sábado, 28 de junho de 2014

Vera

Vera*

Nasci em Estrasburgo, na França. Sou filha de imigrantes húngaros e fui registrada como apátrida. Meus pais tiveram três filhos, depois se separaram. Vim para o Brasil com minha mãe e meus irmãos num navio italiano. Eu tinha seis anos de idade e foi nessa viagem que aprendi as primeiras palavras em italiano. Anos depois eu estudei esse idioma. Chegamos ao Rio de Janeiro e prosseguimos até o porto de Santos, onde meu avô materno nos esperava.
Sempre moramos em Campo Belo, perto do aeroporto de Congonhas. O início de nossa vida no Brasil foi muito difícil, quase passamos fome. Minha mãe trabalhava como costureira. Minha avó Verônica não tinha muita cultura, mas dominava bem o lado prático da vida. Ela tinha uma horta, criava galinha, fazia crochê. Foi ela que me ensinou a cozinhar. Lembro que eu achava muito estranho o brasileiro comer arroz e feijão todo o dia...
Estudos, trabalho
Fiz um grande esforço para aprender a falar o idioma português e isso só aconteceu aos nove anos, quando fui para a escola. Em casa nós só falávamos húngaro. Também tive muita dificuldade para aprender a ler em português. Aprendi sobre a cultura brasileira através dos livros de Aloísio de Azevedo, Érico Veríssimo, Jorge Amado. Na escola eles não eram recomendados, mas eu sempre fui um pouco rebelde.
Comecei a trabalhar em escritório aos quinze anos. Como não conseguia trabalhar e estudar interrompi os estudos. Graças a Deus consegui terminar o Ginásio. Chegava do trabalho e tinha que ajudar minha mãe em casa. Fazia a feira, limpava a casa, cozinhava, passava roupa, cuidava de meus irmãos mais novos. Tive outros trabalhos antes de entrar para a aviação. Também trabalhei com uma senhora húngara, em promoção de eventos.
Hoje tenho cidadania brasileira e falo quatro idiomas: português, húngaro, italiano e alemão. Nunca gostei muito do idioma inglês, pois não me toca o coração. O italiano foi pelo coração que aprendi. O alemão foi por necessidade, para me comunicar com amigos que fiz. Acho que para aprender outro idioma é preciso ter motivação.
Aviação
Sempre fui muito alegre e minha grande paixão era entrar para a aviação. Com seis anos eu não brincava de cozinha, brincava de ser aeromoça. Além de morar perto do aeroporto, o meu padrinho tinha sido da força aérea alemã. Com quinze anos eu já queria entrar para a aviação. Um dia, conheci uma pessoa que tinha trabalhado no setor de atendimento Vip da Varig. Ele me deu as dicas de como eu deveria fazer para me inscrever na empresa e passar nos testes. Isso aconteceu em 1969. Fui à Varig sozinha. Fiz a inscrição, a entrevista, os exames de saúde e fui aprovada. No cursinho eu era a mais aplicada de todos, pois queria voar de qualquer jeito. O cursinho foi ótimo! Gostei das colegas da turma e elas continuam sendo minhas amigas até hoje. A mais velha era a Ana Baraldi, que mora em Gramado.
Primeiros voos
O meu primeiro voo foi um bate-volta que começou no Rio de Janeiro, fez escala em Buenos Aires, prosseguiu para Santiago do Chile, voltou para Buenos Aires e finalmente retornou ao Rio de Janeiro. Foi um pesadelo! Em cada trecho havia um serviço de refeição aos passageiros e nós trabalhávamos o tempo todo! A instrutora era boazinha, mas era muita coisa nova ao mesmo tempo. Eu era e ainda sou muito tímida, apesar de usar uma máscara de “cara-de-pau”. Trabalhei na cabine econômica do Boeing 707. O voo estava lotado e eu estava usando o sapato exatamente do tamanho do meu pé. Depois de duas horas de correr para lá e para cá, como uma doida, mantendo o penteado, não me descompondo, eu estava exausta! Meus pés ficaram inchados e doloridos! Hoje eu uso sapatos de tamanho maior e trabalho numa boa.
