sábado, 28 de junho de 2014

Mara

Mara*

Nasci em Aracaju, Sergipe. Minha mãe é descendente de holandeses e portugueses. Meu pai é descendente de índios e portugueses. Eles se casaram, tiveram cinco filhos e depois se separaram. Eu sou a mais velha dos cinco filhos do casal. Minha mãe sempre foi muito apaixonada por meu pai e por não suportar vê-lo com outra mulher e outra família, resolveu se mudar para São Paulo. Ela me trouxe junto, mas meus irmãozinhos menores ficaram com meus avós maternos, que eram fazendeiros.
Infância e adolescência
Minha mãe queria mudar de vida e tinha apenas 21 anos quando veio para São Paulo. Eu tinha uns quatro anos e sempre fui sua companheira. Fui uma espécie de confidente, pois ela me falava de todos os seus problemas. Muita coisa eu não entendia e cresci com a sensação de não ter tido uma infância normal. Muitos anos depois, acabei fazendo psicanálise e hoje entendo as coisas que na época não entendia. São Paulo era uma cidade muito grande e não foi fácil a nossa adaptação. Minha mãe conseguiu emprego, mas sentia muita saudade da família e acabou voltando. Alguns anos mais tarde, ela resolveu encarar São Paulo novamente. Veio comigo e com apenas uma mala. Isso foi em 1949. Chegamos no dia do Trabalho. Eu já tinha 12 anos e me sentia adulta, queria trabalhar e ganhar minha independência.
Estudos, trabalho
Ficamos na casa de uma conhecida e fomos as duas procurar emprego. Eu já era alta, com corpo de mulher. Saí a pé e andei durante horas. Só tinha o RG, mas para trabalhar precisava da autorização do juiz de menores, se comprovasse que estava estudando à noite. Então comecei a cursar o ginasial, à noite. Tive que insistir para conseguir o emprego, por causa da pouca idade. De tanto insistir consegui um emprego numa fábrica de calçados. Comecei pintando sola de sapatos. Quando a gente quer a gente consegue. Até hoje acho que “querer é poder”. Só depois é que minha mãe conseguiu um emprego. 
Na casa onde ficamos, tinha um rapaz uns 10 anos mais velho que eu e ele passou a se interessar por mim.  Para minha mãe ele era um bom partido e eu sofri certa pressão para namorá-lo, mas não me interessava por ele e nem queria saber da vida de casada. O maior trauma da minha vida foi o primeiro beijo. Tive vontade de morrer. Depois disso decidi procurar um lugar para alugar e morar com minha mãe. Ela não gostou muito da ideia. Eu tinha 13 anos de idade, já estava me sentindo segura no emprego e trabalhava por produção. Consegui convencê-la a mudar e foi um alívio. O rapaz continuou a me procurar, mas depois desistiu.
Quando completei 14 anos, o pessoal da empresa começou a me pagar o salário mínimo e passei a ganhar mais que minha mãe. Comecei a administrar o meu dinheiro e comprar as coisas para nossa casa. Continuei estudando à noite, fiz secretariado e cursos adicionais de estenografia, taquigrafia e até de inglês. Quem estudava podia sair mais cedo do trabalho. Trabalhei em setores diferentes da empresa e quando terminei o curso de secretariado eles me chamaram para trabalhar no escritório, mas eu não aceitei. Lá eu ganharia menos que na produção e o dinheiro era muito importante para mim. Estava com 16 anos e eles não entendiam que eu preferisse continuar trabalhando na fábrica e não no escritório.
Estava fazendo o curso de secretariado quando me perguntaram o que eu gostaria de ser. Respondi que queria ser aeromoça porque gostava de viajar. Viajar para mim significava liberdade, independência. Era apenas um sonho, coisa que na época não me preocupava muito, porque o que eu queria mesmo era trabalhar e ganhar dinheiro. Quando fiz 17 anos, pedi para minha avó trazer as minhas irmãs. Uma tinha 15 anos e a outra 14. A minha irmã de 15 começou a trabalhar, a outra continuou os estudos.
