sexta-feira, 13 de junho de 2014

Depoimentos de Instrutoras do CTC (VARIG - Rio de Janeiro/1996)

Depoimentos de Instrutoras do CTC
Centro de Treinamento de Comissários - VARIG
Rio de Janeiro – 1996

Gisa:
Sou filha do primeiro casamento de um Comissário de Voo, Chefe de Equipe aposentado. Desde cedo tive a noção do que é ser um tripulante, do que é ser um comissário de voo. Sei que a vida de vocês não é só um mar de rosas como as pessoas normalmente acham: “Ah, que maravilha! Viajam pelo mundo inteiro!” Realmente esse é o lado positivo, da possibilidade de ter mais cultura, de ter a oportunidade de conhecer o mundo. Mas é uma vida muito desgastante e vocês têm o outro lado da moeda: pouco tempo de folga, mal conseguem esquematizar a vida familiar e social.
Não é uma vida organizada, como a de quem trabalha oito horas por dia e tem suas noites com a família, seus finais de semana e seus feriados garantidos para se organizar e levar uma vida social “normal”. É desgastante a nível físico porque você muda de altitude, muda de fuso horário, muda de temperatura. É psicologicamente estressante porque os comissários têm que se preocupar com a parte da segurança. Por mais que a gente saiba que os acidentes não acontecem com frequência, eles precisam ficar sempre alertas, pois pode acontecer alguma coisa e são eles os responsáveis pela segurança de todos os passageiros.
E tem ainda o estresse de lidar com os passageiros, porque como clientes de empresa aérea, são pessoas mais exigentes. Algumas são ótimas de lidar e outras são difíceis. E são os comissários que estão ali dentro e têm que lidar com as situações mais estranhas e adversas. Além de comissários precisam ser um pouco psicólogos. Isso tudo estressa.  Desde cedo, pelo fato de ser filha de tripulante, eu tenho essa visão da profissão. É uma profissão bonita, que proporciona boas oportunidades, mas tem esse outro lado muito estressante.
Nunca tive vontade de ser comissária de voo. Sempre fui uma pessoa muito caseira, de querer a vida de família. Sempre quis trabalhar, mas sempre quis ter a hora de poder dar atenção à minha família, ao meu marido e a meus filhos. Não vou dizer “dessa água eu não bebo” porque se for necessário trabalhar como comissária para continuar desenvolvendo o meu trabalho, que eu adoro, eu vou encarar e vou procurar fazer o melhor. Mas não é a minha opção, não é o que me daria prazer.
Como Instrutora de Primeiros Socorros, considero importante saber prestar os primeiros socorros a bordo, até mesmo quando se tem um médico a bordo, pois ele está fora do seu ambiente. Quando o médico percebe que o comissário entende de primeiros socorros, fica mais seguro para atender alguém que esteja passando mal. E quando não tem médico, é o comissário mesmo que tem que lidar com a situação. Ter uma noção básica de primeiros socorros dá mais segurança ao próprio comissário, para lidar com essas situações, ainda mais quando o voo é longo e não tem como voltar ou parar no meio do caminho.
O grupo de comissários é bem heterogêneo, você encontra de tudo. Há pessoas que estão cansadas do voo. São até ótimas pessoas, mas se tornam impacientes, perderam o interesse. Sobre a questão da aposentadoria da comissária de voo, eu acho que não está ligada à idade da mulher. Há mulheres que chegam aos 50 anos e estão com uma imagem bonita, trabalham bem e com classe. Outras, mais novas, deixam muito a desejar. Acho que o voo desgasta mais a mulher do que a homem. Por isso a aposentadoria aos 55 anos para a mulher é muito injusta. Nessa profissão, quando ela tem família, a vida não deve ser nada fácil, principalmente se for mãe.

