Nina*
Nasci
em 1948, na cidade de São Paulo. Meu pai era gaúcho, pioneiro na aviação e
trabalhou em muitas empresas pioneiras. Depois foi trabalhar na Real Aerovias e
mais tarde na Varig. Minha mãe nasceu em Munique, veio para o Brasil com a
família, foi comissária da Panair do Brasil, depois foi para a Real Aerovias,
onde meu pai trabalhava. Minha mãe foi uma mulher muito bonita, exuberante. Num
tempo em que a mulher na aviação não podia nem casar nem ter filhos, ela se
casou e teve duas filhas. Também enfrentou muitas dificuldades. Como meu pai
era separado e no Brasil, naquela época, não se podia casar novamente, eles se
casaram em Las Vegas, nos EUA.
Infância e adolescência
Minha irmã e eu tivemos uma infância muito diferente das
outras crianças, pois nossos pais viajavam e
nós tínhamos algumas vantagens. Eles procuravam nos proporcionar o melhor que
podiam, em termos de educação. Quando viajavam, nós ficávamos com nossa avó
materna. Lembro-me de vê-la fazendo roupinha de boneca. Ela falava comigo em alemão.
Depois que ela faleceu eu perdi um pouco desse conhecimento. E o perdi
completamente com o falecimento de minha mãe. Ela faleceu ainda muito nova, aos
49 anos.
Meus
pais se separaram quando eu era adolescente e isso foi muito difícil para mim.
As companhias aéreas eram pequenas e eu chamava de tio todos os amigos e
colegas de meus pais. Nunca pensei em entrar para a aviação. Estudei em bons
colégios, falei alemão e inglês, antes de falar português. Meu avô materno era
inglês. Nas férias sempre viajava e ia para Campos do Jordão. Lá a gente
aprendia de tudo. Quando meus pais se separaram, fui estudar em Colégio
Interno. Aí a vida ficou mais difícil porque eu via meus pais apenas uma vez na
semana.
Depois,
minha mãe se casou com um homem muito rico e a gente ia para Punta del Leste
com frequência. Aprendi a montar, tive uma vida realmente diferenciada. Quando
era adolescente, queria ser veterinária, ou cursar Direito, o que ainda
pretendo fazer. Eu perdi minha avó, meu padrasto, meu pai e minha mãe em um ano
e meio. Foi um período extremamente doloroso em minha vida.
Emprego, mudanças,
atribulações familiares
Em 1966 eu estava com 18 anos e resolvi
trabalhar. Comecei a
trabalhar como guia de turismo. Já estava
morando no Rio de Janeiro com minha mãe e meu padrasto, que era árabe. Foi uma
boa experiência! Aprendi a falar espanhol nessa época. Um dia minha mãe falou
que estavam abertas as inscrições na Varig e que ela conhecia muitas pessoas na
empresa, a quem poderia me apresentar. Mas preferi ir lá sozinha, na cara e na
coragem. Fiz a inscrição, a entrevista e os exames. Só depois é que eles
ficaram sabendo quem eram os meus pais. Fui admitida e fiquei muito emocionada.
Tudo aquilo, até o cheiro do angar, lembrava a minha infância e
adolescência.
Comecei
a voar em 1967. Estávamos vivendo a revolução que tinha começado em 1964, com o
golpe militar. Poucos meses depois tive que sair porque minha irmã foi presa
com outros estudantes e ficou sumida. Ela estava fazendo pré-vestibular no
“Baiense”, que era o lugar do agito. Foi uma época horrível! Minha mãe sofreu
muito e eu tive que dar atenção a ela. Meu padrasto tinha morrido e minha mãe
teve que voltar a trabalhar, pois meu pai nunca pagou pensão.
Morávamos
numa casa grande e tivemos que mudar para um apartamento. Depois mudamos para
uma quitinete. Nesse período eu fui trabalhar no escritório de uma empresa.
Depois fui trabalhar na recepção de um hotel da rede Luxor. Aí eu namorei um
rapaz, que era filho do almirante que tinha encontrado a minha irmã na Ilha das
Flores. Ele foi a paixão na minha vida de jovem encantada, mas a mãe dele nos
separou. Ele foi para Genebra e eu continuei trabalhando até comprar uma
passagem para ir lá me encontrar com ele.
Fui
para a Itália e encontrei alguns rapazes que tinham sido presos junto com a
minha irmã. Naquela época ela estava em Londres. A Varig fazia voos para
Genebra e eu acabei perdendo o voo naquele dia. Então fiquei morando na Suíça
por algum tempo, pois o meu namorado já tinha outra namoradinha. Trabalhei no
Hotel Mövempick, onde lavava pratos e fui aprendendo a falar francês. Fiz
amizades, aprendi a esquiar e quando podia ia me encontrava com minha irmã.
Minha mãe também fez uma viagem para lá. Depois dessa temporada, voltei para o
Brasil.