Então nos mudamos para um lugar um pouco melhor e montamos uma pequena fábrica de camisolas em casa. No início, a gente pegava as peças cortadas e costurava, depois fazíamos tudo. Passávamos os fins de semana trabalhando. Era uma loucura! Éramos muito unidas. Só faltava o meu irmão que nunca tinha morado com minha mãe. Para ele foi uma grande mudança vir morar conosco, quatro mulheres. Ele tinha 14 anos e eu 19 anos. Continuou os estudos, mas estava muito atrasado e teve que fazer um grande esforço. Foi perseverante, fez o curso de Contabilidade, depois Faculdade de Contabilidade e mais tarde cursou Administração. Ele também teve que trabalhar, ajudar, entrar no nosso ritmo. A gente separava o dinheiro para as despesas e para a poupança. Tudo era dividido igualmente entre nós. Naquela época, não tínhamos muitos amigos nem lazer. Até os vizinhos se preocupavam com isso. A gente quase não saía. Era uma vida de estudo e trabalho.
Eu continuava a trabalhar na mesma empresa e, paralelamente, ajudava na nossa oficina de confecção. Fazia mil coisas. Ainda estudava inglês quando comecei a cursar a faculdade de Filosofia. Depois mudei para o curso de Pedagogia. Sentia muita atração pelo misticismo, gostava de escrever. Sonhava... Delirava... Sonhava e concretizava os meus sonhos. Mas, um dia, a empresa em que eu trabalhava desde os 12 anos, que não estava indo bem, foi à falência. Para mim foi um choque, um golpe muito grande. Eu me sentia o chefe da família e logo fui procurar outro emprego. Comecei a dar aulas em casa, de matemática e português. E continuei estudando à noite e a procurar emprego.
Aviação
Um dia peguei o jornal do Estado de São Paulo e vi um anúncio da Vasp (que guardo até hoje). Isso foi no segundo semestre de 1967. Fui até o aeroporto de Congonhas fazer a inscrição, sem falar nada para a minha família. Voltei para casa, sem acreditar muito, pois ainda era apenas um sonho. Ao mesmo tempo, fiz teste em outra empresa, para trabalhar como secretária. 
Na Vasp, durante os testes, fiz a redação “a importância de ser comissária”, da qual não esqueço até hoje. Estava estudando, trabalhava desde a adolescência, escrevi sem nenhum problema. Depois fiz a entrevista, os exames médicos e passei. Só então contei para a minha família e ninguém acreditou. Parecia meio contraditório, com todos os cursos que eu já tinha feito. Minha mãe não achava um bom trabalho para mim, ainda mais por causa das viagens e por ter que dormir fora de casa. Meus irmãos ficaram neutros. Mas no nosso bairro foi uma grande sensação!
Curso de Comissários
Comecei a fazer o curso em janeiro de 1968. Tinha que pegar duas conduções para chegar lá. O curso durou quatro meses; estudávamos de manhã à noite. A nossa professora se chamava Madre Agnes (ela tinha sido freira) e era ela que cuidava de tudo no ensino da VASP: fazia a seleção, dava o curso que incluía balanceamento do avião, regulamentos do DAC, regulamentos da empresa, primeiros socorros, postura. Tinha outro professor que dava aula de aerodinâmica.
Injustiça
Madre Agnes tinha trabalhado como comissária e depois fora transferida para o Departamento de Ensino da Empresa. Ela se dedicava totalmente ao que fazia e não tinha hora para terminar as aulas. Mais tarde, quando estava com 45 anos de idade, por questões políticas dentro da empresa, foi bruscamente transferida para o voo. Eu cheguei a ser instrutora de voo dela. Foi muito constrangedor. Ela tinha voado DC-3, estava há 15 anos fora do voo e teve que trabalhar no One-Eleven e no Boeing 737-300. Isso aconteceu por volta de 1974. Foi um grande problema para ela, pois para se aposentar tinha que ter um número certo de horas de voo e ela não tinha por ter ficado muito tempo dando instrução no Cursinho de Comissários da Vasp.
