu tinha muitas possibilidades de conseguir
o emprego e então deixei com eles a inscrição preenchida. Em seguida fiz um
curso rápido de inglês, para me aperfeiçoar porque só tinha o inglês do
ginásio. Na época da entrevista recebi um telegrama. E na entrevista fui aprovada em inglês, francês e italiano.
Medo de andar de avião
E o meu medo de andar de avião?! A primeira experiência foi a viagem de
Porto Alegre até o Rio de Janeiro, em 1972. Foi horrível! Falei para mim mesma:
“Meu Deus, é aqui dentro desta casquinha, confinada, que eu vou trabalhar? E se
isso cair?” Eu queria andar pelo mundo, mas teria que ficar trabalhando dentro
de um avião! Não foi só o fato de andar de avião pela primeira vez, foi o fato
de deixar minha família, deixar minha cidade e tudo o que eu conhecia. Era uma
coisa totalmente nova para mim. Eu estava muito apreensiva. Na minha cidade eu
até tinha recebido convite para ingressar no mundo político, para ser candidata
a vereadora.
O mundo representava
outro tipo de conhecimento que eu buscava. Até dentro daqueles princípios e
questionamentos filosóficos que desde criança eu tinha: “Quem eu sou? O que é o
mundo? O que estou fazendo neste mundo? Para onde vou?” A vida não podia se
resumir em casar e ter filhos. Buscava minha própria identidade e um sentido
maior de vida. Dentro do avião eu questionei o espaço pequeno onde iria atuar.
Acho que junto com a angústia também estavam as turbulências da viagem. Foram
quase duas horas de voo, num Electra.
Oposição na família
Na minha família
encontrei muita oposição, principalmente da parte dos meus irmãos que eram
muito machistas. A profissão de aeromoça era muito estranha para todos eles.
Quase não se ouvia falar sobre ela. Eu fui a única da região a entrar para a
aviação. Precisei de muita coragem! Ser aeromoça e ficar solta no Rio de
Janeiro, uma menina de família? Minha mãe e meu pai confiavam em mim e na
educação que tinham me dado. Sabiam que eu era uma pessoa séria. Minhas
atividades sempre tinham sido de responsabilidade. Era professora de educação
física do ginásio, professora da escola normal, era uma pessoa bastante
conhecida na cidade e trabalhava muito para a Igreja.
Rio de Janeiro, Curso de Comissários
Eu não conhecia o Rio de
Janeiro e achei tudo muito bonito. Nada deslumbrante, pois eu já conhecia São
Paulo. O que importava para mim não era tanto a cidade, mas o que eu estava
fazendo ali. Pensava e analisava se era realmente aquilo que eu queria, se ia
preencher essa expectativa de sentido de vida que eu tinha. O curso de
Comissários de Voo foi um desafio para mim, no sentido do conhecimento das
matérias, que não tinham nada a ver com o que eu já tinha feito. Foi uma
surpresa! Falei para a minha família: “Eu vou experimentar. Se achar que não
tem nada a ver comigo eu volto.” E todas as minhas iniciativas foram com esse
objetivo: “Vou tentar, ver se é o que eu quero, vou me dar essa chance”.
Tive uma decepção muito grande com o grupo. Eu tinha 26 anos e era a
primeira vez que me via no meio de um grupo tão diversificado. Ficava
escandalizada com muitas colegas que frequentavam o curso durante o dia e de
noite pulavam o portão para irem às discotecas. Eu era muito madura e também
muito “careta”. Estava habituada a me relacionar com pessoas mais velhas. Olhava tudo aquilo e ficava muito apreensiva.
Achava que elas não estavam amadurecidas, não tinham responsabilidade e eram
muito vazias. O meu objetivo era o trabalho, o objetivo de muitas delas era a
vaidade e a diversão. Fiz amizade com
aquelas com as quais eu mais me afinava.
Primeiros voos, questões profissionais
Fiquei dois anos nas
linhas nacionais e sempre me vi como uma anfitriã. Uma anfitriã que antes de
servir comida e bebida se preocupa com a segurança de sua casa, com as
crianças, com os adultos. Que se preocupa com o conforto das pessoas. Eu me via
sempre me burilando muito, como uma pessoa que vai se preparando para ser uma
grande anfitriã numa grande empresa.
Quando comecei a voar
também me senti muito perdida, porque no voo também percebi que havia essa
dicotomia: O grupo bem menor, preocupado com o passageiro e com a segurança do
voo. E o grupo maior levando a coisa para o lado da brincadeira. Eu ficava
muito chocada, mas também não podia me indispor. Então, em muitos pernoites eu
preferia ficar sozinha, para ir digerindo isso. Naquela época, nós ficávamos em
duas num quarto de hotel e eu cheguei a ficar com pessoas extremamente relaxadas.
Essa experiência foi enriquecedora na medida em que convivi com a intimidade
das pessoas. De alguma forma eu estava convivendo com outras culturas, pois me
relacionava com paulistas, baianas, cariocas, nordestinas, estrangeiras. E
disso eu gostava.
Quanto à instrução, nos
primeiros voos, algumas coisas eu não aceitava. Lembro-me de ter perguntado à
minha instrutora se estava tudo bem comigo. Ela disse que sim, apenas o batom
não combinava com o esmalte. Eu achava uma frescura esse detalhe. As coisas do meu
trabalho eram muito mais importantes. Talvez por ter sido professora, sempre
mantive um componente de humildade, de estar sempre querendo aprender. E foi aí
que surgiu o grande conflito. A questão da autoridade que se exerce por
competência e não por imposição. Eu respeitava a instrutora que era competente.
Para exercer um cargo, seja de supervisão ou de chefia, é preciso ter
competência.
Na profissão de Comissária de Voo, você não pode ser apenas bonita, ou
só falar bem outros idiomas, ou só saber servir muito bem. São muitos os itens
que formam a identidade e a personalidade. Para exercer bem a profissão é
preciso ter conhecimento técnico e também ter competência moral, equilíbrio
emocional, além de falar outros idiomas. Somos seres complexos. Eu coloco a
cultura como plano de vida: na profissão é preciso ter conhecimento técnico,
equilíbrio emocional (conhecer a psique humana) e educação.