Retorno à Varig, perdas na
família
Em 1970,
entrei para a Varig novamente. Já tinha uma bagagem de vida maior. Comecei
trabalhando no Avro e no Electra. Meu pai não chegou a me ver como
comissária. Eu estava fazendo um voo de ponte aérea, de quatro pernas, quando
alguém da tripulação me avisou que eu ia ficar em São Paulo e que não voltaria
com a tripulação para o Rio de Janeiro. Ao chegar, lá estava um comandante que
trabalhava no Electra e conhecia meu pai. Foi então que eu soube que ele tinha
falecido. Meu pai morava em São Paulo e estava casado com outra mulher. Foi
nessa época que eu comecei a perder todo mundo na família. Voei um ano e pouco
e saí novamente da aviação.
Curso de Comissários
Entrei
na Varig três vezes e participei de três turmas que faziam o Curso de Comissários.
Minha situação era diferente porque eu morava no Rio de Janeiro, mas muitas
colegas do curso vieram de outras cidades e ficavam hospedadas em hotel. Elas
não podiam sair à noite, não podiam isso, não podiam aquilo, viviam num regime
de internato. Para elas tudo era novidade, a empresa, os passageiros, os voos.
Mas eu já tinha uma boa experiência na aviação, já sabia quais eram as regras,
como me comportar, cuidar dos uniformes, da imagem...
Quando
entramos para a empresa, assinamos um contrato, como se fosse um casamento.
Esse casamento não resiste para muitos. Nessa terceira vez, entrei no dia dos
namorados. E entrei para ficar. Já tinha uma grande bagagem e já sabia
contornar situações e problemas. Já tinha, inclusive, a matrícula mais alta, da
turma de junho de 1972, assim que passamos para o voo. Na aviação sempre
procurei fazer a minha parte.
Preparação para os voos
Começo
a me arrumar duas horas antes da apresentação. Geralmente levo uns 15 minutos
de carro para chegar ao aeroporto. Na mala eu carrego as coisas essenciais - o
meu secador que é o mesmo que comprei no primeiro voo que fiz para Miami
(1973), pois não gosto de sair com cabelo molhado. Levo um livro. E, nos
pernoites, agora vou começar a fazer cortinas de crochê para a minha casa. Eu
vejo colegas que trazem ferro de passar roupa e quase um guarda-roupa para usar
nos pernoites, mesmo que ele seja curto. Eu levo o básico, um jeans, blusinha,
camiseta. Uma roupinha para viajar de extra.
Pernoites, atividades
paralelas
Nos
pernoites, onde a turma for eu vou junto. Gosto de passear, ver coisas novas,
mas não gosto de fazer compras. Na América, eu até sou consumista, mas de
coisas mais básicas. Se o pessoal vai passar o dia num shopping eu não vou,
procuro outro lugar para passear, como um parque ou o planetário.
Comprar
coisas no estrangeiro para vender no Brasil eu nunca fiz. Não sei vender nem
pipoca. Já fiquei muito nervosa na alfândega por causa dos colegas. Muitas
vezes eu saí da alfândega com a mala de uma colega, ou carreguei objetos de
graça para os outros, principalmente aqueles que eu sabia que precisavam arcar
com despesas maiores na família, ou que estavam pagando tratamento de
familiares.
Retorno dos voos
Quando chego de cada voo, lavo o rosto, tiro
a maquiagem e vou dormir. Na hora do almoço, minha empregada leva um prato de
macarrão e depois eu durmo a tarde inteira. Quando faz sol, eu faço a mesma
coisa, mas não durmo. Ponho meu uniforme para arejar e fico brincando com os
cachorros, fico vendo as minhas plantinhas e só vou dormir à noite. A minha
mala eu só vou ver no dia seguinte. A empregada mantém a casa limpa, os
cachorros cuidados e faz comida para o meu marido, quando estou viajando. Não
me preocupo com essas coisas.
Vida amorosa, vida
familiar
Fui
muito paquerada, mas nunca me relacionei com passageiro. Fui namorada de um
comissário que era muito bonito, mas imaturo. Acho que a mulher amadurece mais
cedo. Também tive um namoro longo com um comandante que era casado. Depois nos
tornamos amigos. Havia aquele encantamento, aquele frio na barriga, mas havia
também muita dificuldade. E quando ele disse que ia deixar a mulher para ficar
comigo, pensei que quando estivesse na idade dela ele também me deixaria por
uma mais jovem e não aceitei.
Conheci
meu atual marido quando eu tinha 36 anos. Estamos juntos há 17 anos. Ele é
muito estudioso e formado em muitas faculdades. Nós tínhamos frequentado os
mesmos lugares, estudamos na mesma escola. Ele diz que se tivesse me encontrado
quando eu era mais nova, teria sido a mãe dos filhos dele. Adoro crianças, mas
não pude ter filhos. É coisa do destino.