Naquela época a empresa estava muito dividida porque os tripulantes ganhavam por milhas e por hora. A Vasp teve vários problemas com as comissárias mais antigas, pois não sabia como encarar o problema daquelas com mais idade. Foi muito difícil para Madre Agnes e para mim, porque ela tinha sido a minha grande instrutora. Ficamos quase seis meses juntas. A partir daquela época, quem dava instrução no departamento de ensino também continuava a voar. A postura da empresa deixou muito a desejar. Madre Agnes trabalhou alguns anos mais e se aposentou. Nunca se casou e teve uma vida muito solitária. A aviação é boa, mas a aposentadoria é muito sofrida.
Primeiros voos, aeronaves, pernoites
Comecei a trabalhar em maio de 1968. Tive que interromper meus estudos, pois não deu para conciliar com a programação dos voos. Durante o curso eu saía e voltava para casa todos os dias, mais parecia um serviço de escritório. Minha família só acreditou que eu ia voar quando peguei minhas malas e uniformes. Naquela época a gente usava chapeuzinho.
Meu primeiro voo foi uma ponte aérea para o Rio de Janeiro. Era disposta, tinha iniciativa, mas tímida na comunicação com as pessoas. Tremia tanto que não consegui fazer o serviço, que era tão simples - colocar suco nos copos, colocar na bandeja e servir. Eu tinha um metro e setenta centímetros de altura e pesava 45 quilos. Era esquelética. Meu colega de voo, que também era meu instrutor, teve que trabalhar quase sozinho.
A Vasp só tinha dois aviões One-Eleven recém-chegados, e os aviões pequenos, os Vickers 701 (com 44 lugares), o 827 (com 56 lugares) e os DC-3, DC-4 e DC-6. No DC-3 tinha que se fazer balanceamento de carga e nesse equipamento só trabalhavam os comissários. As tripulações eram compostas de comandante, copiloto, engenheiro de voo e comissário. Nos pernoites, ficavam dois em cada quarto. Ficavam mais em “casas de pernoite”, onde tinham que dormir em rede. Ou em alguns hotéis.
Fiquei 28 dias só fazendo voos de Ponte Aérea. A minha empolgação foi crescendo a cada voo, como se tivesse consciência de que estava realizando um sonho. No meu primeiro pernoite em hotel, fiquei morrendo de medo, cheguei a encostar os móveis contra a porta. Mas a adaptação foi fácil, pois eu gostava de ter contato com as pessoas, de conversar. Também gostava de seguir as normas da empresa. Sempre fui muito disciplinada. A Madre Agnes tinha nos dado um treinamento bem severo e deixou bem claro que o comandante tinha o poder de desembarcar e botar na rua qualquer comissário que não cumprisse suas obrigações. Então, o mais difícil para mim era me apresentar ao comandante. Quase morria de medo e de vergonha.
Comissárias x Comandantes
Naquela época eu tinha medo dos comunistas, dos militares e dos comandantes. Nunca consegui olhar para eles como homens, via mais a posição e a relação era estritamente profissional. Era muito raro uma comissária se relacionar com um comandante. O primeiro casal que eu conheci no voo era de comissários. A gente ouvia algumas histórias. Tinha um comandante que ficou famoso por ter se casado com muitas comissárias. Diziam que de cada nova turma ela arranjava uma nova esposa, mesmo que tivesse que ir casar no Paraguai. Casava, montava casa para elas e as tirava do voo. Ele era muito divertido e cativava as pessoas com facilidade.
Pressão, sim, sofria muita! Não podia jantar nos pernoites se não fosse com a tripulação técnica. O comandante fazia relatório para a chefia, caso não fôssemos junto. Era o que a gente ouvia. Então, fiz amizade com uma colega de voo e nós combinamos nunca nos envolver com comandantes. Cheguei a inventar que tinha um noivo e então deixei de receber muitos convites para sair ou jantar fora nos pernoites. E assim economizava minha diária e podia ficar lendo no quarto do hotel. Também fazia trabalhos manuais.