Privilégios
Tive privilégios. Por
conta de ministrar muita aula, eu tinha facilidade de expressão. E logo fui
convidada para representar a Varig, como aeromoça (esse era o termo que se
usava naquela época). Na época, a Varig conseguiu tirar o primeiro lugar em
serviço de bordo. Havia uma curiosidade muito grande em torno disso. A nossa
profissão estava sendo muito divulgada. Lembro-me de ter participado de
entrevistas em estações de rádio e emissoras de televisão com outras pessoas da
nossa chefia, para falar sobre a profissão. Fui convidada para fazer uma
palestra no dia das mães, no clube de mães. Elas tinham curiosidade sobre a
profissão que as filhas queriam seguir, mas elas não sabiam exatamente o que
era. Naquela época ainda era pequeno o número de pessoas que viajavam de avião.
A aviação era um transporte de elite. Depois, em alguns cursos de etiqueta, eu
continuava representando a Varig porque ela sempre significou muito para mim.
Voos internacionais
Fiquei dois anos trabalhando nas linhas internacionais. A passagem para
as rotas internacionais foi rápida, em função dos idiomas que eu falava e
porque a empresa estava em expansão, adquirindo novas aeronaves e operando
novas linhas. Foi tudo muito bonito! Meu primeiro voo foi para Roma. Fiquei
encantada, emocionada! Eu não queria saber de dormir, queria conhecer a cidade.
Nos pernoites, já nos primeiros voos, comecei a perceber que os colegas
mais antigos se dedicavam mais à muamba, ao lado material. Eles diziam: “Eu vou
te levar em tal lugar, onde você pode comprar tal e tal coisa”. Em Roma eram as
bolsas e os óculos. Em Paris eram os perfumes, cosméticos e meias. Em Nova York
era tudo. Mas eu queria sair e ver outras coisas. Então eu me sentia muito
limitada, pois não sabia sair sozinha. Queria ter mais tempo para conhecer os
lugares, falar com as pessoas. Eu queria ter mais contato com essas outras
culturas, viver mais o lado cultural que a profissão oferecia.
Nos dois anos de voos
internacionais, em termos culturais, eu me identifiquei mais com a Europa.
Apesar de ser italiana, me identifiquei e gostei muito mais da França. A Itália
me pareceu muito familiar. Esse tempo “de internacional” me deu essa noção de
cultura do mundo. Cada país tem sua cultura e seus valores, sua arte, seu
caminho histórico. Na Europa os lugares se assemelham, apesar da identidade
particular de cada país. Foi um tempo fantástico!
Desgaste nas viagens
A minha produção de
adrenalina aumentava muito em cada viagem e quando eu chegava em casa já não
tinha forças para mais nada. Tomava um banho e ia para a cama descansar e dormir.
Da mesma forma quando chegava aos quartos de hotéis nos pernoites. Primeiro
tinha que dormir, depois de passar uma noite inteira trabalhando dentro de um
avião. Até me admirava de ver que algumas pessoas da tripulação tinham pique de
sair. Sentia dificuldade com o fuso horário e muitas vezes me desencontrava nos
horários. Tinha meus limites e precisava respeitá-los.
Ambiente e postura profissional
Sempre fui disciplinada
e procurava fazer o que era para ser feito. Mas lembro de uma vez em que um
Chefe de Equipe me chamou a atenção. Ele disse que eu estava demorando muito
para servir o drink e que por isso o meu setor estava atrasado. Eu ponderei com
ele que nós tínhamos várias horas de voo e perguntei se ele, que estava
prestando tanta atenção, não tinha percebido que os passageiros do setor da
outra colega vinham me pedir bebidas porque ela não oferecia ou porque queria
fazer tudo muito rápido. Perguntei o que era mais importante: atender direito
ou fazer tudo depressa.
Eu me sentia uma
anfitriã, uma representante da empresa, e achava que de mim dependia a alegria
e o conforto daquelas pessoas. Servia e sempre perguntava se queriam mais
alguma coisa. O que me dava prazer era servir bem e me relacionar de forma
amigável com os nossos passageiros. Exatamente por isso muitos colegas me
hostilizavam durante o voo. Até mesmo os Chefes de Equipe. É estranho, mas isso
acontecia e me magoava. Eles diziam que eu era muito padrão, que eu era muito
empresa. No caso, quem deveria ser mais empresa era o Chefe de Equipe ou o
Supervisor de Cabine, pois eles tinham os cargos de confiança.
Vivi um período muito
difícil, quase uma crise de identidade em meio aos colegas. O que eu podia
fazer? Agir como todo mundo ou de acordo com os meus princípios? Muitas vezes
eu procurava fazer como todo mundo. Fazia de conta que não ouvia os pedidos,
não olhava para os olhos das pessoas para evitar pedidos extras e fazer o meu
serviço no mesmo tempo que os outros. Mas isso me fazia muito mal. Acho que as
pessoas que entram, ou entravam com uma proposta séria de ser profissional se
magoavam muito.
Hoje vejo esses problemas aqui no Centro de Treinamento. Estou em
contato com os copilotos e com a filosofia que é dada a eles. E vejo exatamente
aquilo que é passado nos cursos. A teoria é uma e a prática é outra. Então, é
necessário ter certa cultura, não apenas o lado técnico. É necessário
desenvolver o lado emocional, aprender a perceber e desempenhar o seu papel. Ou
se tem condições ou não se tem. O papel do Chefe de Equipe está bem
explicitado. Só que é a personalidade dele que vai interpretar esse papel.
Então, o que fazer? A chefia ou a
empresa, não pode estar lá o tempo todo vigiando. E onde a Varig falha? No
recrutamento, na seleção e no acompanhamento do Chefe de Equipe.
A função do Chefe de Equipe
Na minha concepção, o
Chefe de Equipe é um gerente e instrutor a bordo. E é também um modelo.
Portanto é um profissional que deve estar solto. Mas na realidade não é assim.
Como é mesmo que se aciona a escorregadeira? O Chefe de Equipe deveria estar lá
para ensinar e cobrar. E para isso ele deviria fazer cursos no CTC com mais
frequência. Deveria fazer cursos de desenvolvimento, ter mais consulta com
psicólogos. Ele é um elemento chave e pode acabar com um voo. Pode construir ou
destruir, pois tem essa força. Trabalhamos dentro de um avião e é ele quem vai
nos unir ou nos dispersar. É preciso ter um líder no grupo. Se o Chefe de
Equipe estiver envolvido numa atividade técnica, durante o voo, ele não tem
como observar o trabalho de sua equipe e até remanejar os comissários de acordo
com a necessidade do voo ou com a habilidade de cada um. Não vai ter a
possibilidade de administrar conflitos. Os comissários mais sociáveis devem ter
mais contato com o público, os menos sociáveis podem fazer serviço de galley.