Mauraci:
Eu já quis ser aeromoça, logo que comecei a trabalhar na Varig, mas não passei nos testes e não tentei novamente. Comecei a me envolver com a instrução e gosto do que faço. Mas ainda acho que a profissão de Comissária de Voo tem o seu lado que é muito bom. Não é só o fato de ficar viajando, é por lidar com pessoas diferentes a cada dia. Isso é gratificante porque cada pessoa é um universo e passa um pouco desse universo para nós.
Também acho que ainda existe o mito da profissão. É como na Disney: a gente compra o sonho, onde a máscara do Mickey está sempre sorrindo. O comissário, embora queira ser visto como um ser humano comum, desempenha o personagem que não pode fazer cara feia, não pode demonstrar cansaço. Essa é a imagem que a profissão, a empresa e o passageiro exigem.
O pessoal do voo trabalha na empresa, mas está muito distante da administração da empresa. Os comissários trabalham nos aviões e não têm um chefe a quem reportar seus próprios problemas. Acho que, muitas vezes, o tripulante se sente desprotegido. Quando ele chega aqui no CTC, ou em qualquer outro espaço em que possa falar, o que ele mais faz é reclamar. Quando entramos na sala de aula, percebemos que ele está reclamando porque não tem a quem mais se reportar dentro da empresa.
O treinamento, geralmente, não é uma coisa agradável para o tripulante. Os funcionários da empresa, que trabalham em terra, ao contrário, valorizam muito. Sentem que a empresa está investindo neles de alguma forma. Mas com os comissários não é assim, talvez porque eles não se sintam valorizados em outros momentos. O relacionamento que eles têm com a chefia, na empresa, não se dá de maneira tão constante e/ou satisfatória.
É como se os comissários nos dissessem que o que estamos oferecendo aqui no CTC não é o que eles querem, por não ter relação com os problemas que eles enfrentam no voo ou em suas vidas. O curso de Enologia e Gastronomia, por exemplo, que custa dinheiro lá fora, é oferecido de graça para o comissário, mas ele não está motivado em estar aqui. Nós entramos na sala de aula sentindo que há uma predisposição negativa e tentamos ganhar o aluno já no primeiro dia. Nos primeiros cinco minutos sempre tem alguém que pergunta: A que horas acaba a aula? Depois as coisas vão melhorando e no final do curso alguns se dão conta de que foi positivo estar aqui.
Aqui no CTC, nós vamos aprendendo com a experiência e procuramos nos colocar no lugar dos comissários, entender as adversidades que eles enfrentam. Para todos nós, o lar é o porto seguro, mas na vida do tripulante isso é meio confuso. Se eu não estiver passando bem hoje, aqui no meu trabalho, sei que dentro de algumas horas estarei na minha casa. Mas o tripulante, quando sai para um voo de muitos dias, não tem essa expectativa. Tem que deixar os problemas de lado.
A profissão é desgastante e essa é uma razão para que os tripulantes tenham uma aposentadoria especial. Aquelas pessoas que estão bem e gostam do que fazem deveriam ter o direito de trabalhar mais tempo, pois cada caso é um caso. As comissárias de voo podem ser mais independentes na maneira de pensar, mas são mais dependentes dos outros porque necessitam de toda uma estrutura para viver nessa profissão. A aviação exige uma grande independência da mulher comissária, mas não a ampara nas questões familiares.