Meus colegas de turma começaram a trabalhar na ponte aérea, servindo caixa de lanche, mas por ser estrangeira, fui de cara para os voos internacionais, onde o serviço era bem mais pesado. No retorno eu estava exausta e ao mesmo tempo muito excitada. Meus pés doíam terrivelmente e estavam tão inchados que eu não conseguia nem tirar os sapatos.
Depois de quatro meses e de fazer vários voos para a Bacia da Prata, fiz um voo para Miami. Foi um voo noturno. O ar do avião estava muito seco e meu nariz sangrou. Na hora do meu descanso não consegui dormir. Era um voo com pernoite de três dias. A tripulação foi muito legal. A minha instrutora me passou uma imagem positiva da aviação. Ela também me explicou que a gente inchava durante o voo e aí eu descobri a origem do meu desconforto. Incho muito durante os voos e isso tem a ver com as glândulas renais. Se tiver que comprar roupas no dia da chegada eu tenho que comprar números menores. Sempre tive roupas com tamanhos diferentes. Procuro resolver esse problema com tratamento ortomolecular.
Relacionamento com colegas, pernoites
Sempre tive bom relacionamento com meus colegas. Mas se acontece algum problema, eu fico de boca calada e me retiro. Quando não sou bem-vinda, fico na minha. Ultimamente sinto que não me convidam mais para sair e jantar fora. Os mais velhos vão numa direção e os mais jovens para outra. Antigamente, mesmo sem afinidade, as pessoas saíam juntas. Hoje elas se afastam, não dão tempo para o mútuo conhecimento. De modo geral, acho que todos estão mais egoístas e materialistas. Nos pernoites existe muita solidão. Muitas vezes, as pessoas gostariam de trocar ideia com alguém, mas ficam sozinhas. Voltam para suas casas e continuam sozinhas. Ficam carentes. Por isso muitos bebem, outros têm comportamento esquisito. Alguns procuram ajuda psicológica. No meu caso, aprendi a ser sozinha e me dou bem comigo mesma.
Problemas com passageiros
Na aviação, nós conhecemos todo tipo de pessoas, temos contato estreito com o ser humano. Vemos muitas coisas boas e também as ruins, tanto de colegas quanto de passageiros. Alguns voos são muito difíceis. Há passageiro que acha que, pelo fato de você estar ali servindo, você é a sua mucama particular. Não dizem “por favor”, estão sempre exigindo alguma coisa. Alguns são egoístas e não conseguem ver os outros tantos passageiros que estão esperando para serem atendidos. Ou então não podem nos ver paradas um minuto sequer. Acham que somos máquinas e que não precisamos parar para nos alimentar, ir ao banheiro e outras coisas. Mas até as máquinas precisam de combustível. A verdade é que se eu estiver servindo e tiver vontade de ir ao banheiro, eu simplesmente não posso ir. Mas sou humana: tenho fome, sinto sono, sinto cansaço.
Já voei com passageiros mal educados. Uma vez uma passageira veio reclamar que os dois homens sentados nas poltronas de trás estavam falando palavrões e dizendo coisas maldosas para ela por que achavam que o jovem ao seu lado era seu amante, mas era o seu filho! Eles estavam bêbados. Primeiro eles vieram mexer comigo e como não dei bola escreveram uma carta de reclamação a meu respeito. Uns dois anos depois, um desses passageiros foi preso, envolvido com tráfico de drogas e a notícia saiu no jornal...
Os passageiros da cabine econômica são mais simples e, muitas vezes, mais educados. Muitos dos passageiros da cabine executiva acham que deviam estar na primeira classe. Os novos ricos acham que têm “o rei na barriga” e que devem ser sempre os primeiros no atendimento. O mais chato é o que quer viajar na primeira classe sem pagar a diferença. O verdadeiro passageiro de primeira classe quase não dá trabalho. Há outros que quando viajam na primeira classe, geralmente de favor, querem mostrar que são o que não são. Uma vez, um deles, embarcou com três latas de caviar e comeu as três durante o jantar!