Acidente de trabalho
Eu estava muito bela e
faceira, assumindo a minha profissão, dizendo a mim mesma que era o que eu
realmente queria, quando o acidente aconteceu. Foi o maior trauma da minha
vida! Primeiro veio um processo de negação, eu não aceitava o acidente e dizia:
“Não me tirem da escala porque eu logo vou voltar”. Voei apenas quatro anos e,
por causa do acidente, tive que parar, estando ainda muito apaixonada pela
aviação e pela vida que estava vivendo.
O acidente aconteceu no dia em que eu ia assumir um voo para Paris. Na
entrada da Ilha do Governador, o ônibus da empresa bateu num fusca. Estava
chovendo muito e parece que o ônibus estava com problemas de freio, isso eu
fiquei sabendo depois. Sofri o que os médicos chamam de chicote – um
deslocamento na coluna cervical. Machuquei a coluna cervical e todo o plexo
braquial do lado direito. Senti muita dor, uma dor tão violenta que eu não
conseguia segurar minha bolsa. Mas como não houve sangramento, quando o
comandante que estava na condução perguntou se alguém tinha se ferido, eu não
falei nada. Pensei que tomando uma aspirina, quando chegasse no avião a dor
passaria. Só que não passou. Tomei duas aspirinas, chequei o material e a dor
não passava. Movimentar-me foi ficando muito difícil, muito dolorido. Eu podia andar, não havia sangramento, eu não
sabia o que tinha acontecido, mas não imaginava o pior. Não conseguia mexer
direito a cabeça e comecei a racionalizar: deve ser torcicolo, amanhã estarei
melhor. E foi assim que fiz o voo, mesmo com muita dor e me sentindo muito mal.
Ao chegar a Paris, nós
fomos para o hotel e eu nem tomei banho. Deitei e desmaiei porque a dor era
insuportável e parecia que eu tinha sido anestesiada. Não sei se desmaiei ou se
dormi. O que sei é que quando acordei, não conseguia me mexer, não conseguia
mexer o corpo da cintura para cima e sentia uma dor enorme. A colega que estava
comigo no quarto chamou o Chefe de Equipe. Eles me levaram para o hospital,
tiraram uma radiografia e apareceu a lesão na minha coluna. Eles queriam que eu
ficasse lá hospitalizada, mas eu não aceitei. Voltei de extra (sem trabalhar),
fui direto para o hospital e lá fiquei alguns dias. O médico recomendou
fisioterapia.
Eu continuava pedindo
que não me tirassem da escala de voo, que eu faria fisioterapia e voltaria logo
às minhas atividades normais. No hospital, eles me davam anestesia e achavam
que eu estava dormindo, mas eu não estava e ouvia o que eles diziam: “Que pena,
tão bonita e vai ficar paralisada para sempre”. Eu ouvia tudo, mas não
conseguia falar e como não enxergava, dizia para mim mesma que eles não estavam
falando de mim. Eu só tinha certeza de que falavam de mim quando diziam: “Ah, ela
é comissária da Varig?” O nosso instinto de sobrevivência é muito grande e em
nenhum momento eu pensei que fosse ficar paralisada e que não pudesse mais
voltar para o voo.
Afastamento do voo e tratamento
Tudo isso aconteceu em
1976. O tratamento durou cinco anos. Foi muito longo e muito dolorido. Fiquei
poucos dias no hospital, depois continuei fazendo fisioterapia. Podia andar
normalmente. O problema era na coluna cervical. Usava colar ortopédico e fazia
fisioterapia e acupuntura. Acredito que foi a acupuntura que ajudou a tirar a
dor. Nesse período eu morava com minhas irmãs e elas me ajudavam.
A Varig, por meio da nossa chefia, foi maravilhosa comigo. Fiquei cinco
anos afastada do voo. Vivi numa angústia muito grande porque precisava pagar o
apartamento que eu tinha comprado antes do acidente. Comprei o apartamento em
dezembro e em abril sofri o acidente. Minhas irmãs moravam comigo e eu me
sentia responsável por elas. Uma delas estava sem emprego. Cada vez que ia fazer
perícia médica no Cemal, eu dizia que estava boa e que queria retornar ao voo.
Fiquei cinco anos fazendo fisioterapia. Fiz exames nos melhores lugares.
Melhorei muito, mas ficaram sequelas neurológicas: fiquei sem força na mão e no
braço direito.
Casamento, dores, desafios
Foi na época das dores
insuportáveis que conheci o meu primeiro marido. Por conta de todos os exames
eu comecei a ter uma nevralgia dentária muito grande. Eu não podia abrir a boca
e acabei no consultório dele e acho que foi ele que me salvou a vida. Aprendi
muito nesse período tão difícil. Ele me levava para fazer fisioterapia, tinha
os maiores cuidados comigo. Foi uma pessoa que muito me ajudou e marcou. Tive
vários bloqueios: num deles perdi o movimento das pernas, no outro fiquei cega
por mais de 50 dias. Sofri dores insuportáveis. Aceitava qualquer tratamento
sem reclamar da dor porque a dor que eu sentia era imensa. Nem gosto de falar
sobre isso porque vivi o meu limite de dor física. Era tanta dor que cheguei ao
ponto de querer me suicidar. E foi numa dessas situações de imensa dor que
cheguei a ter morte clínica. Foi uma experiência sobrenatural que vivi e que me
marcou muito.
Dor, experiência de morte clínica
Estava numa crise de dor
imensa na coluna, já não queria respirar para evitar a dor. Nem chorar, nem
falar eu podia. Meu marido me levou para um posto de emergência. Recebi injeção
para anestesiar a dor, mas a dor não passava. Eu não via nada. O que eu tinha
era uma consciência de dor. Depois me aplicaram morfina. Com a morfina,
apaguei. Ao acordar, as dores continuavam tão fortes quanto antes.
Então fui para janela,
com vontade de me atirar. Queria parar um minuto de sentir dor. Eu estava perto
da janela, mas não podia me movimentar por causa da dor. Meu marido se
aproximou e eu disse que se ele me amava tanto quanto dizia ele tinha que me
ajudar a parar com aquela dor. Então, fomos até uma clínica chamada Clinidor.
O casal que estava lá já ia saindo, mas meu marido conseguiu convencê-los a
voltar e me atender, pois eu morria de dor. Eu andava de um lado para o outro
sem parar. Não conseguia falar nem pensar em nada.
Eles me aplicaram uma injeção na região do pescoço que bloqueou o nervo
e a dor parou imediatamente. Foi a coisa mais maravilhosa que podia me
acontecer. Eu queria abraçar o médico de tanta gratidão. Mas em seguida eu
comecei a tremer demais. O médico explicou que eu estava relaxando porque tinha
ficado contraída durante muito tempo por causa da dor que tinha sofrido. Eu
disse que ia deitar pois sentia dificuldade em respirar.
