quarta-feira, 25 de junho de 2014

Nina

Nina*

Nasci em 1948, na cidade de São Paulo. Meu pai era gaúcho, pioneiro na aviação e trabalhou em muitas empresas pioneiras. Depois foi trabalhar na Real Aerovias e mais tarde na Varig. Minha mãe nasceu em Munique, veio para o Brasil com a família, foi comissária da Panair do Brasil, depois foi para a Real Aerovias, onde meu pai trabalhava. Minha mãe foi uma mulher muito bonita, exuberante. Num tempo em que a mulher na aviação não podia nem casar nem ter filhos, ela se casou e teve duas filhas. Também enfrentou muitas dificuldades. Como meu pai era separado e no Brasil, naquela época, não se podia casar novamente, eles se casaram em Las Vegas, nos EUA.
Infância e adolescência
Minha irmã e eu tivemos uma infância muito diferente das outras crianças, pois nossos pais viajavam e nós tínhamos algumas vantagens. Eles procuravam nos proporcionar o melhor que podiam, em termos de educação. Quando viajavam, nós ficávamos com nossa avó materna. Lembro-me de vê-la fazendo roupinha de boneca. Ela falava comigo em alemão. Depois que ela faleceu eu perdi um pouco desse conhecimento. E o perdi completamente com o falecimento de minha mãe. Ela faleceu ainda muito nova, aos 49 anos.
Meus pais se separaram quando eu era adolescente e isso foi muito difícil para mim. As companhias aéreas eram pequenas e eu chamava de tio todos os amigos e colegas de meus pais. Nunca pensei em entrar para a aviação. Estudei em bons colégios, falei alemão e inglês, antes de falar português. Meu avô materno era inglês. Nas férias sempre viajava e ia para Campos do Jordão. Lá a gente aprendia de tudo. Quando meus pais se separaram, fui estudar em Colégio Interno. Aí a vida ficou mais difícil porque eu via meus pais apenas uma vez na semana.
Depois, minha mãe se casou com um homem muito rico e a gente ia para Punta del Leste com frequência. Aprendi a montar, tive uma vida realmente diferenciada. Quando era adolescente, queria ser veterinária, ou cursar Direito, o que ainda pretendo fazer. Eu perdi minha avó, meu padrasto, meu pai e minha mãe em um ano e meio. Foi um período extremamente doloroso em minha vida.
Emprego, mudanças, atribulações familiares
Em 1966 eu estava com 18 anos e resolvi trabalhar. Comecei a trabalhar como guia de turismo. Já estava morando no Rio de Janeiro com minha mãe e meu padrasto, que era árabe. Foi uma boa experiência! Aprendi a falar espanhol nessa época. Um dia minha mãe falou que estavam abertas as inscrições na Varig e que ela conhecia muitas pessoas na empresa, a quem poderia me apresentar. Mas preferi ir lá sozinha, na cara e na coragem. Fiz a inscrição, a entrevista e os exames. Só depois é que eles ficaram sabendo quem eram os meus pais. Fui admitida e fiquei muito emocionada. Tudo aquilo, até o cheiro do angar, lembrava a minha infância e adolescência.
Comecei a voar em 1967. Estávamos vivendo a revolução que tinha começado em 1964, com o golpe militar. Poucos meses depois tive que sair porque minha irmã foi presa com outros estudantes e ficou sumida. Ela estava fazendo pré-vestibular no “Baiense”, que era o lugar do agito. Foi uma época horrível! Minha mãe sofreu muito e eu tive que dar atenção a ela. Meu padrasto tinha morrido e minha mãe teve que voltar a trabalhar, pois meu pai nunca pagou pensão.
Morávamos numa casa grande e tivemos que mudar para um apartamento. Depois mudamos para uma quitinete. Nesse período eu fui trabalhar no escritório de uma empresa. Depois fui trabalhar na recepção de um hotel da rede Luxor. Aí eu namorei um rapaz, que era filho do almirante que tinha encontrado a minha irmã na Ilha das Flores. Ele foi a paixão na minha vida de jovem encantada, mas a mãe dele nos separou. Ele foi para Genebra e eu continuei trabalhando até comprar uma passagem para ir lá me encontrar com ele.
Fui para a Itália e encontrei alguns rapazes que tinham sido presos junto com a minha irmã. Naquela época ela estava em Londres. A Varig fazia voos para Genebra e eu acabei perdendo o voo naquele dia. Então fiquei morando na Suíça por algum tempo, pois o meu namorado já tinha outra namoradinha. Trabalhei no Hotel Mövempick, onde lavava pratos e fui aprendendo a falar francês. Fiz amizades, aprendi a esquiar e quando podia ia me encontrava com minha irmã. Minha mãe também fez uma viagem para lá. Depois dessa temporada, voltei para o Brasil.
Retorno à Varig, perdas na família
