sexta-feira, 20 de junho de 2014

Fernanda

Fernanda*

Nasci em 1946, na cidade do Rio de Janeiro. Meus pais nasceram no Brasil, mas são filhos de estrangeiros. Minha mãe é descendente de espanhóis e meu pai de portugueses. Eu não falo espanhol, apenas lembro-me de algumas expressões que minha avó espanhola usava, quando a gente não se comportava direito. Nunca me relacionei bem com minha mãe, acho que ela é egoísta e até hoje nosso relacionamento é difícil. Sempre me identifiquei com meu pai. Quando nasci ele tinha 51 anos e já tinha cinco filhos do primeiro casamento. Eu era a filha neta, pois ele já tinha netos. Minha mãe era 27 anos mais nova do que ele. Eu adorava meu pai. Estava com 16 anos quando ele faleceu. Foi minha primeira grande perda.
Infância e adolescência
Se falar que tive uma infância infeliz estarei mentindo. Era feliz, mas tinha momentos ruins por causa da ausência do meu pai e porque minha mãe não nasceu para ser mãe. Acredito que meu pai tinha muito dinheiro e que eu fui uma forma de minha mãe segurá-lo. Eles eram casados, mas ela não era fiel. Descobri isso a partir dos sete anos. Numa cidade do interior as pessoas comentam.
Naquela época a Igreja tinha muito poder, pelo menos nas cidades pequenas. Meu pai, que era industrial, de uma família tradicional, ajudava muito a Igreja. E o padre contou para ele sobre a infidelidade da minha mãe, mas ele não quis acreditar. Eu vivi um período muito difícil. Sentia-me só e triste. Materialmente não me faltava nada. Meu pai redobrou a atenção quando percebeu que minha mãe não se dedicava a mim. Então ele quis ser pai e mãe. Ele a amava muito e continuou fazendo as vontades dela. Eu tentei, depois de adulta, me aproximar dela várias vezes.  Mas até hoje, com 74 anos, ela é uma pessoa muito difícil.
Identificava-me mais com minha tia, irmã da minha mãe, que é também minha madrinha. Para mim, ela é a minha mãe, mas morava distante. Dos 10 aos 16 anos fiquei interna num colégio. Não tinha muita noção das coisas, mas era triste ficar lá. Na minha casa eu tinha tudo, não precisava ficar interna. Minha mãe nunca me visitava. Só o meu pai ia lá. Ele também me escrevia cartas e nessas cartas, às vezes, a minha mãe escrevia alguma frase, mais por obrigação. Hoje em dia eu convivo bem com isso. E, como mãe, sou muito diferente. Fiz tudo ao contrário com a minha filha. Talvez tenha feito até demais.
Quando meu pai morreu eu saí do colégio interno e o “Juizado de Menores” me tirou da guarda da minha mãe. A minha tia, que morava no Rio de janeiro, achou que era muita responsabilidade cuidar de uma garota de 16 anos. Então fui morar com um tio, que era padre, numa casa paroquial, até completar 18 anos. Tivemos que pedir autorização ao Bispo. A experiência não foi muito penosa. Todo mundo se referia a mim como a “sobrinha do padre”.
Não tinha nenhuma chance de arrumar namorado, pois todos tinham medo do meu tio. Até hoje a Igreja exerce esse poder. Eu assistia à missa do coro e era coroinha na missa dos dias de semana. Nos fins de semana ele tinha um ajudante. No domingo eu procurava escapar da missa e ele ficava me controlando do altar. Não era fácil morar numa casa paroquial.
Independência aos 18 anos
Toda vida fui muito extrovertida e conquistava as pessoas com facilidade. Desculpavam as minhas travessuras porque gostavam de mim. Eu desenhava bem e no internato as freiras me ocupavam bastante com atividades criativas como fazer cartazes e painéis. Aos 18 anos, legalmente, eu podia sair da casa paroquial e não deixei passar nem um dia.