Perfil da Comissária de Voo
A Comissária de Voo é uma pessoa educada, que anda bem arrumada, decentemente maquiada. Alguém que está ali exercendo sua tarefa e sendo respeitada pelo trabalho que está fazendo. Antigamente, havia um pouco mais de glamour, pois havia mais exigência e disciplina. Também se exigia mais educação. Hoje há mais liberdade e as pessoas estão mais à vontade. Se a empresa não cuidar disso vai virar relaxamento. Liberdade demais também não é bom. É preciso ter um padrão de qualidade.
Paqueras e cantadas
Na aviação, criei aquela fama de que a todos encanto e não sou de ninguém. Fui paquerada, mas nunca tive namorados, preferia ter amigos. Eu sabia que não estavam a fim de assumir compromissos, só queriam passar um bom momento e depois dizer: “Consegui faturar!”. Aí eu também sacaneava. Uma vez, um comandante, de um metro e noventa de altura, metido a astro de Hollywood, mas com uma cultura bem provinciana, levou a dele. Foi num voo para Roma. Ele tinha comentado com um colega que naquele voo eu não escaparia. E é claro que eu fiquei sabendo do comentário. Então pensei: “Deixe comigo”.
Ele me convidou para jantar num restaurante bem chique. Inclusive outro colega nosso foi junto. Fez questão de pagar a minha conta e depois me convidou para ir dançar no Scarabóchio. Lá fomos nós. Foi lá que eu conheci o Sérgio Endrigo, cantando maravilhosamente! Provavelmente o comandante queria me deixar de porre, só que ele não sabia das minhas origens e da minha resistência para a bebida. Eu não tomo bebidas destiladas, mas vinho e champanhe é comigo mesmo. Tomamos muito champanhe, mas eu também tomei muita água mineral. E quando chegamos à terceira garrafa quem estava de porre era ele.
Tive que chamar os seguranças para ajudar a colocá-lo no táxi que nos levou de volta ao hotel. Quando chegamos ao hotel, foi preciso quatro homens para tirá-lo do táxi, pois era grande e pesado. Pedi ao pessoal do hotel que o deixassem no quarto dele e tirassem os sapatos. Eu ainda fiquei conversando com o pessoal da recepção por um bom tempo. Eles estavam terminando o serviço e foram jantar às quatro horas da manhã. Ainda comi um prato de macarrão com eles e tomei mais dois copos de vinho. Depois é que fui dormir. E o comandante, no dia seguinte, não sabia como tinha ido parar no quarto e como tinha tirado os sapatos. Não sabia de nada. Depois disso começou a me tratar com distância e frieza.
Fui bastante paquerada por passageiros e por colegas. Mas eu tratava a todos como irmãos e logo eles mudavam o comportamento. Já tive passageiro que foi me cantar na galley, durante o plantão, enquanto a mulher estava na poltrona sentada. Eu não deixei passar. Ele tinha me pedido o número do telefone. Eu anotei o número e entreguei para ele na frente da mulher: “O Senhor pediu o meu telefone. Aqui está”. Ele ficou branco, verde, amarelo, azul. Esse eu tenho certeza de que nunca mais cantou comissária!
Relacionamento amoroso, mudanças, casamento
Ainda bem jovem, tive um namorado e fui muito apaixonada por ele, mas a minha família não aceitava o namoro porque ele era dez anos mais velho que eu. Ele era italiano, descendente de judeus e separado. Minha mãe e meu padrasto, antes de se casarem também eram separados, mas eles queriam que eu me cassasse com outro rapaz, de quem eu não gostava. Foi uma briga. Eu já trabalhava fora e acabei saindo de casa. Fui morar com a família de uma amiga e fiquei namorando o italiano até descobrir que ele mentia. Não suporto mentiras nem traições. Quando comecei a trabalhar na aviação, morei algum tempo com uma colega de voo, que arranjou um namorado e foram morar juntos. Depois eu fui morar num quarto alugado, na casa de uma senhora que é minha amiga até hoje.