Caixa de medicamentos
Nós levávamos a caixa de medicamentos para os pernoites, caso algum tripulante passasse mal. As comissárias eram as responsáveis. Acho que era uma desculpa que eles tinham para nos ligar. A mais nova, por coincidência é que ficava com a caixa. Sonrisal era o remédio que mais pediam. Quando fui Chefe das Comissárias, foi uma das primeiras coisas que eu mudei. 
Uma vez um comandante, que era uma ótima pessoa, mas que ficava totalmente inconveniente quando bebia, insistiu para que eu fosse jantar com ele. Mas eu não fui. Quando voltou do restaurante, ele bateu na minha porta e eu não atendi. Inconformado, ele foi para o quarto dele e telefonou, disse que estava passando mal e queria um Sonrisal. Liguei para a copa e pedi água, pois o comandante ficou de vir buscar o remédio. Quando eu abri a porta ele praticamente caiu em cima de mim, de bêbado que estava. Ele me agarrou e eu fiquei apavorada! Exatamente nesse momento o garçom trouxe a água e bateu na porta, que só estava encostada. Eu falei “entre” e quando falei isso o comandante caiu em si. O garçom já era conhecido nosso e serviu a água. O comandante tomou o Sonrisal e saiu em seguida. Essa cena eu não esqueço! Acho que fui uma das primeiras que conseguiu se safar tão rapidamente. Nunca confrontei; sempre procurei outras saídas.
Relacionamentos nos pernoites
Muitas colegas minhas passavam o voo inteiro alimentando a esperança dos colegas e depois, no pernoite, fugiam. Essa era a queixa que eles faziam. Nunca fiz isso! Sempre fui direta, tratava-os com respeito e distância e até me tornei amiga de muitos deles. Aprendi sobre relacionamentos conversando com eles. Gostava dos colegas que eram educados e objetivos. Nunca me apaixonei por nenhum colega. Minha filosofia era não misturar a vida profissional com a emocional. Namorei muito, mas fora da aviação.
Quando eu era nova na empresa, as comissárias antigas, que tinham caso com comandantes, diziam “você vai viajar com o meu namorado”. Elas já avisavam para enquadrar as colegas mais novas. Ou então, no pernoite, a gente descobria que eles eram casados e aquilo me deixava intrigada. A colega, durante o voo, nem olhava para o comandante, mas no pernoite dormia com ele... Eu ficava sabendo, porque ficávamos juntas no quarto do hotel, mas ela não dormia lá. E no dia seguinte, na apresentação ou durante o voo, eles nem se falavam! Aquele fingimento, aquela hipocrisia me fazia mal.
Conflitos, novos conceitos
Essa foi uma fase difícil! Eu ficava em conflito, pois tudo aquilo desestruturava meus conceitos. Minha mãe era separada do meu pai, mas nós vivíamos de acordo com os conceitos mais tradicionais. Lembro que ficava com uma sensação estranha e procurava entender o que estava acontecendo. Tive que me encontrar sozinha porque não tinha quem me desse suporte dentro da aviação. Não tinha com quem conversar e desabafar, mesmo sendo instrutora e chefe das comissárias.
Foi um período de mudanças e novos conceitos. O importante é que eu gostava do meu trabalho e procurava atender bem os passageiros. Fiquei na aviação por causa do dinheiro, pois precisava pagar meu apartamento. O tripulante é um ser muito carente. Ele quer toda essa liberdade, mas ao mesmo tempo não quer sofrer as consequências, o preço a pagar. Depois que se aposentam, percebem que eram felizes e não sabiam.
Aviação tranquila
Tive uma fase muito boa, quando fiquei trabalhando durante 10 anos no Airbus que chegou em 1982. Eram só dois aviões. Nós não ganhávamos muito dinheiro, mas tínhamos um grupo maravilhoso e uma escala muito boa. Em todos os pernoites a gente se reunia, fazia churrasco, ia à praia, passeava. Fazíamos festas, parecíamos uma família, comemorávamos aniversários, trocávamos bilhetes, telefonemas... Foram 10 anos juntos. A empresa estava numa fase de estabilidade. Foi nessa época que me integrei com os colegas.