Pedi um dinheiro para o meu tio, para o dia do meu aniversário (ele recebia uma quantia mensal para o meu sustento, da herança deixada por meu pai), sem dizer para o que era. Arrumei uma bolsa, coloquei minhas coisas dentro e fui para o Rio de Janeiro, sem me despedir dele porque não gosto de despedidas.
Fui atrás de uma amiga de minha mãe, que eu sabia que ia me receber sem problemas porque era uma pessoa só e alcoólatra. Era a única pessoa que ia me receber sem me questionar. Ela começava a beber de manhã. Se eu fosse para a casa de uma pessoa normal, essa pessoa logo ia procurar a minha mãe. Mas essa senhora achou que eu fui visitá-la. Eu só queria ficar lá por poucos dias, para procurar um lugar para morar, pois sabia que ia ter acesso à minha herança.
Eu mesma telefonei para minha mãe e foi ela que ligou para o meu tio que devia estar muito nervoso. Eu não estava me importando muito com isso, queria me livrar daquele jugo de padre, onde eu nada podia fazer porque podia depor contra a reputação dele.
Minha mãe, que morava no interior de Minas foi até o Rio de Janeiro se encontrar comigo. Eu nasci no Rio de janeiro. Minha mãe relutou muito em se mudar do Rio para o interior de Minas, pois não tinha conhecidos na cidade onde meu pai morava e tinha seus negócios. As irmãs dela moravam no Rio. Mas para o meu pai, com o passar dos anos, foi ficando mais difícil ir para o Rio nos finais de semana. Então ela aceitou ir morar em Petrópolis, que era mais perto de Minas e depois acabou indo para a cidade do meu pai. Foi nessa época que eu fiquei interna em colégio. Quando eu estava com meu tio ela também não se interessou em me procurar. Ficou sem a posse e guarda justamente por causa do seu comportamento. O seu histórico era mal visto pela família do meu pai e foram eles que interferiram junto ao juizado.
Maioridade
Fiquei com essa amiga de minha mãe durante uma semana. Até minha mãe chegar e me colocar a par dos meus direitos com a maioridade. Ela já chegou preparada, sabendo de tudo e querendo controlar tudo. E me convenceu de que com o dinheiro eu podia comprar um apartamento, um carro e viver bem. Assinei todos os papéis que ela trouxe e com isso ela ficou com o meu dinheiro. Comprou um apartamento e um carro para mim. Eu já sabia dirigir porque tinha aprendido com o motorista do meu pai, aos 16 anos. Se eu tivesse permanecido com as ações da empresa do meu pai ainda teria um rendimento mensal, mas ela vendeu tudo. Ela vendeu uma casa por um preço e me comprou um apartamento por um quarto do valor. O resto ficou para ela. Depois eu soube que ela deu dinheiro para o namorado comprar uma fazenda.
A escola interna onde estudei ficava no Rio de Janeiro. A casa paroquial ficava no interior, perto de Friburgo. Lá, aprendi a me calar, a não me queixar muito, pois não tinha a quem recorrer. Meu tio, à maneira dele, foi uma pessoa boa comigo. E por causa da amiga de minha mãe, que era alcoólatra, até hoje não suporto bebida. Eu sentia muita pena dela! Era uma mulher muito bonita, mas não tinha estrutura nenhuma. Era viúva e não me esqueço do seu salto alto e do copo de bebida na mão. Ela bebia e não fazia absolutamente nada.
Aviação
Fui morar sozinha, no meu apartamento. Tinha o meu carro e ia para a praia o dia inteiro. Minha mãe era visita. Na praia tinha um grupo de amigas e, de repente, uma delas sumiu. Eu estudava na Aliança Francesa e um dia a encontrei no caminho. Ela estava carregando muitos livros e disse que estava estudando para ser aeromoça. Perguntei se era difícil e ela respondeu que era facílimo. Aí eu decidi ir com ela me inscrever.