Toda mãe acha que a filha deve casar e ter filhos. Mas depois do italiano e de outro, minha família nunca mais se meteu. Casar era importante para mim, mas acho que nunca encontrei realmente a minha cara metade. Casei uma vez com alguém que eu conhecia desde criança, que era um grande amigo, depois que ele ficou viúvo. Isso foi há dezenove anos. Ele era catorze anos mais velho, tinha três filhos e nossas famílias eram amigas. No início foi uma boa experiência e uma grande mudança em minha vida, pois de uma hora para a outra eu tinha uma grande família. Os filhos, que eu conhecia desde pequenos, ajudaram a nos juntar.
Casamos e ficamos juntos doze anos. Nesse período me dediquei integralmente à família. Criei os filhos dele. Eles mesmos reconhecem que, se não fosse a minha presença e dedicação, seriam vagabundos. Acho que essa foi a minha missão. Muitas vezes tive que ser uma madrasta, dura mesmo! Na época eles tinham 13, 14 e 16 anos. Hoje são homens casados e excelentes pais de família. Estão bem economicamente. Eu era muito dedicada, vivia só em função da família. Quando viajava, fazia comida e deixava quase tudo pronto. Sofri, me decepcionei muito, e só não terminei o casamento antes porque gostava muito dos filhos, meus enteados. A minha sogra também era uma pessoa maravilhosa. Foi uma mãe, alguém que amei muito. Ela me ajudava em tudo.
Vida familiar
Antigamente as mulheres da aviação viviam uma disciplina quase militar. Não podiam casar nem ter filhos. Quando decidiam casar, tinham que sair do voo. As que não casavam acabavam ficando sozinhas e carentes, pois dedicavam sua vida à aviação. Algumas tinham casos com comandantes e eles só podiam ficar juntos nos pernoites.
Essa situação mudou e devemos isso ao nosso diretor do Serviço de Bordo, Sr. Sérgio Prates. Ele permitiu que elas assumissem seus compromissos e dizia que o importante é que fossem felizes e realizadas emocionalmente, pois assim trabalhariam melhor. Ele também permitiu que os casais trabalhassem juntos. Então surgiu a questão dos filhos e assim cresceu a responsabilidade e aumentaram as preocupações da mulher comissária.
Acredito que se a comissária é casada com um colega de trabalho, existe mais compreensão e respeito na relação. Os homens que não são da aviação geralmente não compreendem a ausência da mulher. E quando a mulher chega cansada do voo e quer descansar, o companheiro quer sair, fazer outras coisas. Ou as crianças estão precisando de seus cuidados. Neste caso, ela precisa se desdobrar e ainda se sente culpada porque uma criança pequena precisa da mãe e ela tem que se afastar para trabalhar.
Conquistas profissionais
Durante muito tempo, as mulheres trabalharam como auxiliares, não podiam ascender aos cargos de Supervisores e Chefes de Equipe. As mudanças foram acontecendo aos poucos. Primeiro, foram promovidas como Primeiras Comissárias, depois Supervisoras de Cabine e, finalmente, Chefes de Equipe. E hoje, no Brasil, já temos mulheres pilotos. Coisa que 20 anos atrás ninguém podia imaginar dentro de nossa empresa, tão machista que era!
Preparação para os voos
Não gosto de arrumar as malas, para mim é o pior momento da viagem. Também não gosto de desfazer as malas porque chego muito cansada. Tiro os perecíveis e deixo o resto para depois. Há coisas que já fazem parte da bagagem e que nem tiro da mala. Quando estou de plantão ou sobreaviso, fico muito ansiosa se as malas não estiverem arrumadas. Então fico maquiada e com as malas prontas, perto do telefone, esperando que me chamem para trabalhar.
Nas programações normais, eu sigo um ritual: arrumo as malas, vou tomar banho, e enquanto me arrumo, mentalizo um bom voo e o trabalho com colegas, com os quais me sinta bem. 
Questões de saúde
Quando a escala está apertada ficamos estressadas, não importa a idade. A saúde declina e a atuação também. Com “stress” a gente desenvolve doenças orgânicas porque o nosso sistema imunológico deixa de funcionar direito. O trabalho em excesso é prejudicial a qualquer um. Nós trabalhamos em condições bem adversas, com altitude, cabine pressurizada, micro-vibração. Algumas pessoas têm mais resistência, outras menos. Eu tive “stress” e precisei me afastar do voo.
