Depoimentos de Instrutoras do CTC
Centro de Treinamento de Comissários - VARIG
Rio de Janeiro – 1996
Gisa:
Sou filha do primeiro casamento de um
Comissário de Voo, Chefe de Equipe aposentado. Desde cedo tive a noção do que é
ser um tripulante, do que é ser um comissário de voo. Sei que a vida de vocês
não é só um mar de rosas como as pessoas normalmente acham: “Ah, que maravilha!
Viajam pelo mundo inteiro!” Realmente esse é o lado positivo, da possibilidade
de ter mais cultura, de ter a oportunidade de conhecer o mundo. Mas é uma vida
muito desgastante e vocês têm o outro lado
da moeda: pouco tempo de folga, mal conseguem esquematizar a vida
familiar e social.
Não é uma vida organizada, como a de quem
trabalha oito horas por dia e tem suas noites com a família, seus finais de
semana e seus feriados garantidos para se organizar e levar uma vida social
“normal”. É desgastante a nível físico porque você muda de altitude, muda de
fuso horário, muda de temperatura. É psicologicamente estressante porque os
comissários têm que se preocupar com a parte da segurança. Por mais que a gente
saiba que os acidentes não acontecem com frequência, eles precisam ficar sempre
alertas, pois pode acontecer alguma coisa e são eles os responsáveis pela
segurança de todos os passageiros.
E tem ainda o estresse de lidar com os
passageiros, porque como clientes de empresa aérea, são pessoas mais exigentes.
Algumas são ótimas de lidar e outras são difíceis. E são os comissários que
estão ali dentro e têm que lidar com as situações mais estranhas e adversas.
Além de comissários precisam ser um pouco psicólogos. Isso tudo estressa. Desde cedo, pelo fato de ser filha de
tripulante, eu tenho essa visão da profissão. É uma profissão bonita, que
proporciona boas oportunidades, mas tem esse outro lado muito estressante.
Nunca tive vontade de ser comissária de
voo. Sempre fui uma pessoa muito caseira, de querer a vida de família. Sempre
quis trabalhar, mas sempre quis ter a hora de poder dar atenção à minha
família, ao meu marido e a meus filhos. Não vou dizer “dessa água eu não bebo”
porque se for necessário trabalhar como comissária para continuar desenvolvendo
o meu trabalho, que eu adoro, eu vou encarar e vou procurar fazer o melhor. Mas
não é a minha opção, não é o que me daria prazer.
Como Instrutora de Primeiros Socorros, considero importante saber prestar os primeiros socorros a
bordo, até mesmo quando se tem um médico a bordo, pois ele está fora do seu
ambiente. Quando o médico percebe que o comissário entende de primeiros
socorros, fica mais seguro para atender alguém que esteja passando mal. E
quando não tem médico, é o comissário mesmo que tem que lidar com a situação.
Ter uma noção básica de primeiros socorros dá mais segurança ao próprio
comissário, para lidar com essas situações, ainda mais quando o voo é longo e
não tem como voltar ou parar no meio do caminho.
O grupo de comissários é bem heterogêneo,
você encontra de tudo. Há pessoas que estão cansadas do voo. São até ótimas
pessoas, mas se tornam impacientes, perderam o interesse. Sobre a questão da
aposentadoria da comissária de voo, eu acho que não está ligada à idade da
mulher. Há mulheres que chegam aos 50 anos e estão com uma imagem bonita,
trabalham bem e com classe. Outras, mais novas, deixam muito a desejar. Acho
que o voo desgasta mais a mulher do que a homem. Por isso a aposentadoria aos
55 anos para a mulher é muito injusta. Nessa profissão, quando ela tem família,
a vida não deve ser nada fácil, principalmente se for mãe.
Mauraci:
Eu já quis ser aeromoça, logo que comecei
a trabalhar na Varig, mas não passei nos testes e não tentei novamente. Comecei
a me envolver com a instrução e gosto do que faço. Mas ainda acho que a
profissão de Comissária de Voo tem o seu lado que é muito bom. Não é só o fato
de ficar viajando, é por lidar com pessoas diferentes a cada dia. Isso é
gratificante porque cada pessoa é um universo e passa um pouco desse universo
para nós.