Eu sabia que precisava trabalhar, mas não sabia no quê. Não tinha noção nenhuma do que era ser aeromoça. Estava com o cabelo molhado, vestia uma camiseta vermelha e uma calça jeans. Imagine se hoje eu iria vestida desse jeito para pedir um emprego. Iria me arrumar, me produzir, mostrar o melhor de mim. Mas eu não tinha muita noção; era a primeira vez que procurava trabalho.
Fizeram os testes comigo na mesma hora. Já saí da empresa sabendo que o curso iniciaria 15 dias depois. Naquela época o curso era muito diferente dos de hoje. Tinha aula de história e geografia, além das outras matérias. Só não tinha a sofisticação dos cursos de hoje, com vídeos etc. A gente ouvia aquelas histórias de comandantes como folclore. Alguns professores eram da aviação e outros eram leigos.  O curso durou três meses e a turma era toda do Rio de Janeiro. Hoje, da minha turma, só tem uma pessoa no voo.
Fiz 18 anos em outubro e no ano seguinte, em junho de 1965, entrei para a aviação. Antes, eu nunca tinha pensado em ser aeromoça. Mas sabia que ia precisar trabalhar porque quando minha mãe me dava dinheiro ela dizia que não ia ficar sustentando “vagabunda de praia”. E eu sabia que ela ainda usava o meu dinheiro. Praia, apartamento, liberdade. Eu tinha tudo isso, mas não dizia para ninguém que morava sozinha porque tinha muito medo. E não levava ninguém para lá. Só saia com a turma de amigos. Nesta época apaixonei-me pelo filho do então governador do Rio de Janeiro. Éramos jovens e mais tarde o namoro se transformou em amizade.
Como eu morava sozinha, não tive nenhum deslumbramento com a liberdade que a aviação proporciona ou representa. Os jovens que saem da casa dos pais é que sentem essa diferença. Logo me identifiquei com a aviação. Só que não tinha muita responsabilidade. Para mim era tudo festa: ganhar o salário e ainda me divertir. Por algum tempo minha mãe ainda me deu dinheiro.
Primeiros voos
Minha mãe estava no meu apartamento no dia em que fiz meu primeiro voo. Foi um voo de Ponte Aérea, do Rio de Janeiro para São Paulo, com quatro pernas. Ou seja, a gente ia e voltava duas vezes. No final do voo, os colegas da tripulação queriam comemorar no aeroporto mesmo, mas eu estava tão ansiosa para chegar em casa, achando que minha mãe estava preocupada me esperando. Mas quando cheguei, ela nem ligou.
Voei no DC-3 para o interior da Bahia, no Convair e no Electra para o Norte e Nordeste do Brasil. De Avro ia para Montes Claros, Uberlândia. Lembro-me daqueles aeroportos que não tinham nem cerca e dos meninos que vinham pedir caixa de lanche. Os passageiros eram quase sempre os mesmos. Eles até deixavam de comer os lanches, pois sabiam que a gente dava para os garotos.
Relacionamento amoroso
Em 1967, conheci um copiloto de DC-3 que, aos poucos, foi entrando na minha vida. Ele é o pai da minha filha. Nosso relacionamento foi muito tumultuado. Ele não fazia o meu tipo físico, mas me conquistou com suas palavras. Sou muito sensível ao que me dizem. Talvez seja um pouco de carência de minha parte. Ele disse que me seguia sempre com os olhos, quando eu passava por ele, no aeroporto, no restaurante do hotel etc.
 Um dia, eu estava trabalhando no B-727 e ele falou uma frase que me marcou. Ele tinha ido conversar com a tripulação técnica do meu avião e estava descendo a escada traseira quando parou e me disse: “Se eu me apaixonar por você a culpa é sua”.  Fechei a porta do avião e fiquei pensando naquilo. Fiquei me sentindo o máximo.