Tinha um voo para fazer, mas estava resfriada e fui ao serviço médico da empresa. Eles não quiseram me dar licença médica e me receitaram um antigripal. E assim, resfriada, viajei para Nova York. Lá, a temperatura estava quatro graus abaixo de zero. Quando voltei, estava com pneumonia, com a pleura estourada. Fiquei afastada do trabalho por muitos meses. Foram meses horríveis!
Nos quatro primeiros, tive que ficar na cama em repouso absoluto. O ar tinha que ficar ligado o tempo todo para manter a temperatura seca. Não podia nem ler muito, para não me cansar. Mesmo assim aproveitei aquele tempo para ler. Li a Bíblia. É o livro da humanidade, mas contém também muita mentira e contradição. Foi interessante por que pude levantar outras questões. Sempre tive muita sensibilidade e intuição. Também li sobre história, arqueologia, dogmas e religiões.
Viagens nas férias
Além dos voos que fazemos a trabalho, nas férias já fui para muitos lugares. Na Hungria eu tenho as minhas raízes. Desde o primeiro dia em que pisei lá, me senti em casa. Em Budapeste, conheci parentes que não conhecia e eles estavam me esperando. Fui de navio porque eu queria saber como era chegar pelo Danúbio. Isso aconteceu pela primeira vez em 1984. Tenho ido a Budapeste todo ano. Antes de voltar, faço jantares de despedida e cada vez a mesa fica maior. Já pensei, quando estou em Budapeste, em ficar por lá porque a vida cultural é intensa. A Hungria tem dez milhões de habitantes. Budapeste é pequena em relação ao Rio de Janeiro e São Paulo, mas a atividade cultural é muito intensa.
Os húngaros magiares são muito cultos, mesmo em profissões mais humildes. O jeito que eles cumprimentam as mulheres é: “Beijo suas mãos, minha senhora”! Eles são educados assim desde pequenos. E mesmo quarenta anos de comunismo não tirou essa maneira gentil de cumprimentar. Os húngaros são os homens mais gentis. Mas as minhas raízes no Brasil também são muito fortes.
Geralmente, nas minhas viagens, visito os museus, visito os mercados. Gosto de ver o que o povo come e assim analiso a cultura de cada lugar, pois gosto de cozinhar. Gosto muito da Itália. Na Itália podemos estudar a história em suas várias épocas. Gostaria muito de ir para o Oriente Médio, mas tenho medo.
Acidente e separação
Sete anos atrás, em dezembro de 1988, torci o pé e fiquei afastada do trabalho. Fui operada por um ortopedista da própria empresa, um profissional excelente e um ser humano maravilhoso. Naquela época eu tinha 42 anos, era casada e sustentava a casa, pois meu marido estava desempregado. Em matéria de dinheiro ele me deve muito. Hoje, vejo que fui muito burra, mas eu achava que era importante ter uma família e me dediquei a ela com lealdade. Sou uma leoa lutadora. O que mais me doeu foi quando, ainda de muletas e muito insegura, sem saber se ia voltar para o voo, descobri que meu marido tinha uma amante e mentia para mim. Os filhos já estavam casados e ele estava acostumado com as minhas viagens. Então, quando fiquei de licença médica, por causa do acidente, exigindo cuidados especiais, ele não aguentou a falta de liberdade e começou a mentir.
Descobri que ele me mentia, nós discutimos e ele me espancou. Foi um covarde! Fiquei estendida no chão, longe das muletas, com três costelas quebradas! Ele ainda me deu joelhadas e chutou meu rosto! Fiquei deitada por mais de duas horas no chão escuro da sala, sentindo uma enorme solidão. Fui socorrida por meu irmão. O médico tirou radiografias e não quis acreditar no resultado. Eu não fiz Boletim de Ocorrência porque não queria aparecer na crônica policial e também para que os filhos não sentissem vergonha do pai. Maior que a dor física, foi a dor moral. Depois disso nunca mais quis falar com ele. Nem no tribunal. Nossa relação tinha sido de amizade e companheirismo. As amizades dele é que não prestavam. Relevei muita coisa.