Também acho que ainda existe o mito da
profissão. É como na Disney: a gente compra o sonho, onde a máscara do Mickey
está sempre sorrindo. O comissário, embora queira ser visto como um ser humano
comum, desempenha o personagem que não pode fazer cara feia, não pode
demonstrar cansaço. Essa é a imagem que a profissão, a empresa e o passageiro
exigem.
O
pessoal do voo trabalha na empresa, mas está muito distante da administração da
empresa. Os comissários trabalham nos aviões e não têm um chefe a quem reportar
seus próprios problemas. Acho que, muitas vezes, o tripulante se sente
desprotegido. Quando ele chega aqui no CTC, ou em qualquer outro espaço em que
possa falar, o que ele mais faz é reclamar. Quando entramos na sala de aula,
percebemos que ele está reclamando porque não tem a quem mais se reportar
dentro da empresa.
O treinamento, geralmente, não é uma coisa
agradável para o tripulante. Os funcionários da empresa, que trabalham em
terra, ao contrário, valorizam muito. Sentem que a empresa está investindo
neles de alguma forma. Mas com os comissários não é assim, talvez porque eles
não se sintam valorizados em outros momentos. O relacionamento que eles têm com
a chefia, na empresa, não se dá de maneira tão constante e/ou satisfatória.
É como se os comissários nos dissessem que
o que estamos oferecendo aqui no CTC não é o que eles querem, por não ter
relação com os problemas que eles enfrentam no voo ou em suas vidas. O curso de
Enologia e Gastronomia, por exemplo, que custa dinheiro lá fora, é oferecido de
graça para o comissário, mas ele não está motivado em estar aqui. Nós entramos
na sala de aula sentindo que há uma predisposição negativa e tentamos ganhar o
aluno já no primeiro dia. Nos primeiros cinco minutos sempre tem alguém que
pergunta: A que horas acaba a aula? Depois as coisas vão melhorando e no final
do curso alguns se dão conta de que foi positivo estar aqui.
Aqui no CTC, nós vamos aprendendo com a
experiência e procuramos nos colocar no lugar dos comissários, entender as
adversidades que eles enfrentam. Para todos nós, o lar é o porto seguro, mas na
vida do tripulante isso é meio confuso. Se eu não estiver passando bem hoje,
aqui no meu trabalho, sei que dentro de algumas horas estarei na minha casa.
Mas o tripulante, quando sai para um voo de muitos dias, não tem essa
expectativa. Tem que deixar os problemas de lado.
A profissão é desgastante e essa é uma
razão para que os tripulantes tenham uma aposentadoria especial. Aquelas
pessoas que estão bem e gostam do que fazem deveriam ter o direito de trabalhar
mais tempo, pois cada caso é um caso. As comissárias de voo podem ser mais
independentes na maneira de pensar, mas são mais dependentes dos outros porque
necessitam de toda uma estrutura para viver nessa profissão. A aviação exige
uma grande independência da mulher comissária, mas não a ampara nas questões
familiares.
Faiga:
Na Varig, antes do CTC, eu trabalhava no Aeroporto Santos Dumont,
onde era controladora e também instrutora. Aqui, eu trabalho como Instrutora de Segurança, na
monitoria de combate ao fogo, sobrevivência no mar e dou aula de Dutty-free.
O grupo de comissários é heterogêneo, mas
eu percebo que é um grupo que respeita muito o conhecimento. Se você demonstra
ter esse conhecimento e vontade de passá-lo, você ganha o grupo. Pelo fato de
terem uma vida atípica, diferente de quem segue horários rígidos de trabalho,
eles têm dificuldade com relação à carga horária, em manter a concentração numa
aula teórica. Mas na aula prática eu não vejo essa dificuldade.
A comissária de voo é uma mulher mais
independente pelo fato de viajar pelo mundo, mesmo quando tem uma família, o
que exige dela um esforço maior para conseguir administrar essa situação.
Quando converso com elas, vejo que os problemas são similares aos nossos, mas
elas precisam ter muita presença de espírito para administrar a falta da
empregada e outros problemas que surgem, tendo que viajar e passar dias fora de
casa.