 Em 1970, entrei para a Varig novamente. Já tinha uma bagagem de vida maior. Comecei trabalhando no Avro e no Electra. Meu pai não chegou a me ver como comissária. Eu estava fazendo um voo de ponte aérea, de quatro pernas, quando alguém da tripulação me avisou que eu ia ficar em São Paulo e que não voltaria com a tripulação para o Rio de Janeiro. Ao chegar, lá estava um comandante que trabalhava no Electra e conhecia meu pai. Foi então que eu soube que ele tinha falecido. Meu pai morava em São Paulo e estava casado com outra mulher. Foi nessa época que eu comecei a perder todo mundo na família. Voei um ano e pouco e saí novamente da aviação.  
Curso de Comissários
Entrei na Varig três vezes e participei de três turmas que faziam o Curso de Comissários. Minha situação era diferente porque eu morava no Rio de Janeiro, mas muitas colegas do curso vieram de outras cidades e ficavam hospedadas em hotel. Elas não podiam sair à noite, não podiam isso, não podiam aquilo, viviam num regime de internato. Para elas tudo era novidade, a empresa, os passageiros, os voos. Mas eu já tinha uma boa experiência na aviação, já sabia quais eram as regras, como me comportar, cuidar dos uniformes, da imagem...
Quando entramos para a empresa, assinamos um contrato, como se fosse um casamento. Esse casamento não resiste para muitos. Nessa terceira vez, entrei no dia dos namorados. E entrei para ficar. Já tinha uma grande bagagem e já sabia contornar situações e problemas. Já tinha, inclusive, a matrícula mais alta, da turma de junho de 1972, assim que passamos para o voo. Na aviação sempre procurei fazer a minha parte.
Preparação para os voos
Começo a me arrumar duas horas antes da apresentação. Geralmente levo uns 15 minutos de carro para chegar ao aeroporto. Na mala eu carrego as coisas essenciais - o meu secador que é o mesmo que comprei no primeiro voo que fiz para Miami (1973), pois não gosto de sair com cabelo molhado. Levo um livro. E, nos pernoites, agora vou começar a fazer cortinas de crochê para a minha casa. Eu vejo colegas que trazem ferro de passar roupa e quase um guarda-roupa para usar nos pernoites, mesmo que ele seja curto. Eu levo o básico, um jeans, blusinha, camiseta. Uma roupinha para viajar de extra.
Pernoites, atividades paralelas
Nos pernoites, onde a turma for eu vou junto. Gosto de passear, ver coisas novas, mas não gosto de fazer compras. Na América, eu até sou consumista, mas de coisas mais básicas. Se o pessoal vai passar o dia num shopping eu não vou, procuro outro lugar para passear, como um parque ou o planetário.
Comprar coisas no estrangeiro para vender no Brasil eu nunca fiz. Não sei vender nem pipoca. Já fiquei muito nervosa na alfândega por causa dos colegas. Muitas vezes eu saí da alfândega com a mala de uma colega, ou carreguei objetos de graça para os outros, principalmente aqueles que eu sabia que precisavam arcar com despesas maiores na família, ou que estavam pagando tratamento de familiares.
Retorno dos voos
Quando chego de cada voo, lavo o rosto, tiro a maquiagem e vou dormir. Na hora do almoço, minha empregada leva um prato de macarrão e depois eu durmo a tarde inteira. Quando faz sol, eu faço a mesma coisa, mas não durmo. Ponho meu uniforme para arejar e fico brincando com os cachorros, fico vendo as minhas plantinhas e só vou dormir à noite. A minha mala eu só vou ver no dia seguinte. A empregada mantém a casa limpa, os cachorros cuidados e faz comida para o meu marido, quando estou viajando. Não me preocupo com essas coisas.
Vida amorosa, vida familiar
Fui muito paquerada, mas nunca me relacionei com passageiro. Fui namorada de um comissário que era muito bonito, mas imaturo. Acho que a mulher amadurece mais cedo. Também tive um namoro longo com um comandante que era casado. Depois nos tornamos amigos. Havia aquele encantamento, aquele frio na barriga, mas havia também muita dificuldade. E quando ele disse que ia deixar a mulher para ficar comigo, pensei que quando estivesse na idade dela ele também me deixaria por uma mais jovem e não aceitei.
Conheci meu atual marido quando eu tinha 36 anos. Estamos juntos há 17 anos. Ele é muito estudioso e formado em muitas faculdades. Nós tínhamos frequentado os mesmos lugares, estudamos na mesma escola. Ele diz que se tivesse me encontrado quando eu era mais nova, teria sido a mãe dos filhos dele. Adoro crianças, mas não pude ter filhos. É coisa do destino.