Ele descobriu o número do meu telefone e dois dias depois me ligou. Eu tinha namorado, mas fiquei muito curiosa querendo saber o que mais ele tinha para me dizer. E acabei saindo para passear com ele. Apesar de tudo, ele era uma pessoa tímida. Acabamos marcando outros encontros e eu fui, aos poucos, me apaixonando. Eu não decidi ficar com ele, a decisão foi ele que tomou. Foi difícil romper o relacionamento com o meu namorado. Eu tinha essa dificuldade até com as amizades que não me serviam.
Quando conheci o copiloto, ele morava sozinho na base de Belém. Ele e outros pilotos da base iam visitar a tripulação no hotel e buscar jornais e revistas do Rio e São Paulo. Enquanto os outros voltavam para casa porque seus familiares os aguardavam, ele permanecia no hotel. Isso me fez pensar que ele era solteiro. Mas ele era casado e tinha duas filhas em idade escolar. A família dele tinha voltado para o Rio de Janeiro porque as crianças iam começar a estudar. Eu só fiquei sabendo que ele era casado quatro meses depois, quando já estava envolvida com ele. Com o passar do tempo ele começou a me fazer muita cobrança. Dizia que a gente ficava muito pouco tempo junto e que, ao voltar para o Rio de Janeiro, ia resolver a vida dele.
Separação, solidão
Quando o copiloto voltou para o Rio de Janeiro, sentiu dificuldades em se separar das filhas. Então comecei a ficar chateada e decidi deixar a aviação para ir morar nos Estados Unidos. Vendi meu carro, recebi o fundo de garantia, comprei uma passagem para Nova York e entrei no avião esperando que ele fosse atrás de mim, como vi num filme com a Greta Garbo. Mas ele não foi e o avião decolou. Eu estava com 22 anos e o conhecia há dois anos. Tinha dificuldade para falar o que sentia e para terminar o relacionamento, pois ainda gostava muito dele. Fui para Nova York sem saber falar inglês e com o endereço de uma pessoa conhecida. Na verdade, essa pessoa era o ex-namorado de uma amiga, um judeu americano. Ele sabia um pouco de português e assim a gente pode se comunicar.
Achei que a vida nos Estados Unidos ia ser uma festa e me enganei. Esse rapaz foi bonzinho comigo, mas queria algo em troca. Percebi que não podia ficar lá, aceitando a hospedagem. Fui para o Hotel Martha Washington, que era só para moças. Tinha algum dinheiro comigo, mas sabia que não ia durar muito. Então comecei a procurar um trabalho e encontrei dificuldades porque não falava o idioma. Com a ajuda desse mesmo rapaz eu consegui um emprego numa casa de família. Ajudava a cuidar da casa e principalmente a fazer companhia para uma menina de 10 anos, enquanto os pais estavam no trabalho. A família também tinha uma cachorrinha que eu levava para passear e fazer xixi na neve. Eu nem tinha roupas adequadas para enfrentar o frio no inverno de Nova York.
A solidão era muito grande! Quando comecei a trabalhar nessa casa eu tinha duas folgas por semana. Usava essas folgas para estudar no Berlitz School. Inicialmente, na minha sala, tinha muito sul-americano e eles tinham dificuldade de aprender e por isso eu achava que as aulas não rendiam. Então me mudei para uma turma de apenas cinco alunos, que era o máximo que eu podia pagar. Lá eu conheci uma brasileira. Saímos juntas algumas vezes, mas ela era uma pessoa muito complicada. Eu queria conhecer outras pessoas, mas ela não queria. Se eu parava para olhar uma vitrine, ela não esperava por mim. Felizmente, uma colega de voo foi passar um mês de férias na casa de uma tia que morava em Nova York e nós saímos juntas durante 20 dias. Foi o melhor tempo que tive. Saíamos para passear e dançar nas discotecas.