Estava deitada, meu marido de um lado da cama e o médico do outro.
Pouco depois, falei para o meu marido: “Querido, não estou mais respirando, eu
vou para casa. Mas não se preocupe que está tudo muito bem”. Daí tive a
impressão de que fechei os olhos. Quando abri os olhos, eu estava na parede lá
em cima, onde tinha uma luz muito bonita. Eu me sentia muito bonita, leve,
transparente e tudo lá era muito bonito. Então eu olhei para o meu corpo e
disse: “Como eu era alta!” E cheguei perto do meu corpo, olhei e disse: “Que
engraçado, eu até que me achava bonitinha. O meu corpo não era tão bonito
quanto eu pensava”. E ainda acrescentei: “Que ser humano tão sem vida. O que dá
a beleza no ser humano é o espírito, sou eu.” E falei: “Meu corpo é um boneco
feio!” Aí eu olhei para o médico e vi o meu marido me pegando no colo e me
sacudindo. Eu cheguei a me aproximar dele, passar a mão nele, mas não consegui
tocá-lo. A minha mão não era matéria. Aí é que percebi que ele estava num outro
plano.
A morte clínica durou
três minutos. Eu estava fora do meu corpo só observando. Eles estavam
desesperados, me sacudiam e me chamavam. E eu estava fora do meu corpo só
observando. Se ele estivesse em sintonia comigo, a gente iria conseguir se
comunicar. Isso eu aprendi naquele momento. Aprendi mais sobre a eternidade
naquele momento do que em todos os livros que eu tinha lido durante a minha
vida. Percebi que podemos nos comunicar através de ondas cerebrais, é só ficar
em sintonia. Dentro da matéria eu também posso me comunicar. Isso eu senti.
Então, olhei para o meu marido e olhei para o médico. Na cabeça do médico tinha
um livro muito grosso, aberto, onde estavam escritas as medicações que ele
tinha passado para mim, com as dosagens. Depois de acordada, eu falei tudo o
que ele tinha me dado. Ele ficou quase louco.
Antes, ainda como espírito, eu percebi que pensamentos são coisas. Eu
fui para casa, para um lugar muito bonito. Tinha uma luz que me chamava. Eu era
azul e sentia que ainda era matéria, mas que ia perder essa forma. Era maior e
mais leve do que o meu corpo e muito bonita. Eu ia para um lugar onde me
tornaria mais sutil e então passaria a ser branca. Mas vi que meu marido me
chamava muito, ele implorava para que eu respirasse. Eles me aplicaram
oxigênio. Eu queria explicar para meu marido que ele precisava me deixar ir.
Cheguei assim de lado, olhava para ele e o via desesperado. Eu o amava muito e
comecei a me constranger. Vendo o sofrimento dele também fui ficando triste. Aí
levei um choque, um choque elétrico muito forte em todo o meu corpo. E quando
me dei conta estava dentro de uma coisa úmida, pequena e apertada. Eu tinha
voltado para o meu corpo. E durante muito tempo ainda fiquei com muitas manchas
pretas nos braços porque me debatia muito. Foi uma experiência muito forte.
Busca da espiritualidade
Foi nesse período que entrei
para a Ordem Rosa Cruz e comecei a buscar as respostas de tudo o que estava me
acontecendo. Sempre me fiz muitas perguntas filosóficas de sentido de vida e
agora mais ainda eu queria saber por que estava vivendo tudo aquilo. Em função
de tudo isso, fiz também vários cursos de parapsicologia e metafísica. Na Ordem
Rosa Cruz encontrei muitas respostas e ainda busco o domínio da minha própria
vida. Hoje, depois de todas essas experiências, ainda me pergunto por que Deus
me desviou completamente de um caminho para o outro. Foi uma mudança de 180 graus em minha
vida.
Durante esses cinco anos de tratamento também fiz análise transacional,
cursos de psicologia aplicada e de Yoga, sempre com o objetivo de encontrar
respostas para as experiências sobrenaturais que tinha vivido e também para
obter o controle de mente para poder voltar para o voo. Simultaneamente, com o
tratamento médico, de fisioterapia, de remédios, de injeções, eu buscava a
minha saúde física. Queria voltar para o voo, mas Deus reservou outros caminhos
para mim. Foi uma experiência muito difícil. Uma vez, quando fui ao Cemal para
a perícia médica, a psicóloga disse que eu não tinha condições de retornar para
o voo. Não aceitei e quis avançar nela. Não queria aceitar a realidade.
Força de vontade, busca da superação
Nesse período, apenas de
vez em quando eu visitava a minha chefia e ia conversar com nosso diretor.
Queria tentar fazer uma coisa ou outra, mas não era possível. Quando ficou
estabelecido que eu não voltaria para o voo, o nosso diretor do serviço de
bordo, Sr. Sergio Prates, ofereceu-me a opção de me aposentar ou de trabalhar
em terra. Machucada, frustrada, incapacitada para o voo e com a autoestima lá
embaixo, eu aceitei trabalhar em terra. Queria mostrar que não estava
incapacitada para o trabalho. Inclusive eles foram muito flexíveis comigo, em
termos de horário. Isso tudo porque tinha sido um acidente de trabalho e a
empresa era responsável pelo meu estado. Era um dever moral que eles tinham
comigo.
Paralelamente a tudo o
que já citei que fazia, fiz cursos na área de Etiqueta e Cerimonial. Isso era
uma coisa com a qual eu me identificava e já trazia alguma experiência lá do
Sul. Mas o motivo maior estava ligado ao fato de que ficaram sequelas na minha
fala e eu queria me obrigar a falar em público para ver se recuperava meu modo
normal de falar. Levei para o nosso diretor essa minha intenção e preocupação.
As minhas dificuldades eram muitas. Tinha dificuldade para falar em
público; dava-me um branco que parecia durar uma eternidade. Ficava tão nervosa
que as palavras se misturavam e eu não conseguia ver ninguém. Era um problema
mecânico mesmo. Eu ia falar e o final de uma palavra se misturava com o início
da outra ou de uma terceira palavra. Na minha mente a ideia era clara, mas na
hora de falar meu maxilar trancava. Também fiquei com trauma e muito medo de
carro. Tive que fazer um grande esforço para superar o desafio de aprender a
dirigir. Antes eu não dirigia. Mas se todo mundo dirigia porque eu não poderia?