Faiga:
Na Varig, antes do CTC, eu trabalhava no Aeroporto Santos Dumont, onde era controladora e também instrutora. Aqui, eu trabalho como Instrutora de Segurança, na monitoria de combate ao fogo, sobrevivência no mar e dou aula de Dutty-free.
O grupo de comissários é heterogêneo, mas eu percebo que é um grupo que respeita muito o conhecimento. Se você demonstra ter esse conhecimento e vontade de passá-lo, você ganha o grupo. Pelo fato de terem uma vida atípica, diferente de quem segue horários rígidos de trabalho, eles têm dificuldade com relação à carga horária, em manter a concentração numa aula teórica. Mas na aula prática eu não vejo essa dificuldade. 
A comissária de voo é uma mulher mais independente pelo fato de viajar pelo mundo, mesmo quando tem uma família, o que exige dela um esforço maior para conseguir administrar essa situação. Quando converso com elas, vejo que os problemas são similares aos nossos, mas elas precisam ter muita presença de espírito para administrar a falta da empregada e outros problemas que surgem, tendo que viajar e passar dias fora de casa. 
Quanto à aposentadoria, pelo desgaste da profissão, no físico e no emocional, provocado pelas condições adversas de trabalho (altitude e pressurização, diferença de fusos e temperaturas), deveria ser limitada aos 25 anos de voo e, no máximo, 50 anos de idade. A profissão exige um padrão em termos de aparência pessoal e mesmo que a mulher se cuide muito, depois dos 50 ela fica fora desse padrão.
Antes de trabalhar no CTC, eu tinha outra visão dos tripulantes e tinha uma ideia diferente desse padrão de beleza, mas vendo as comissárias sem uniforme eu constato que elas são como as outras pessoas. Porém, quando elas vestem o uniforme tudo muda. O uniforme traz uma marca de elegância muito grande. No dia a dia, aqui no CTC, a comissária é uma mulher como as outras, sem maquiagem, com seu cabelo solto, sua calça jeans. Mas se a encontrarmos no aeroporto, ela parece outra pessoa. Acho que elas mesmas se sentem diferentes de uniforme. É como se vestir para entrar num show. O uniforme, a apresentação no Despacho Operacional, o embarque no avião, são os estágios que precedem o papel de Comissária de Voo que ela vai desempenhar.

Vivi:
Para quem não é do voo, a imagem da comissária é sempre muito positiva. A profissão tem esse destaque e nós já olhamos para ela de modo diferente. Com relação à vida particular, eu acho que é um pouco difícil. Por exemplo: eu trabalho em terra, sou solteira e já viajei muito. Trabalhei na área de custos, tinha que viajar constantemente e isso me trazia uma série de dificuldades.
Quando penso que muitas comissárias são casadas e têm filhos, imagino que não deve ser nada fácil para elas conciliar as duas atividades. O lado da família fica muito prejudicado. Elas não conseguem ter uma vida social programada, não têm muito tempo para se dedicar aos filhos. E hoje em dia não é fácil criar filhos.
A aviação abre muitos campos para a mulher comissária, porque ela conhece muitas pessoas e eu acho que é através do relacionamento com as outras pessoas que o ser humano cresce. Nesse aspecto a profissão de comissária de voo oferece oportunidades fantásticas. A mulher ganha desenvoltura, visão do mundo. Esse é um dos pontos positivos que eu vejo na profissão. 
As pessoas de fora da aviação acham que o salário é compensador, que os comissários têm um bom padrão de vida social. E nós sabemos que não é bem assim, porque temos contato com eles. O salário é melhor do que o do pessoal de terra, mas existe todo um desgaste físico e emocional que se pararmos para pensar nós que trabalhamos em terra ganhamos mais. 
Alguns anos atrás eu pensei em ser comissária. Achava a profissão fantástica pelas oportunidades que oferece de poder viajar, ser independente. Mas estava muito presa à minha família e, na época, não tinha a maturidade que tenho hoje. Minha mãe era viúva e eu não podia conceber a ideia de viajar e deixá-la sozinha por tanto tempo. Isso me deixou muito dividida. Hoje eu estou bem, mas acho que ficou uma coisinha dentro de mim, a falta de uma experiência que eu gostaria de ter vivido. Mesmo já tendo viajado muito, acho que não é a mesma coisa. Porém, com a minha vivência profissional, vejo todo esse lado difícil de quem trabalha no voo. Então, mesmo ganhando um pouco menos, por trabalhar em terra, eu acho que tenho as compensações por ter uma vida familiar e social regular.