Imagem da Comissária de Voo
A imagem da mulher comissária já mudou muito. Estou falando do meu tempo, de 1968 até 1996. No início, a mulher da aviação era vista com desconfiança. Ser honesta num convento é uma coisa, mas no meio de um mundo bem mais livre é outra. Uma mulher que fica dentro de casa e não leva cantada, é uma coisa. Trabalhar na aviação, levar cantada e andar pelo mundo, é outra. Dos anos 70 em diante as coisas começaram a mudar, por motivos nossos e também por motivos culturais. A aviação foi se desenvolvendo e a própria empresa começou a mudar, pois queria profissionais competentes. Mudou a postura das novas profissionais, que passaram a ser chefes de cabine e a ter mais responsabilidade na profissão.
Vida amorosa, cantadas
Tive um namorado antes de entrar na Vasp. Gostava dele, mas não foi uma paixão. Eu não queria casar. Saía, procurava me divertir e não transava. Naquela época a pílula estava na moda, mas eu era completamente desligada dessas coisas. Muitas tomavam e diziam que era para regular a menstruação. Meus objetivos eram outros. Depois que entrei para a aviação, no primeiro ano comprei um carro, no segundo viajei para a Europa (um tour de 30 dias, pela agência Abreu, de ônibus a partir de Portugal para outros países), no terceiro ano comprei meu apartamento, para pagar em 15 anos!
Recebi muitas cantadas, pedidos de casamento, cartinhas, presentes... Mas nunca namorei ninguém na aviação e procurava não me envolver. Fora da aviação tive muitos namorados. Uma amiga minha, numa época em que eu estava sozinha, disse que ia me arrumar um namorado e levou meu futuro marido lá em casa. Isto foi em 1974. Faz 21 anos. Namoramos durante seis anos e nos casamos. Eu não queria casar nem ter filhos e dizia: “Por que botar filho neste mundo?” Geralmente  quem assume isso é a mulher. Então não tive filhos. Eu não queria um homem, queria um companheiro.
Vida profissional, promoções
Com um ano e meio de voo passei para a instrução de comissários, depois fui selecionada para ser instrutora efetiva. Fiquei cinco anos como Chefe de Comissários e fiquei como instrutora até me aposentar. A Vasp foi a primeira empresa a ter mulher como Chefe de Cabine. Houve uma reação violenta por parte dos homens. Os tripulantes técnicos e os comissários se uniram contra elas. Faziam piadas, diziam que elas iam passar batom para abrir as portas de emergência e que eles não iam ajudar, pois não eram pagos para isso. Tivemos uma reunião na Diretoria  de Operações para tratar do assunto. Os comandantes diziam que não aceitavam, pois, segundo eles, as mulheres não entendiam de emergência.
Éramos cinco mulheres e estávamos nos sentindo acuadas, mas resistimos. Fizemos o curso de seis meses no setor de Treinamento e Recursos Humanos. Fomos as cobaias. Eles procuraram nos preparar psicologicamente e também colocaram a responsabilidade nas nossas costas. Assumimos a responsabilidade e nos fizemos respeitar. Fazíamos a nossa parte com muita correção e a resistência começou a cair. Seis meses depois já tinha outra turma de mulheres Chefes de Cabine.
Depois os comandantes começaram a nos apoiar. Se algum comissário tentava passar por cima e levava os problemas diretamente para a cabine de comando, o comandante pedia para ele se dirigir à Chefe de Cabine. E assim os conceitos começaram a mudar. Deu certo, foi ótimo, começamos a nos impor. Isso foi em 1974. Eu estava com 28 anos. A maioria das Chefes de Cabine tinha, mais ou menos, uns seis anos de empresa.