Quanto à aposentadoria, pelo desgaste da
profissão, no físico e no emocional, provocado pelas condições adversas de
trabalho (altitude e pressurização, diferença de fusos e temperaturas), deveria
ser limitada aos 25 anos de voo e, no máximo, 50 anos de idade. A profissão
exige um padrão em termos de aparência pessoal e mesmo que a mulher se cuide
muito, depois dos 50 ela fica fora desse padrão.
Antes de trabalhar no CTC, eu tinha outra
visão dos tripulantes e tinha uma ideia diferente desse padrão de beleza, mas
vendo as comissárias sem uniforme eu constato que elas são como as outras
pessoas. Porém, quando elas vestem o uniforme tudo muda. O uniforme traz uma
marca de elegância muito grande. No dia a dia, aqui no CTC, a comissária é uma
mulher como as outras, sem maquiagem, com seu cabelo solto, sua calça jeans.
Mas se a encontrarmos no aeroporto, ela parece outra pessoa. Acho que elas
mesmas se sentem diferentes de uniforme. É como se vestir para entrar num show.
O uniforme, a apresentação no Despacho Operacional, o embarque no avião, são os
estágios que precedem o papel de Comissária de Voo que ela vai desempenhar.
Vivi:
Para quem não é do voo, a imagem da
comissária é sempre muito positiva. A profissão tem esse destaque e nós já
olhamos para ela de modo diferente. Com relação à vida particular, eu acho que
é um pouco difícil. Por exemplo: eu trabalho em terra, sou solteira e já viajei
muito. Trabalhei na área de custos, tinha que viajar constantemente e isso me
trazia uma série de dificuldades.
Quando penso que muitas comissárias são
casadas e têm filhos, imagino que não deve ser nada fácil para elas conciliar
as duas atividades. O lado da família fica muito prejudicado. Elas não
conseguem ter uma vida social programada, não têm muito tempo para se dedicar
aos filhos. E hoje em dia não é fácil criar filhos.
A aviação abre muitos campos para a mulher
comissária, porque ela conhece muitas pessoas e eu acho que é através do
relacionamento com as outras pessoas que o ser humano cresce. Nesse aspecto a
profissão de comissária de voo oferece oportunidades fantásticas. A mulher
ganha desenvoltura, visão do mundo. Esse é um dos pontos positivos que eu vejo
na profissão.
As pessoas de fora da aviação acham que o
salário é compensador, que os comissários têm um bom padrão de vida social. E
nós sabemos que não é bem assim, porque temos contato com eles. O salário é
melhor do que o do pessoal de terra, mas existe todo um desgaste físico e
emocional que se pararmos para pensar nós que trabalhamos em terra ganhamos
mais.
Alguns anos atrás eu pensei em ser
comissária. Achava a profissão fantástica pelas oportunidades que oferece de
poder viajar, ser independente. Mas estava muito presa à minha família e, na
época, não tinha a maturidade que tenho hoje. Minha mãe era viúva e eu não
podia conceber a ideia de viajar e deixá-la sozinha por tanto tempo. Isso me
deixou muito dividida. Hoje eu estou bem, mas acho que ficou uma coisinha
dentro de mim, a falta de uma experiência que eu gostaria de ter vivido. Mesmo
já tendo viajado muito, acho que não é a mesma coisa. Porém, com a minha
vivência profissional, vejo todo esse lado difícil de quem trabalha no voo.
Então, mesmo ganhando um pouco menos, por trabalhar em terra, eu acho que tenho
as compensações por ter uma vida familiar e social regular.
Celeste:
Meu
trabalho sempre foi ligado ao CTC. Já trabalhei com D. Alice Klausz. Eu
orientava os candidatos no processo de admissão, com relação à documentação
necessária para ingressar na empresa e participava na formação dos grupos para
a dinâmica da seleção. Tenho uma ampla visão desse processo todo, pois
acompanhei o ingresso de muitas jovens desde o início, quando chegavam à
empresa e diziam: “Eu quero ser comissária”. A gente podia ver a candidata
chegar, como ela era e a transformação que ia acontecendo durante o próprio
processo de admissão – a entrevista,
os testes e o momento da aprovação – quando ela já ia
ficando com aquele jeitinho de comissária, até mesmo antes de fazer o curso.