Então fui fazer o curso para tirar minha habilitação. Mas quando sabia que no
dia seguinte ia ter aula de direção, entrava em crise. Tinha diarreia, o braço
doía muito mais. Felizmente consegui superar essas dificuldades e, hoje, eu
adoro dirigir e gosto de fazer isso com velocidade.
Retorno ao trabalho
Fiquei afastada do
trabalho de 1976 a 1981. Na aviação tudo é muito dinâmico e se você não está
presente fica sem saber o que está acontecendo. Fiquei afastada e aconteceu
comigo um fenômeno nesse sentido. Sempre que ia à Varig, que via os aviões, tinha
uma reação física: começava a tremer muito. Muitas vezes não dominava aquela
tremedeira, por isso passei a evitar minhas idas à Varig.
Voltei para o trabalho
com uma série de limitações. Fiquei na chefia, trabalhando com a Doralinda, mas
não tinha força para escrever. Paralelamente, continuava fazendo meu
tratamento, com fisioterapia, yoga e acupuntura. Não foi nada fácil. Meu marido
me ajudava a pagar as despesas, pois o que eu ganhava não era suficiente para
cobrir todos os gastos que tinha. Antes de voltar ao trabalho eu não precisava
gastar com roupa e maquiagem.
Na medida em que fui
melhorando e me tornando mais independente, o meu casamento começou a não dar
certo. Ele queria uma mulher mais frágil, totalmente dependente dele. Eu quis
ter filhos com ele, mas não pude ter. Em função das sequelas do acidente, o
médico não recomendava uma gravidez. A separação foi muito difícil, pois ele
foi uma pessoa muito importante na minha vida. Foi ele quem me incentivou a
fazer muitas coisas, que me ensinou a dirigir. Tenho um carinho e um
reconhecimento muito grande por ele. Simultaneamente ao meu retorno às
atividades na Varig, comecei a dar meus cursos de etiqueta, cerimonial e
protocolo. Mas para o pessoal do voo dei pouquíssimos cursos.
Seleção de candidatos
Fiz parte de um grupo de pessoas da empresa que selecionava os
candidatos a Comissários de Voo. Essa tarefa não é nada fácil. Na equipe, havia
um psicólogo e aprendi muito com ele sobre a análise psicológica do candidato.
Como ex-comissária, tinha uma visão um pouco diferenciada, via mais o lado da
sociabilidade, da apresentação social e das potencialidades para o desempenho
da profissão. E como vim do magistério, focava o lado cultural da pessoa, sua
educação, sua interação com as outras pessoas.
O psicólogo tinha outras
concepções e captava sinais que me passavam despercebidos. Ele percebia quando
a pessoa falava muito, quando relatava a história pessoal e os medos ou a
motivação que essa história trazia. Percebia se a pessoa estava nervosa ou
ansiosa e se o nervosismo era por causa da entrevista, o que é normal, ou se
era resultado de uma instabilidade emocional. Fui aprendendo com o psicólogo a
entender esses elementos de psicologia, que me fascinavam. Aprendi a fazer as
associações dos vários aspectos da personalidade do candidato.
A instabilidade
emocional, a agressividade, são aspectos que eliminam o candidato na
entrevista. O acanhamento em demasia também. A pessoa que não se sente bem em
lugares estranhos, que tem dificuldades em se relacionar com pessoas estranhas,
não pode ser Comissário de Voo, pois uma grande parte do seu trabalho é lidar
com pessoas estranhas. Realizando esse trabalho, aprendi muito em relação ao
perfil das pessoas. Até então eu dava mais atenção ao interno que ao externo e
aprendi que tem que haver uma harmonia. Não adianta o cabelo bem tratado se a
pessoa é agressiva.
Uma vez o psicólogo nos
contou que um diretor da Varig havia recebido uma indicação vinda de Brasília
(alto escalão) para admitir um candidato a Comissário de Voo. Diante do fato, o
psicólogo respondeu: “Se ele tiver condições, entrará para o voo, como entram
os outros candidatos. Mas se não tiver, e mesmo assim quiserem fazer a sua admissão,
o diretor vai assumir por escrito a responsabilidade pela admissão dessa
pessoa”. Isso mostra a seriedade do trabalho realizado nas entrevistas e exames
de seleção.
Cuidava-se da imagem da
empresa, do bem estar dos passageiros, da disciplina no trabalho, dos valores
de família. Era importante saber o que o candidato fazia antes, que tipo de
experiências tinha tido, como tinha reagido. O que mais o impressionava, de que
mais gostava... Numa resposta o candidato pode mascarar alguns problemas, mas não
em todas. Podia-se perceber se entrava em contradição com frequência ou se
havia coerência em seu discurso. Candidato que tivesse mais idade do que o
limite exigido pela empresa, só era aceito se tivesse muitas qualidades ou
falasse muitos idiomas. Houve uma época em que a empresa estava com novas rotas
e a prioridade era o idioma.
Estruturação do CTC
Foi muito interessante trabalhar na Varig na época da estruturação do
Centro de Treinamento de Comissários. Foi um trabalho criativo e desafiador.
Não se tinha absolutamente nada. Somente os manuais dos aviões. Eu me senti
privilegiada por estar trabalhando com Sailton, Petrilo e depois Dona Alice.
Nós começamos a fazer os manuais do serviço de bordo. Em relação à segurança, os
conteúdos eram determinados pelo DAC (Departamento da Aeronáutica Civil).
Quanto a isso não havia muito problema. Em relação aos equipamentos, eles
vinham das empresas fabricantes com os manuais. Também não havia dificuldade. O
desafio era fazer a sequência do serviço de bordo, de acordo com o que a
empresa queria. Então foi uma época de muito mais disciplina. E isso refletia o
momento político brasileiro, pois era tempo da ditadura militar. Havia mais
disciplina e era mais fácil trabalhar porque as coisas davam certo e fluíam.
Quando o grupo trabalha com disciplina os objetivos são alcançados com mais
facilidade.
Aeronautas X Aeroviários
O corporativismo na
empresa também é muito grande. As pessoas legislam em causa própria. O que deu
para sentir, quando nas chefias de comissários, o poder saiu das mãos dos
aeroviários e foi para as mãos dos aeronautas. Acho que o aeroviário
(funcionário que trabalha em terra) vê mais a empresa, o contexto da empresa.
Ele tem a visão sistêmica de tudo e o papel do comissário dentro da empresa de
aviação. O comissário só vê a si próprio e ao seu grupo. Não vê o contexto da
empresa, o sistema. Ele pensa que sem ele nada acontece e se coloca no centro,
como se tudo tivesse que girar em torno dele. Essa visão de empresa é consequência
da especificidade e singularidade de sua profissão.