Demissão, desconsideração, consequências
Eu estava com 47 anos quando recebi um telegrama para comparecer à chefia. Ao chegar lá, eles disseram que eu estava na idade de me aposentar e que deveria pedir demissão, pois a empresa estava passando dificuldades financeiras. Se eu pedisse demissão a empresa não precisaria pagar os 40% do fundo de garantia. Se eu fosse boazinha e aceitasse a proposta, a empresa me daria, por dois ou três meses, uma ajuda de custo, já que a aposentadoria pelo INPS demoraria um pouco. Eles também me dariam duas passagens por ano e assistência médica.
Apesar da revolta eu não perdi a classe. Respondi que não estava querendo me aposentar, pois ainda me sentia jovem e tinha força para o trabalho. Mas eles já estavam com a carta de demissão pronta, onde a empresa dizia que não precisava mais dos meus serviços. Na verdade, eles estavam me demitindo. Acabei assinando a carta de demissão. Eu estava com 24 anos e nove meses de empresa.
Depois de assinar a carta de demissão, eles me deram um papel comunicando que, em 24 horas, eu deveria devolver o crachá, os uniformes e as malas. Também deveria entregar a carteira de trabalho para que dessem baixa. Recebi o salário do mês, o pagamento das férias, sete anos de décimo terceiro e um mês de aviso prévio.
Voltei para casa arrasada. Para mim foi terrível ter que entregar os uniformes. Não conseguia tirar meus objetos pessoais de dentro da bolsa. Uma amiga me ajudou a fazer isso e foi comigo ao setor de uniformes. Ela me deu muito apoio. Comecei a sentir câimbras nos joelhos e quando saí de lá me deu uma dor forte no peito e uma vontade imensa de chorar. Minha amiga percebeu que eu não podia ficar sozinha e me levou para jantar. Ela sentiu meu sofrimento e nós choramos juntas. No fundo do coração eu não queria acreditar que aquilo que estava vivendo fosse verdade.
Depois da demissão, no Departamento de Pessoal, fui tratada como um cachorro velho e imprestável. Se ainda me tratassem com respeito, afinal eu estava bem arrumada, pois sempre fui lá bem vestida e maquiada.
Passaram-se dois dias e eu fui falar com o Diretor do Serviço de Bordo, que na época era o Sr. Tombini. Meus anjos me guiaram. A secretária disse que ele não podia me receber, mas vi que ele não estava ocupado. Eu disse que não tinha pressa. Em 15 minutos ele me recebeu. Disse a ele tudo o que eu fui e o que fiz na empresa. Quando me acidentei, vendi o apto para pagar médicos e fisioterapeutas e fiz tudo o que podia para me recuperar e voltar para o voo porque gostava da minha profissão. Disseram que eu ia ficar dois anos sem trabalhar, mas em seis meses eu fiquei boa. Nem os médicos acreditaram.
Também disse que podia procurar emprego em outra empresa, mas que ia entrar na justiça contra a Varig porque não recebera os meus direitos trabalhistas. Como eu poderia procurar emprego em outra empresa, processando na justiça a empresa onde trabalhei durante vinte e cinco anos? Se eles tivessem me demitido de acordo com a convenção coletiva, deviam ter pago os meus direitos. Disse ainda que entraria na justiça e ganharia a causa. Por isso seria melhor ele me readmitir. Ele me ouvia e parecia não estar acreditando. Depois disse que ia consultar o departamento jurídico.
Muitos colegas mais antigos, que não pagavam o AERUS, tinham passado pelo mesmo problema. Eu não fui a primeira a ir lá pedir a readmissão. Nós íamos exigir a reintegração e todos os direitos e eles iam gastar muito dinheiro. Foi então que se deram conta da burrada que tinham feito. Acho que eles nos subestimaram. Esse pessoal, do Departamento Jurídico e do Departamento de Pessoal da empresa entende muito pouco de aviação e de tripulantes, mas deviam, pelo menos, entender melhor as questões trabalhistas.