Questões profissionais, frustrações
Em 1978, tirei licença-prêmio. Eu nem sabia o que era isso. Quando vi estava fora de escala e fiquei achando que ia ser demitida, apesar de nunca ter tido qualquer problema. Cumpria com muita disciplina as minhas funções, participava das reuniões, dava as instruções, preenchia as fichas. Cheguei a dizer para aqueles que não se realizavam na profissão e estavam lá só por dinheiro, que procurassem outro trabalho. Muitos comissários não se encontram na profissão. Enquanto são jovens eles trabalham bem, gostam de viajar, conhecer gente. Mas depois de alguns anos eles se sentem frustrados. Aí começam os problemas. A profissão é muito limitante para o homem. A imagem do comandante está sempre ali na frente deles para mostrar os limites e indicar que eles nunca chegarão lá... 
Para as mulheres o lado emocional é o mais difícil. Os filhos, a casa, o marido, costumam deixar a mulher muito dividida. Ela gostaria de estar em casa com a família mas, para ganhar seu dinheiro, precisa se afastar. É muito problemático para ela. Se ela não está bem, passa isso para os outros. Como pode uma mãe ir voar com tranquilidade quando deixa o filho pequeno em casa doente? Além do emocional, ela somatiza e cria problemas de saúde. Começa a ficar gripada com facilidade, a ter úlceras... A mulher é mais frágil e carente nesse ponto. Então ela precisa trabalhar a cabeça, fazer terapia, yoga etc.
Acompanhamento do profissional do voo
Seria importante fazer um acompanhamento à distância, ter um gráfico individual de cada profissional. Hoje, com computador, é fácil fazer isso. Anotar aspectos importantes, avaliações, elogios. Quando a pessoa estiver declinando, é preciso fazer alguma coisa para não deixá-la cair. Fiz um trabalho relacionado a isso junto com o pessoal de Recursos Humanos. A média de bom desempenho profissional era de cinco anos. Algumas pessoas tomavam a iniciativa e saíam do voo. Só voltavam aquelas que saíam por influência de outras pessoas, principalmente por causa do marido ou do namorado. Todas as mulheres que saíram por esta razão, voltaram. Mas quando ela própria descobre que não é isso que quer fazer, sai e não volta. É uma pequena faixa. A maioria vai levando. Não aceita sair para não dizer que fracassou na escolha. Os amigos também interferem e desencorajam.
Escala de Voo
Nossas escalas eram horríveis porque eram semanais e nunca sabíamos o que íamos fazer na semana seguinte. Mesmo assim nunca tive uma falta. Uma escala semanal deixa todo mundo neurótico. É a maior pressão que se pode fazer em cima de um grupo profissional. Em plena era da informática, tínhamos que ir lá, pessoalmente, no Despacho Operacional, buscar a escala. Não importava onde morássemos. E não podíamos trocar voos. Solicitar folga, só raramente. Isso pirava muita gente. Não podíamos programar nada, não conseguíamos ter vida social nem familiar. Não podíamos planejar nem mesmo uma consulta médica...
Como é viver a vida com uma escala semanal de voo? Como ir a shows, fazer cursos, sair com amigos, visitar parentes em dias de festas, poder programar a vida, participar de eventos? Na aviação, não é o trabalho que complica, é não poder programar nada além dele. Conseguir harmonizar a vida com o trabalho, eis a questão! Viver na aviação e tentar conciliar todas essas coisas é muito difícil! Quando estamos voando, vivemos para o trabalho, a vida social e familiar fica sempre para depois.
A Vasp tinha uma administração que mudava de quatro em quatro anos, porque era estatal e mudava de acordo com a política. Agora, na gestão do Canhedo, é ainda pior. No meio das programações, tem reservas, sobreavisos. A maioria está pirada. O filho do Canhedo costuma dizer que se o tripulante tiver mais do que oito folgas no mês, ele vai demitir porque tem gente sobrando. E assim tem sido há anos. Os tripulantes, principalmente os comissários, têm apenas oito folgas por mês. E não podem escolher os dias de folga. A Vasp quer ter apenas jovens de 18 a 24 anos. Não dá para entender. Demitiram, compulsoriamente, muita gente mais antiga.