Celeste:
Meu trabalho sempre foi ligado ao CTC. Já trabalhei com D. Alice Klausz. Eu orientava os candidatos no processo de admissão, com relação à documentação necessária para ingressar na empresa e participava na formação dos grupos para a dinâmica da seleção. Tenho uma ampla visão desse processo todo, pois acompanhei o ingresso de muitas jovens desde o início, quando chegavam à empresa e diziam: “Eu quero ser comissária”. A gente podia ver a candidata chegar, como ela era e a transformação que ia acontecendo durante o próprio processo de admissão – a entrevista, os testes e o momento da aprovação – quando ela já ia ficando com aquele jeitinho de comissária, até mesmo antes de fazer o curso. Que jeitinho é esse? É algo especial. Elas se tornavam pessoas diferentes. Havia uma transformação e eu sou testemunha disso.    
Outra transformação acontecia depois do curso. Aí ela já ficava bem comissária. Eu podia perceber a diferença vendo as fotos das fichas de inscrição e comparando com as fotos das fichas de comissárias. Toda a preparação para lidar com o público acontecia nesse período. 
Aos 18 anos, quando eu morava em Belém, fiz o curso para ser comissária. Cheguei a tirar a licença no Departamento da Aeronáutica, mas nunca exerci a profissão. Fiz o curso em Belém com uma equipe que foi do Rio de Janeiro preparar um grupo de comissários para a empresa Paraense Transportes Aéreos. Fiz tudo escondido do meu pai e quando ele soube não permitiu que eu fosse trabalhar. Então eu digo que já fui comissária, mas nunca exerci a profissão. Depois de uns três anos eu me casei e para minha surpresa vim parar em uma empresa aérea, como aeroviária. Meu marido trabalhava para a Panair e depois que ela fechou ele veio trabalhar na Varig.
Comecei a trabalhar na Varig, no setor de ensino. Estava com 26 anos e naquela época a idade máxima para ingressar no voo era 25 anos. Fui auxiliar a Dona Alice, quando abriram as inscrições para os candidatos em Manaus, Belém, Florianópolis, Curitiba e Porto Alegre. Como ela não podia ir eu ia. Dona Alice me chamava de Madre Teresa de Calcutá porque eu ajudava as candidatas de todas as formas que podia. Conseguia arranjar horário gratuito nos dentistas, dizia que a candidata precisava do emprego, mas não podia passar se não fizesse aquele tratamento.
Até certo ponto, a profissão de vocês é como as outras. Mas a mulher que não é do voo e que é mãe, vai para o trabalho e pode estar em contato, através do telefone, com sua família e sabe que à noite vai estar em casa. Mas para as comissárias que são mães as coisas são mais complicadas. Elas viajam e ficam fora três ou quatro dias, e, nesse tempo, outra pessoa tem que cuidar das suas crianças e de sua casa. Além do problema, que é deixar o marido, cada uma tem que encontrar uma solução para os seus problemas. Antigamente, eu achava que a comissária devia se casar com tripulante, mas hoje já não penso dessa forma. Existem muitos exemplos de casamento entre tripulantes que não deram certo e casamento de comissárias com homens de fora da aviação que deram certo. Tudo depende de como a pessoa consegue conciliar sua vida pessoal com a profissional.
Vejo muitas pessoas tentando desvalorizar o trabalho dos comissários. Por que isso? Acho que os tripulantes são o cartão de visita da nossa empresa. No Dia dos Comissários, sempre os homenageamos, através de uma mensagem positiva, procurando dar um incentivo. Aqui no CTC, quando um comissário vem para ser assessor de treinamento, ele nos dá muito trabalho porque está acostumado com uma rotina de trabalho diferente. Então a gente precisa fazer a cabeça dele. Com o tempo eles acabam entendendo e depois até acham que todos os comissários deveriam passar por aqui para fazer um estágio. Depois, quando voltam para o voo, encontram dificuldades porque percebem o quanto os colegas desconhecem esse outro lado da empresa. Nós, que somos mais ligadas à gerência de treinamento, temos o hábito de procurar ajudar o comissário a entender esse outro lado.
Aqui, nós temos um horário e quando está na hora de ir para casa a gente acaba o expediente. O comissário não está acostumado com isso. Ele chega do voo, dorme a maior parte do dia e vem aqui no final do expediente pedir uma circular de 1990 ou outro documento qualquer. Por que não veio antes? “Porque cheguei de voo e tive que descansar.” E amanhã? “Amanhã estou de folga”. E a gente tem que entender, pois eles têm o mundo deles, que é bem diferente do nosso. O voo acabou, acabou o trabalho deles. Com a gente não, o trabalho continua no dia seguinte, a gente vai para casa ainda pensando o que vai fazer no dia seguinte.

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