Depois, comecei novamente a me sentir muito sozinha. Queria vir embora, mas não conseguia falar para a dona da casa que eu não podia mais ficar com eles. Isso me angustiava muito e eu sabia que eles precisavam arrumar outra pessoa para ficar no meu lugar. Finalmente falei para ela que estava sofrendo muito e que passava as minhas noites chorando. Ela disse que compreendia perfeitamente. E assim eu voltei para o Brasil, depois de passar seis meses fora. Quando decolei, nem olhei para baixo, pela janela do avião, para ver a cidade de Nova York.
Retorno ao Brasil, obstáculos
Quando cheguei em São Paulo, o copiloto estava me esperando no aeroporto de Congonhas. Pegamos a Ponte Aérea para o Rio de Janeiro e, durante esse tempo todo, ele não falou absolutamente nada. Ele estava trabalhando no voo e me levou para a cabine de comando. Só me olhava e passava a mão no meu cabelo. Nunca esqueci a emoção que vivi naquele momento. Um mês depois, ele deixou a família e decidiu ficar comigo. Ele não foi me buscar na escada do avião, como no filme, mas me resgatou no retorno.
Continuamos juntos e com o passar do tempo ele voltou a fazer cobranças. Eu tinha voltado a trabalhar na aviação e desta vez ele queria que eu deixasse meu emprego. Como ele viu que com palavras não conseguia, começou a usar outra tática que me deixou ainda pior. Na época não existia divórcio, então ele se desquitou e fomos morar juntos. Ele sabia quando eu ia voar de manhã bem cedo e convidava os amigos para ir jantar e jogar cartas na noite anterior. Com isso, no dia seguinte, eu ia trabalhar quase sem dormir. No início ele ainda me levava para o aeroporto, depois nem isso. Então eu pegava táxi. Ele fez como faz um polvo. Convenceu-me a vender o carro dizendo que não precisávamos de dois carros. Também me fez vender o apartamento para comprarmos um maior. Só faltava me tirar do emprego. Começou a me fazer voar cansada, já não me levava nem me buscava no aeroporto. Eu pegava a escala de voo com muita angústia, para saber se as nossas folgas coincidiam. Tudo culminou com uma vez em que ficamos 11 dias sem nos ver. Só trocávamos bilhetes em cima da mesa.
Então, pedi para me demitirem novamente. Desta vez não queriam aceitar. Queria fazer acordo e receber meu fundo de garantia, mas isso significava prejuízo para a empresa. Então comecei a fazer coisas para ver se me demitiam. O assistente do diretor do serviço de bordo me chamou e disse que eu precisava fazer análise, pois andava muito agressiva. Trabalhava no Boeing e fazia os voos da Mini-Rai que eram longos, para Miami e México. Aí ele disse que para facilitar o tratamento eu voltaria a voar Electra e faria terapia analítica com um conhecido dele. Ele quis ser o meu salvador e eu não podia dizer que só estava sendo rebelde porque queria ser demitida. Mas fui fazer análise durante seis meses. 
Num fim-de-semana, quando o diretor de plantão era outro, consegui ser demitida. Eu tinha pintado as unhas no aeroporto Santos Dumont e soube que a nossa escala de programações de voos tinha saído. Então fui até o prédio da Varig buscá-la. O porteiro disse que eu não podia entrar sem o crachá e eu disse que não ia botar a mão dentro da bolsa porque não queria estragar as unhas. Pedi a ele que pegasse o crachá de dentro da minha bolsa, mas ele se recusou a fazer isso. Então entrei no prédio assim mesmo, sem o crachá. Ele sabia que eu ia buscar a escala, ligou para lá e perguntou o meu nome. Depois ligou para o diretor de plantão e falou sobre a minha indisciplina. Na segunda-feira estava demitida. Era o que eu queria. Eles me mandaram embora, mas pagaram o FGTS. Isso aconteceu no início de 1975, quando os DC-10 estavam chegando.