Essa transição se
manifestou na petulância e na arrogância. Para os aeronautas, os aeroviários
não sabem nada. “Eu estou no voo, eu é que sei”. Mas as coisas não funcionam só
de um lado. E o que a gente podia perceber era uma reivindicação sistemática
de tudo, uma insatisfação constante em tudo.
Ou são os voos, ou é o hotel, coisas tão pequenas, tão bobas, frente a
um sistema tão grande que envolve tanta coisa, como a imagem da empresa, o preço
tão caro de um motor de avião, bem como as vendas de passagens... E o
tripulante fica questionando sobre um detalhe tão pequeno quanto dormir no
mesmo quarto com outra pessoa.
Então, a visão que o restante da Varig tem dos aeronautas é
discriminatória, como sendo pessoas muito frívolas, voltadas para o próprio
umbigo. Nós, aeroviários, vemos que os problemas são muito mais sérios. Não é
só a diária de 17 reais. Eu duvido que o tripulante gaste tudo isso numa
refeição. E tudo isso o restante da Varig observa. A discriminação existe por
conta dessa frivolidade, quando, na realidade, numa empresa como a nossa, os
privilegiados são os aeronautas. O salário do pessoal de terra é um só. Lembro
que quando eu voava, nem mexia no meu ordenado. Muitos aeroviários têm duas
faculdades e ganham bem menos, mas têm uma responsabilidade incrível!
O papel de
conscientização estava a cargo dos instrutores daqui do CTC. É essa a realidade
que vejo. O processo de conscientização se dá através dos instrutores. E o que
acontece?
Dificuldades no treinamento dos
Comissários
Nessa nova filosofia da
Varig, alguma coisa precisava acontecer para unir as pessoas. Mas, até poucos
meses atrás, estava tudo disperso. Era um bando disperso, sem uma filosofia,
sem um líder. O que se via? Os instrutores aqui do CTC pensando no amanhã,
quando teriam que voltar para o voo, para o grupo, não conseguiam aplicar uma
punição ou exigir mais disciplina dos comissários por causa do medo de
enfrentar o boicote do próprio grupo depois.
Um chefe é muito
solitário! Quanto mais alto o seu posto, maior a sua responsabilidade e maiores
as cobranças. É preciso dizer “não” a uma série de coisas. No mínimo é preciso
ver os dois lados. Por muito tempo eu levei a pecha de ser patronal e de ser
contra os comissários. Mas essa não é a realidade, eu sou comissária. Mas eu
dizia: “Gente, há coisas muito mais importantes do que essas que vocês estão
reivindicando. A empresa está despencando e vocês estão querendo aumento de
diária”? Nós não temos dinheiro para
comprar material de treinamento porque a empresa está sem dinheiro e vocês
querem aumento de diária? A manutenção está sem dinheiro para comprar peças de
reposição e vocês só pensam em vocês?!
Mas não era culpa do
grupo do voo. Ninguém, na empresa, passava essas informações para os
tripulantes. Desde 1981, quando cheguei aqui, a minha grande batalha foi dar um
curso, um treinamento mais aprimorado aos Chefes de Equipe e Supervisores de
Cabine. Eles são os multiplicadores, são eles os gerentes, os modelos.
Acho que o tripulante não tem que vir tanto ao CTC. Uma sala, com
vídeos em relação ao aspecto técnico é importante. Mas o maior treinamento
ainda tem que acontecer no desenvolvimento das pessoas. Acho que os comissários
estão muito largados nesse aspecto. Eu mudaria e daria mais treinamento. Minha
função aqui dentro é mais técnica, em termos de estrutura do treinamento. Não
vejo os conteúdos. Até determinada gestão, eu participava da estrutura do
treinamento, dos conteúdos. Era eu que fazia, com a minha equipe. Então, se
tinha curso de Chefe de Equipe, a gente fazia um levantamento do perfil do
Chefe de Equipe que a empresa quer. É gerente, é instrutor? Também ia para o
departamento de “marketing” e queria saber qual o perfil do meu passageiro. Com
esse perfil de passageiro, eu precisava de determinado perfil de Comissário e
de Chefe de Equipe. E, com essas informações, criava uma estrutura de
treinamento, onde mostrava filmes da fundação, dos direitos que os funcionários
tinham, convidava o gerente de propaganda para dar palestras.
Com esse lado mais
técnico do serviço de bordo, de segurança, nunca me preocupei porque era uma
coisa trivial. Eu queria que os psicólogos viessem dar palestras. Justamente
por conhecer os passageiros e saber como é difícil administrar o seu medo, a
heterogeneidade de culturas. Também conhecia o grupo de comissários, pessoas
educadas, mal educadas, cultas, ignorantes. Tem de tudo. Eles passam aqui pelo
CTC e como aqui não é chefia, não existe censura e cada um se comporta como
quer.
Na empresa só existe o
mecanismo de tentar nivelar no momento da seleção. Mas não existe o
acompanhamento do trabalho realizado pelos comissários. Nem cobrança dos Chefes
de Equipe. Ainda está tudo muito solto. O corporativismo ainda é muito grande
aqui. Qualquer cobrança e as pessoas ficam cheias de melindres!
Avaliação e acompanhamento
Acho que meu tempo aqui
na empresa já passou. O espaço agora é ocupado pelos comissários, com as
chefias dos comissários e as regras estão sendo ditadas por eles. Se tivesse
poder iria reestruturar todos os cursos. Os cursos de revalidação, há anos que
digo isso: primeiro aplicamos uma prova e os aprovados, os que sabem, são
dispensados das aulas. Só voltariam para fazer treinamento prático em
sobrevivência no mar. E diria a eles: “Vocês têm dois dias de folga porque
vocês têm o conhecimento!” Eu avaliaria tudo. Aqui no CTC nós não temos
avaliação de conhecimentos e é isto que está faltando.
Os instrutores acham que não é preciso fazer a avaliação porque se você
tirar 10 aqui não significa que você vai ser um excelente profissional. Isso eu
também acredito. Mas teria aqui uma medição, não uma avaliação. Vou medir com
quanto conhecimento você está saindo daqui. Isso é uma filosofia rejeitada pelo
grupo. Só há provas de segurança, nas revalidações. Por mim, hoje, no CTC, tudo
seria avaliado. Na medida em que meço o conhecimento dos alunos, meço a competência
dos instrutores. Eu mediria o conhecimento de gastronomia para não ter que
ouvir as barbaridades que dizem quando servem vinhos. Mediria a sequência de
serviços, como é o aproaching e a recepção dos passageiros. Aplicar isso
dentro do avião é o gerenciamento. Aqui, preciso conferir se saiu sabendo. Sabe
fazer um drink? Sabe oferecer? Sabe se dirigir ao passageiro? Qual é a origem
da dificuldade? É falta de conhecimento ou é problema emocional? Sinto que o
comissário está bastante abandonado. Falta orientação e acompanhamento.