Que jeitinho é esse? É algo especial. Elas se tornavam pessoas diferentes.
Havia uma transformação e eu sou testemunha disso.
Outra transformação acontecia depois do
curso. Aí ela já ficava bem comissária. Eu podia perceber a diferença vendo as
fotos das fichas de inscrição e comparando com as fotos das fichas de
comissárias. Toda a preparação para lidar com o público acontecia nesse
período.
Aos 18 anos, quando eu morava em Belém,
fiz o curso para ser comissária. Cheguei a tirar a licença no Departamento da
Aeronáutica, mas nunca exerci a profissão. Fiz o curso em Belém com uma equipe
que foi do Rio de Janeiro preparar um grupo de comissários para a empresa
Paraense Transportes Aéreos. Fiz tudo escondido do meu pai e quando ele soube
não permitiu que eu fosse trabalhar. Então eu digo que já fui comissária, mas
nunca exerci a profissão. Depois de uns três anos eu me casei e para minha
surpresa vim parar em uma empresa aérea, como aeroviária. Meu marido trabalhava
para a Panair e depois que ela fechou ele veio trabalhar na Varig.
Comecei a trabalhar na Varig, no setor de
ensino. Estava com 26 anos e naquela época a idade máxima para ingressar no voo
era 25 anos. Fui auxiliar a Dona Alice, quando abriram as inscrições para os
candidatos em Manaus, Belém, Florianópolis, Curitiba e Porto Alegre. Como ela
não podia ir eu ia. Dona Alice me chamava de Madre Teresa de Calcutá porque eu
ajudava as candidatas de todas as formas que podia. Conseguia arranjar horário
gratuito nos dentistas, dizia que a candidata precisava do emprego, mas não
podia passar se não fizesse aquele tratamento.
Até
certo ponto, a profissão de vocês é como as outras. Mas a mulher que não é do
voo e que é mãe, vai para o trabalho e pode estar em contato, através do
telefone, com sua família e sabe que à noite vai estar em casa. Mas para as
comissárias que são mães as coisas são mais complicadas. Elas viajam e ficam
fora três ou quatro dias, e, nesse tempo, outra pessoa tem que cuidar das suas
crianças e de sua casa. Além do problema, que é deixar o marido, cada uma tem
que encontrar uma solução para os seus problemas. Antigamente, eu achava que a
comissária devia se casar com tripulante, mas hoje já não penso dessa forma.
Existem muitos exemplos de casamento entre tripulantes que não deram certo e casamento
de comissárias com homens de fora da aviação que deram certo. Tudo depende de
como a pessoa consegue conciliar sua vida pessoal com a profissional.
Vejo muitas pessoas tentando desvalorizar
o trabalho dos comissários. Por que isso? Acho que os tripulantes são o cartão
de visita da nossa empresa. No Dia dos Comissários, sempre os homenageamos,
através de uma mensagem positiva, procurando dar um incentivo. Aqui no CTC,
quando um comissário vem para ser assessor de treinamento, ele nos dá muito
trabalho porque está acostumado com uma rotina de trabalho diferente. Então a
gente precisa fazer a cabeça dele. Com o tempo eles acabam entendendo e depois
até acham que todos os comissários deveriam passar por aqui para fazer um
estágio. Depois, quando voltam para o voo, encontram dificuldades porque
percebem o quanto os colegas desconhecem esse outro lado da empresa. Nós, que somos
mais ligadas à gerência de treinamento, temos o hábito de procurar ajudar o
comissário a entender esse outro lado.
Aqui,
nós temos um horário e quando está na hora de ir para casa a gente acaba o
expediente. O comissário não está acostumado com isso. Ele chega do voo, dorme
a maior parte do dia e vem aqui no final do expediente pedir uma circular de
1990 ou outro documento qualquer. Por que não veio antes? “Porque cheguei de
voo e tive que descansar.” E amanhã? “Amanhã estou de folga”. E a gente tem que
entender, pois eles têm o mundo deles, que é bem diferente do nosso. O voo
acabou, acabou o trabalho deles. Com a gente não, o trabalho continua no dia
seguinte, a gente vai para casa ainda pensando o que vai fazer no dia seguinte.
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