Maternidade
A partir daí fiquei sendo a companheira que meu companheiro queria. Inclusive na empresa, tendo direito às passagens GC’s. Então ele começou a dizer que queria filhos. Até então eu nunca tinha pensado em ser mãe, mas aceitei a ideia. Porém, engravidei quatro vezes e perdi a gravidez todas essas vezes. Na quinta tentativa deu tudo certo e nasceu a minha filha. Foi uma gravidez muito sofrida. Eu me sentia muito culpada toda vez que abortava. Achava que se tivesse relações sexuais eu perderia a criança. Então, durante a gravidez, evitava ter relações com ele. Meu companheiro começou a sair com outras mulheres e nunca se preocupou em esconder isso de mim. Não sou uma pessoa ciumenta, mas sofri muito.
Quando soube que estava grávida pela quinta vez, ele estava voando. Liguei para o hotel de pernoite para dar a notícia e quem atendeu foi uma mulher. Era uma colega minha e ela foi logo explicando que estava no quarto dele, mas que não tinha nada a ver com ele. Acontece que naquela época as comissárias ficavam em duas num quarto e ele estava no quarto delas com a outra colega. Liguei para o outro quarto e realmente ele estava lá. Essa foi a primeira grande decepção. Depois disso as traições foram frequentes.
Quando estava no oitavo mês de gravidez, sabia que ele tinha uma amante comissária e resolvi mostrar aos dois que eu sabia do relacionamento deles. Sabia qual era a programação que eles iam fazer e quanto tempo permaneceriam em solo em determinado aeroporto. Então comprei uma passagem e fui até lá. Quando entrei no avião, encontrei meu marido sentado junto com ela. Ele lia o jornal e ela recostava a cabeça no ombro dele.  Abaixei a folha do jornal e falei para os dois: “Se essa criança que está aqui na minha barriga ao nascer estiver faltando uma unha, eu vou matar vocês dois”. Falei isso, dei as costas e fui embora. Quando ele voltou para casa reconheceu que estava fazendo bobagem e disse que ia parar. Eu estava muito magoada e não sabia o que ia acontecer depois que a criança nascesse, se ia querer continuar com ele ou não.
Ele queria um menino, mas nasceu uma menina. Ele estava lendo um livro quando comunicaram que tinha nascido uma menina. Ele simplesmente continuou lendo o livro. Ao saber disso também fiquei muito magoada. Ele judiou muito de mim durante a gravidez, por causa de mulheres e outras coisas...
Reflexões, nova separação
Olho para meu passado e penso na minha vida: Saí de um colégio de freira para morar numa casa paroquial. Quando tomei posse da minha herança, a minha mãe entrou no circuito e foi muito triste. Além disso, ela ajudou o seu namorado com o meu dinheiro. Depois virei garota de praia. A aviação foi meu primeiro emprego. Eu só tinha o segundo grau e falava francês porque estudei francês no internato. Eu não tinha grandes expectativas quanto ao meu futuro. Não pensava em continuar os estudos. Envolvi-me com um copiloto, sem saber que ele era casado. Saí da aviação por causa dele. Retornei para a aviação. Saí novamente. Engravidei...
Durante o resguardo fiquei muito atenta. Comecei a prestar muita atenção nele, como estava, o que fazia, qual o relacionamento que tinha com a filha. Minha filha nasceu linda! Hoje ela é bonita, mas quando era bebê era muito linda! Sou apaixonada por ela. Percebi que ele nunca mais ia ser o que tinha sido para mim. Tinha me magoado muito. Então propus a separação. Ele disse que eu ainda estava muito nervosa por causa da gravidez e do parto, mas que tudo isso ia mudar. Esperei passar o tempo de resguardo e, quando voltamos a nos relacionar intimamente, eu me senti péssima. Queria que aquilo acabasse o mais depressa possível. Constatei que nunca mais ia ser a mesma coisa. Ele não quis acreditar e levou dois meses para se mudar. Só depois é que compreendeu o quanto me amava, mas já era tarde. Sei que ele ainda me ama. 