Questões de saúde
Acho que são certos hábitos que estragam a saúde do ser humano. É preciso saber se alimentar de forma equilibrada. Saber repousar, ter uma boa educação em relação à vida que se leva. A nossa profissão tem um desgaste bem maior e cada um precisa ter consciência disso. Muitas pessoas têm uma estrutura muito boa, outras já encontram mais dificuldades. Nosso trabalho exige muito do nosso corpo. A aviação é desgastante, física e emocionalmente e a empresa precisa dar um suporte além do bom treinamento, mas somos nós que devemos cuidar de nossa saúde, respeitar nossos limites.
Aposentadoria
A aposentadoria, principalmente para as mulheres deveria ser após 20 anos de trabalho. Fazer voos internacionais é muito desgastante. Eu só trabalhei três anos nas rotas internacionais. O stress físico e mental é enorme. A questão do oxigênio, da altitude e pressurização, das mudanças de climas... São muitos os fatores que provocam stress na nossa profissão. Participei daquele Seminário sobre a Saúde do Aeronauta (1991) e aprendi muito sobre fusos horários e outros problemas relacionados com a nossa vida profissional.
Muitas colegas minhas, mais antigas, não chegavam a se aposentar. Eram afastadas do trabalho e isso acontecia antes de completarem 40 anos. Outras eram demitidas. Nós já fazemos parte de uma nova fase e eu consegui me aposentar na aviação. Mas não tinha certeza de que isso ia acontecer. Aposentei-me em 1993.
Amava a aviação, mas planejava me aposentar aos 45 anos. Sabia que tinha outro mundo além da aviação. Queria conhecer esse outro mundo e fazer muitas outras coisas. Conversava com as pessoas do voo e sabia como elas sofriam. Então comecei a me preparar para sair. Em 1989  comecei a fazer terapia analítica. Era uma sessão por semana. Comecei a me preparar para uma vida normal, uma rotina familiar e social e analisar todas as coisas que eram convenientes e inconvenientes.   O que vivi na aviação foi compensador, pois sou o somatório desses 25 anos. Tenho essa bagagem de vida graças à aviação. É uma vida intensa. É uma vivência única.
Na aviação as pessoas se perdem por causa do ritmo acelerado em que vivem e devido às exigências da empresa e da família. A mulher é muito mais cobrada, até na aparência física. E quando chega cansada de viagem ainda precisa dar atenção à família que a está esperando e também há aquela questão da culpa por ter ficado ausente...
Aposentadoria aos 60 anos? Acho que é total falta de sensibilidade e de respeito ao ser humano. Na American Airlines eu só viajei com as vovós, mas a estrutura de cada país é diferente, assim como a vida familiar e social. Na América do Norte a vida familiar não está centrada na mulher, todos participam, e a média de vida deles é muito maior.
Saudades da aviação
Sinceramente, acho que não vou sentir saudades da aviação porque tenho vivido intensamente. Uso a minha bagagem e ela me serve muito. Aprendi muita coisa sobre a vida, sobre as viagens, sobre as pessoas. Sei quando elas estão felizes ou não. As pessoas precisam fazer o que gostam. Aos 45 anos a gente faz uma revisão de toda a vida que viveu e pode ver se está feliz ou não. Tudo vale a pena quando se faz o que se gosta e se está bem consigo mesmo. O mundo pode estar em guerra. A aviação nos suga, mas também nos dá muito em troca.
Estou aposentada há dois anos e estou dando continuidade aos meus projetos. Quando nos aposentamos, estamos com muita ansiedade porque deixamos muitas coisas para fazer depois. Estou estudando idiomas, decoração, computação. Estou fazendo essas coisas por mim mesma. Faço o curso de Biodinâmica e Neolinguística. Estou trabalhando a parte espiritual: estou vivendo e me preparando para outras fases de vida e para a morte. Tudo isso faz parte! Vou trabalhar com tudo isso.


*Mara (pseudônimo) aposentou-se com 25 anos de voo, em 1993, aos 45 anos. Concedeu esta entrevista no aeroporto de Congonhas, em 1996.

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