Também
penso nas minhas colegas que têm filhos e sofro por causa delas. Nas datas
especiais, nos aniversários, elas estão viajando, longe da família. Antes de
encontrar meu marido, eu tinha amigos, pois a minha família era muito pequena.
Tenho uma irmã e uma tia que está com 83 anos. Tenho também uma tia na
Alemanha, que eu não conheço. Tenho uns primos espalhados em São Paulo, com os
quais me relacionava quando minha avó materna era viva.
Idade ideal para a
aposentadoria
Acho
que a idade ideal para a mulher se aposentar na aviação é aos 50 anos. No meu
caso, gostaria de ficar para sempre e vou continuar até quando for possível. Só
não quero ficar velha e ridícula. Hoje em dia, a mulher tem muitos recursos,
faz plásticas, tratamentos, então é mais fácil manter uma boa aparência. Mas
acho uma desumanidade a situação de muitas comissárias de empresas
norte-americanas. Elas têm de voar até 65 ou 70 anos, mesmo quando não aguentam
mais. Uma delas trabalhou comigo recentemente e parecia uma plástica ambulante.
Ela mesma disse que já não estava mais aguentando.
Com ou sem grana, acho que a mulher, aos 50
anos, tem que sair do voo. Temos um relógio biológico dentro de nós que precisa
ser respeitado. Já estou contrariando o meu relógio biológico. No dia do voo o
desgaste é muito grande e a ansiedade ainda maior. E depois ainda tem a noite
inteira de trabalho. Gosto do meu trabalho, acho que a aviação é fonte de vida,
de cultura, mas sinto que transgrido as leis biológicas e estou me prejudicando
física e emocionalmente. Antes do voo eu procuro descansar.
Benefícios da profissão
Como
todo mundo, nós temos os problemas do dia a dia, mas a nossa profissão nos
proporciona um relaxamento em relação a esses problemas. A mulher que vive 24
horas dentro de casa, ou trabalha fora o dia todo não tem isso. Eu tenho uma
vizinha que é cinco anos mais velha que eu e que vive sempre em casa. Já é avó
e nos finais de semana bebe até cair. Ela morre de inveja da vida que eu levo.
Tenho uma vida boa com meu marido, a gente se entende bem e ainda saio para
viajar!
Sempre
trabalhei e depois que me aposentar acho que vou continuar trabalhando. Ou vou
cuidar de criança carente, ou de cachorro abandonado. Vou querer uma ocupação,
não vou morrer sedentária. Sempre fui uma pessoa ativa. Embora a minha cabeça
seja de uma pessoa jovem, o meu corpo não é mais. Estou com quase meio século
de existência. Sabe o que é isso? Vou ficar muito triste por deixar de fazer o
que gosto, mas vou arrumar outra coisa para fazer.
A
aviação é uma escola. No Brasil que a gente vive, quando você teria condições
de proporcionar uma viagem ao exterior ao seu filho? Quando você teria a
oportunidade de estar em Miami nesta semana e em Paris na próxima? Ninguém vai
me dizer que a minha cabeça é igual a de alguém que nunca viajou. Nosso
horizonte é muito mais amplo, incontestavelmente. A bagagem cultural é muito
grande.
Nós
aprendemos a conhecer o mundo. Eu já fui para a China Oriental! Sensível do
jeito que sou, fui parar naquele lugar! Saí de lá de cabeça virada. A filosofia
é muito bonita, mas eles são primários: comem cachorro, matavam crianças (as
meninas). O nosso guia de turismo tinha um inglês perfeito e eu perguntei onde
ele tinha nascido. Ele respondeu que tinha nascido lá mesmo. Nasceu programado
para ser guia turístico. Ele nunca tinha viajado para fora do país!
Sonhos a realizar
Eu cheguei a pensar em cursar uma faculdade
alguns anos atrás, mas depois concluí que ia ser muito sacrifício. Pensei em
ter uma loja, mas percebi que para dar certo eu teria que ter alguém de extrema
confiança para ficar no meu lugar quando estivesse viajando. Pensei também em
ter uma pousada. Foi um belo sonho que eu alimentei. Seria a Pousada das
Asas Quebradas, para receber e hospedar todos os colegas que já pararam de
voar. Teria uma farmácia tipo drogaria, com coisas de fora, trazida pelos
colegas que voam e oferecidas graciosamente aos colegas que já não voam mais e
não podem comprar aquelas coisas que antes eles costumavam usar. Eu ainda quero
fazer isso. Encontro alguns colegas aposentados no aeroporto, que vão lá para
ver se encontram alguém do voo, alguém que conhecem. Gostaria muito de ter esse
SPA para os colegas que já saíram do voo. Mas como vou arrumar grana para
isso?!
*Nina (pseudônimo) estava com 49 anos e tinha 25 de voo (sem
contar as interrupções) quando concedeu esta entrevista em um pernoite em Miami
(USA), em 1997.
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