Como consequência, tive que mudar de apartamento porque o aluguel ficou alto demais para mim, e eu estava desempregada. Alguns dias depois, eles me ligaram, pediram nova carteira de trabalho e fotografia. Um mês e pouco depois, fui readmitida. Mudou a minha matrícula, mas mantive todos os direitos. Fui buscar os uniformes com a maior alegria, mas só recebi um único conjunto, uma única veste. Mesmo assim fiquei muito feliz, muitos colegas foram solidários comigo. Foi nesse momento que vi quem eram os amigos.
Aprendi, com essa triste experiência, que não devo levar desaforo para casa, nem me rasgar pela empresa. Fiquei mais segura, mais forte. Agora lido melhor com o meu trabalho. Mas encontrei outras colegas que ficaram muito abaladas e envelheceram de uma hora para a outra.
Solidão, discriminação
Agora moro num apartamento alugado e estou sozinha. Acho que já criei manias. De vez em quando, a solidão aparece, mas por outro lado sou dona do meu tempo e da minha vontade. Posso fazer o que quero e ninguém me faz cobranças. Essa é a liberdade que tenho. Se estiver com outra pessoa, e valer a pena, posso sacrificar a liberdade, porque terei compensações.
Hoje sou mais exigente. Em alguns lugares onde não me sinto bem, não tenho mais paciência para escutar “abobrinhas”, ficar com um sorriso amarelo no rosto e um copo na mão. Para me relacionar com as outras pessoas, preciso sentir afinidade, aí sim me sinto bem. A maioria das pessoas é superficial e gosta de coisas que não têm importância.
Prefiro ficar só e ter tempo para meus estudos. Gosto de estudar Ufologia e a vida de extraterrestres. Também gosto de estudar Radiestesia, que é o estudo das formas e das energias. Os terráqueos mais evoluídos, em nosso planeta, mal chegam a 1%...
Não me sinto discriminada, mas as mulheres acham que estou sempre linda, em companhia de homens maravilhosos que carregam as minhas malas, que dentro do avião só faço social, que me hospedo em hotéis deslumbrantes! Nós ficamos em hotéis muito bons. Mas nenhum ser humano consegue ser lindo, maravilhoso, bem arrumado, bem humorado vinte e quatro horas por dia, a semana inteira e o mês inteiro! Elas imaginam que nossa vida é de cinema, mas nós sabemos qual é a nossa realidade...
Aposentadoria
Estou com 49 anos e não estou cansada da aviação nem desiludida. Se tivesse que começar de novo, faria tudo outra vez. Amo a aviação. As mulheres jovens deveriam passar pelo menos dois anos nessa profissão porque é uma boa escola de vida.
Acredito que vou poder voar até os 55 anos, mas conheço colegas que com 45 anos já não aguentam mais. Acho que a idade ideal para a aposentadoria da mulher na aviação é 50 anos e quem quisesse continuar poderia ter essa opção. Mas com uma aposentadoria decente, melhor do que a que temos hoje em dia, que força as comissárias a ficarem trabalhando mesmo sem ter condições.
Planos para o futuro
Não tenho grandes expectativas em relação ao futuro. Quando me aposentar, vou continuar com meus estudos espiritualistas e quero trabalhar nessa área, com a energia cósmica dessa nova era. Quero passar minha experiência para os mais jovens. Vou continuar vivendo, procurando ser saudável e ativa. Continuar sorrindo, brincando, mesmo aos oitenta anos. No futuro isso será normal, não haverá tanta discriminação.
Gostaria, também, de me casar de novo. Ainda não encontrei essa pessoa, mas aqui dentro de mim acredito que vou encontrar alguém com o mesmo nível cultural, alguém que seja companheiro, que tenha savoir-vivre, que seja a minha alma gêmea e espiritualmente elevada. Vai ser um relacionamento muito bom. Tenho a intuição de que isso vai acontecer. Não estou correndo atrás. Não estou desesperada. Considero-me um ser sagrado e tenho tempo.


*Vera (pseudônimo) estava com 49 anos e tinha 27 de voo quando concedeu esta entrevista em um pernoite, em Frankfurt (Alemanha), em 1995.

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