Também penso nas minhas colegas que têm filhos e sofro por causa delas. Nas datas especiais, nos aniversários, elas estão viajando, longe da família. Antes de encontrar meu marido, eu tinha amigos, pois a minha família era muito pequena. Tenho uma irmã e uma tia que está com 83 anos. Tenho também uma tia na Alemanha, que eu não conheço. Tenho uns primos espalhados em São Paulo, com os quais me relacionava quando minha avó materna era viva.
Idade ideal para a aposentadoria
Acho que a idade ideal para a mulher se aposentar na aviação é aos 50 anos. No meu caso, gostaria de ficar para sempre e vou continuar até quando for possível. Só não quero ficar velha e ridícula. Hoje em dia, a mulher tem muitos recursos, faz plásticas, tratamentos, então é mais fácil manter uma boa aparência. Mas acho uma desumanidade a situação de muitas comissárias de empresas norte-americanas. Elas têm de voar até 65 ou 70 anos, mesmo quando não aguentam mais. Uma delas trabalhou comigo recentemente e parecia uma plástica ambulante. Ela mesma disse que já não estava mais aguentando.
Com ou sem grana, acho que a mulher, aos 50 anos, tem que sair do voo. Temos um relógio biológico dentro de nós que precisa ser respeitado. Já estou contrariando o meu relógio biológico. No dia do voo o desgaste é muito grande e a ansiedade ainda maior. E depois ainda tem a noite inteira de trabalho. Gosto do meu trabalho, acho que a aviação é fonte de vida, de cultura, mas sinto que transgrido as leis biológicas e estou me prejudicando física e emocionalmente. Antes do voo eu procuro descansar.
Benefícios da profissão
Como todo mundo, nós temos os problemas do dia a dia, mas a nossa profissão nos proporciona um relaxamento em relação a esses problemas. A mulher que vive 24 horas dentro de casa, ou trabalha fora o dia todo não tem isso. Eu tenho uma vizinha que é cinco anos mais velha que eu e que vive sempre em casa. Já é avó e nos finais de semana bebe até cair. Ela morre de inveja da vida que eu levo. Tenho uma vida boa com meu marido, a gente se entende bem e ainda saio para viajar!
Sempre trabalhei e depois que me aposentar acho que vou continuar trabalhando. Ou vou cuidar de criança carente, ou de cachorro abandonado. Vou querer uma ocupação, não vou morrer sedentária. Sempre fui uma pessoa ativa. Embora a minha cabeça seja de uma pessoa jovem, o meu corpo não é mais. Estou com quase meio século de existência. Sabe o que é isso? Vou ficar muito triste por deixar de fazer o que gosto, mas vou arrumar outra coisa para fazer.
A aviação é uma escola. No Brasil que a gente vive, quando você teria condições de proporcionar uma viagem ao exterior ao seu filho? Quando você teria a oportunidade de estar em Miami nesta semana e em Paris na próxima? Ninguém vai me dizer que a minha cabeça é igual a de alguém que nunca viajou. Nosso horizonte é muito mais amplo, incontestavelmente. A bagagem cultural é muito grande.
Nós aprendemos a conhecer o mundo. Eu já fui para a China Oriental! Sensível do jeito que sou, fui parar naquele lugar! Saí de lá de cabeça virada. A filosofia é muito bonita, mas eles são primários: comem cachorro, matavam crianças (as meninas). O nosso guia de turismo tinha um inglês perfeito e eu perguntei onde ele tinha nascido. Ele respondeu que tinha nascido lá mesmo. Nasceu programado para ser guia turístico. Ele nunca tinha viajado para fora do país!
Sonhos a realizar
Eu cheguei a pensar em cursar uma faculdade alguns anos atrás, mas depois concluí que ia ser muito sacrifício. Pensei em ter uma loja, mas percebi que para dar certo eu teria que ter alguém de extrema confiança para ficar no meu lugar quando estivesse viajando. Pensei também em ter uma pousada. Foi um belo sonho que eu alimentei. Seria a Pousada das Asas Quebradas, para receber e hospedar todos os colegas que já pararam de voar. Teria uma farmácia tipo drogaria, com coisas de fora, trazida pelos colegas que voam e oferecidas graciosamente aos colegas que já não voam mais e não podem comprar aquelas coisas que antes eles costumavam usar. Eu ainda quero fazer isso. Encontro alguns colegas aposentados no aeroporto, que vão lá para ver se encontram alguém do voo, alguém que conhecem. Gostaria muito de ter esse SPA para os colegas que já saíram do voo. Mas como vou arrumar grana para isso?!


*Nina (pseudônimo) estava com 49 anos e tinha 25 de voo (sem contar as interrupções) quando concedeu esta entrevista em um pernoite em Miami (USA), em 1997.

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