Mudanças necessárias
Acho que vão ter que
mudar os chefes e os critérios de seleção dos chefes. É preciso reformular
tudo. Já no recrutamento de seleção, o candidato selecionado deve ter potencialidade
de se tornar supervisor e chefe de equipe. Não são todos que vão chegar lá, mas
devem ter perfil para isso. Com uma visão mais moderna, mais dinâmica e
administrativa. E devem ter um acompanhamento mais próximo. A perpetuação na
carreira de comissário é nociva. Se não corresponde mais ao perfil, vá procurar
outra coisa para fazer. Se não tem mais saúde, então se aposente. Engordou 30
quilos? Desculpe, não serve! Procure emagrecer!
Quando a gente tem o
conhecimento, vê que tudo é tão fácil! Vejo que daria para se fazer muito mais
coisas em curto prazo. Acho que estamos partindo para uma mudança de cultura,
para uma nova Varig. Mas a infraestrutura do treinamento e o acompanhamento
ainda deixam muito a desejar. Há cinco anos que estou trabalhando na informatização
do treinamento. Não tenho o histórico dos comissários. Não tenho os dados das
habilidades e das dificuldades de cada comissário. Se tivesse, só faria “refreshment”
nas áreas em que ele estivesse precisando; não seria um curso uniforme para um grupo
heterogêneo.
No momento em que o
Chefe de Equipe estiver solto, só gerenciando o voo, observando a atuação da
equipe, fazendo o “briefing” e o “debriefing”, tudo ficará
melhor. Mas enquanto o Chefe de Equipe não for treinado com cursos, com
formação e acompanhamento de um gerente, não vai melhorar muito não. Enquanto
ficarmos trazendo todo mundo para cá, nada vai mudar.
Etiqueta nas aulas das Escolas de
aviação
Comecei a dar aulas de
Etiqueta nas Escolas de Aviação (EAPAC, Cia do Ar e Sky Lab) quando elas
começaram. Fui uma das primeiras convidadas. Isso faz uns quatro ou cinco anos.
Agora só dou aula em uma. Foi muito bonita e gratificante a experiência de
participar da formação dos comissários. As aulas de Etiqueta são administradas
da metade do curso para o final, quando os alunos já estudaram outras matérias
e já têm uma ideia da profissão de Comissário de Voo.
Qual é a finalidade da matéria “Etiqueta?” É começar a dar o molde.
Trabalha essencialmente com o visual, com a imagem, com a atitude, etc. Eu
chego logo dizendo: “a minha função aqui é o molde”. Nós vamos começar
trabalhando a imagem do Comissário de Voo. Partimos de um perfil e a pessoa vai
vendo se se identifica com esse perfil através das matérias que estuda e da
intimidade que vai adquirindo com a profissão.
Quais as atividades do
comissário a bordo? E listamos as atividades. Quem são os passageiros? E
listamos os passageiros e suas caraterísticas e ansiedades. Os adultos, as
crianças, os idosos, as pessoas doentes. Executivos, o que querem? Na medida em
que vamos levantando todos esses aspectos, o aluno começa a se enquadrar ou não
se enquadrar. E a maioria não se enquadra. A gente vê isso quando começa a
trabalhar o externo e de uma forma muito patente.
Vamos supor: eu moro no
subúrbio, sou de uma classe média baixa. Na medida em que vejo quem vai ser o
meu cliente, eu me encolho demais. Em vez de me jogar como desafio, começo a me
encolher. Desde a segunda aula, as mulheres já são obrigadas a usar salto,
vestir uma saia. Os rapazes já não podem mais usar tênis, calça jeans. Acontece
então uma mudança radical. O pessoal da administração adora acompanhar essa
mudança. Começa então uma disciplina mais rígida em relação ao comportamento e
boas maneiras. “Por favor!” “Muito obrigada”!
Isso passa a ser rotina
e obrigação. É apresentada a eles uma maneira de agir e de se comportar diante
de certas situações. A partir da quarta aula, começamos a fazer simulações.
Montamos a sala como se fosse uma cabine de um avião. Também fazemos simulados
de entrevistas. A minha maior preocupação hoje é prepará-los para a entrevista.
E para tanto tenho que trabalhar o visual deles, a imagem deles.
Na medida em que ficarem
mais conscientes, saírem com uma carteira teórica e forem se apresentar para
qualquer empresa, a pessoa que for entrevistá-los já vai tratá-los como
comissários. Já colocam o uniforme neles. Mas se não se enquadrar dentro desse
uniforme vai ser rejeitado, pois são muitos os candidatos. Acho que tem mais de
10 mil candidatos aqui no Rio, com carteira. E apenas 10% se enquadram no
perfil do comissário, com chances de realmente entrar para o voo.
Perfil do passageiro X Perfil do
comissário
O perfil do passageiro mudou muito. E essa mudança é irreversível. O que
o passageiro está pedindo hoje em dia? Ele está pedindo agilidade, cortesia,
bons produtos. Antes de pedir, já tem que ser servido. Ele quer pessoas
bonitas, agradáveis, dinâmicas, competentes e brincalhonas. Ele quer
descontrair. Não quer aquele sorriso Colgate, cristalizado. Ele quer gente
inteligente, comunicativa. Ele quer que perceba que ele está com sede, que
ofereça antes de ter que pedir. Esse é o cliente que precisa ser atendido.
O perfil do comissário
vai ter que se adaptar mais e mais às exigências dos passageiros. Eles não são
exigentes. Querem apenas o que eles pagam e que as empresas oferecem, só isso.
A mesma coisa quando você vai ao supermercado comprar a oferta do dia. Mas o preço é diferente? Como?
A Varig promete, ou seja, mostra uma imagem de empresa sólida, com bom
nível de manutenção de seus aviões, boa limpeza no interior dos seus aviões,
bom atendimento e seriedade nas vendas das passagens.
O comissário vai ficar
em terceiro ou quarto lugar no fluxo. Quando o passageiro entrar no avião, ele
quer que o atendimento de qualidade continue. Quer comissários bem
apresentáveis, educados, disponíveis, inteligentes, que se antecipem. Ágeis,
dinâmicos, contentes. Se o carrinho não está funcionando, o passageiro nem quer
saber, ele quer é ser bem atendido. Ele quer o que prometeram.
Como professora eu sou
muito responsável. Falo exatamente a verdade para os alunos. Um comissário tem
que ter equilíbrio emocional, cultura, boa administração da liberdade e, sobretudo,
um grande amor pelas pessoas e gostar de lidar com gente. Se estar com pessoas
não lhe dá satisfação e prazer, se tem medo de gente ou não gosta de gente, não
entre para o voo.
A metade desses alunos
do curso de formação de comissários, lá está porque não foi aprovada na
faculdade. Não tendo o que fazer, entrou para o curso de comissários. 80% são jovens que terminaram o segundo grau
querem ganhar dinheiro sem fazer muito esforço. Eles já andaram de avião, ou
têm um parente que é da aviação, ou conhecem alguém que trabalha na aviação.
Veem que essas pessoas se vestem bem, tem carro novo, etc. Apenas 10% são
aqueles que realmente têm condições de ser bons profissionais e estão lá para
isso. Acho que o perfil do comissário é também vocação.
Aumentou muito a
dimensão e a responsabilidade de um comissário dentro do avião. Antes bastava
ele dizer: “Por favor, aqui está a sua comida”. “Por gentileza, pode abrir a
sua mesinha?”. E se você não dissesse mais nada estava tudo bem. Aquele passageiro ficava satisfeito com uma
boa comida e uma boa bebida. Agora já não é mais assim. Ele pede cultura, quer
conversar no seu idioma. Eles cobram mais que antes. E aquele que não consegue
dormir, o comissário é obrigado a entretê-lo durante todo o plantão? E aquele que
acha que pode ir lá para o final do avião e se juntar com a turma para
conversar alto e beber como se estivesse no bar da esquina?
Acho que cada um deve ter suas limitações dentro do avião, cada um tem
o seu papel. Quem vai conscientizar o passageiro? Através de uma conversa você
pode, mas você precisa ser educado, saber falar, fazê-lo entender. Tem o
treinamento para essas situações. O passageiro precisa entender que o que ele
está fazendo é inadequado. Mas como reclamar do passageiro, se cada vez mais as
empresas, na sua propaganda passam a ideia de que eles estão em suas casas?
Oferecem até os chinelos. Algumas empresas estão oferecendo quimonos para os
passageiros da primeira classe se sentirem bem confortáveis nas longas viagens.
O passageiro, quando é
educado e culto, respeita a individualidade do outro. Então, tudo é uma questão de cultura. Como
vou fazer para mostrar os limites aos passageiros que já tomaram mais de seis
doses de uísque? Tem que ser uma pessoa com muito tato, muita inteligência.
Então voltamos novamente ao perfil do comissário. É esse o cliente de hoje e é
isso que a minha empresa está oferecendo. Então, o comissário tem que se
adaptar a essas exigências. Não basta ter o segundo grau. E se não basta, o que
mais vou pedir a ele?
O curso de treinamento
tem que dar essa ferramenta para o comissário exercer melhor a profissão que
ele está escolhendo. Marketing e treinamento de empresa eu vejo como uma coisa
só. Nós estamos com profissionais novos e competentes que estão reformulando a
cultura da empresa. Tenho esperanças! Acho que eles vão conseguir!
Planos para a aposentadoria, reflexões
sobre a vida
Estou me preparando para
a aposentadoria. Significa uma nova fase na minha vida, até porque já estou
fazendo o mesmo trabalho há muito tempo. Tenho ainda muitas coisas para
aprender. Mesmo que eu tivesse a chance de trabalhar mais os conteúdos do
treinamento dos comissários seria um “dejá vu” com outras roupas. Seria
mais uma palestra, um curso mais aprofundado em alguns aspectos do
comportamento, uma preparação para um desenvolvimento, tendo os pressupostos de
uma educação permanente.
Mas já não quero mais só
este grupo. Quero saber mais sobre o ser humano como um todo, do ponto de vista
filosófico. Quem é o ser humano? Quero estudar psicologia, quero me aprofundar
mais em filosofia, quero saber mais de mim, quero romper com essa família aqui,
tenho que ir para uma família maior.
Atualmente, estou no final do curso de Pedagogia. Trabalho durante o
dia na Varig, das oito as cinco e trinta, e estudo à noite. Dou meus cursos nos
fins de semana e, às vezes, à noite. Meu marido não gosta muito, tanto que
agora dei uma parada. Estou fazendo pedagogia, mas minha opção tinha sido psicologia.
Como não tinha faculdade de psicologia perto de casa com cursos à noite,
escolhi pedagogia. É um curso muito bonito e está me dando muito prazer. O
papel do professor é fundamental. Fui estudando, pesquisando, formando minha
opinião e vendo o quanto o ser humano está se separando de sua própria
dimensão, das suas potencialidades, como está se dividindo.
Na sociedade há um grupo
de homens se aprimorando de uma forma incrível, mas outros estão se desviando
sem rumo e sem sentido de vida. Vejo a sociedade como um grupo muito
heterogêneo, nas mais diferentes fases da evolução. Pessoas que ainda vivem
como animais, outras em níveis avançadíssimos de sabedoria. E me preocupo com o
destino da humanidade, do planeta terra, da tecnologia que o homem está
desenvolvendo. No sentido do ser humano, quem vai direcioná-lo? Ainda procuro
muitas respostas. Quando a gente
encontra uma resposta, outras perguntas vão surgindo.
Então, quero dar uma
parada para repensar sobre minha vida. Procuro o autodomínio, dentro do
possível. Há muita coisa para desenvolver. Hoje sou outra pessoa. O ser humano,
essa criatura linda que busca o seu significado, que está sempre à procura de
mais e mais e quanto mais ele sobe a montanha, mais ele vê que a paisagem é
muito maior, não tem como parar. E a verdade está dentro de nós. Na medida em
que a gente começa a refletir a gente percebe que as possibilidades são
ilimitadas.
Eu me vejo fazendo a faculdade
de psicologia, depois que concluir pedagogia. Vou começar a conversar com as
pessoas e ajudá-las no que puder. Quero trabalhar em consultório. Tenho muitas
coisas importantes para fazer. Quando voltei da morte clínica, voltei com uma
compulsão de fazer coisas importantes. Voltei diferente.
*Bibiana (pseudônimo) estava
com 50 anos quando concedeu esta entrevista no Centro de Treinamento de Comissários da Varig, na cidade do Rio de Janeiro, em
1996.
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