Depois da separação ele não quis me ajudar economicamente porque  julgava que assim eu voltaria para ele. Não entrei na justiça para pedir pensão alimentícia. Só fiz isso quando a minha filha completou 15 anos. Tinha ainda uma pequena economia que daria para sobreviver por uns três meses. Meu ex-marido me deu muitos problemas. Tinha jurado que ia me seguir sempre e se me visse com algum namorado ia bater no cara. Um dia, ele e o meu atual marido se pegaram. Essa história só acabou no dia em que fiz o mesmo com a namorada dele. Falei para ela: “Você não sabe por que está apanhando? Pergunte para ele que ele te diz”. Depois disso ele parou e hoje é até amigo do meu marido.
Retorno ao voo, novo casamento
Meu marido, com quem estou há 19 anos, sempre me tratou muito bem e sempre me recebeu com tapete vermelho. Ele é músico. Era meu vizinho e sempre foi uma pessoa muito atenciosa e amiga. Morava no mesmo prédio e começou a me rodear, poucos meses depois da minha separação. Ele soube me cativar. Namoramos durante um ano e depois nos casamos.  Não é muito companheiro porque não gosta de nada além da música, mas é um grande amigo. É mais novo do que eu oito anos, mas de cabeça é mais velho.
Minha filha estava com dois meses quando voltei à Varig para pedir emprego novamente. Ela nasceu em maio e eu voltei para o voo em novembro de 1977. Fui pedir emprego e não deixei o nosso diretor do serviço de bordo falar muito. Ele queria me lembrar de tudo o que eu tinha aprontado antes de sair da empresa. Mas ele sabia que agora a situação era outra. Eu tinha uma filhinha para sustentar. E me deixou voltar. Ele ainda disse: “Tenho certeza de que não vou me arrepender com a sua volta”. Então, durante todo este tempo eu fiz tudo para que ele se orgulhasse de mim. Ele foi muito bom comigo.
Não tinha ninguém com quem deixar a minha filha. Tinha uma garota de 16 anos que me ajudava a cuidar dela, como um presente. Era filha de uma babá minha. Durante um ano ela ficou comigo. Em troca, dava casa e comida. Quando viajava ficava muito dividida: minha filha, que já não tinha pai, também ficava sem a mãe. Tendo uma filha, eu procurava entender a minha mãe. Mas, o entendimento não vinha. A minha filha eu amei desde a hora em que a senti na minha barriga.
Na maternidade, tudo o que eu queria era voltar para casa, pois então ela iria ficar todo o tempo comigo. Tinha medo de dar banho porque não tinha aprendido nada sobre isso. Tirava fotos dela até com máquina fechada de tão nervosa que ficava. Queria registrar todos os movimentos dela. Vivi para a minha filha, que eu amo muito. Fiz o contrário da minha mãe. Fiz muitas de suas vontades e ela só é uma garota educada porque Deus assim quis.
Muitas vezes tive que deixá-la na casa dos outros, amigos e conhecidos, quando a babá faltava ao trabalho. Houve uma vez em que eu estava de reserva e não tinha com quem deixá-la. Então, levei-a junto. Achei que não ia voar, mas quando cheguei lá o meu nome já estava na lista da tripulação. Então comprei uma passagem de colo para ela. Ela tinha sete meses. Era um voo para o Nordeste. Meus colegas foram muito solidários comigo.
No pernoite, naquela época, a gente ainda ficava em dois no quarto e tive a sorte de viajar com uma colega que também tinha um filhinho pequeno. Nós juntamos as camas e a minha filha dormiu no meio de nós duas. Ela se comportou direitinho e durante todo o voo viajou no colo do engenheiro de voo. Numa das escalas o comandante foi até o aeroporto comprar fralda descartável para ela. Tive medo do que podia acontecer comigo na empresa, mas nunca fui punida por isso. Nosso diretor ficou sabendo da história e mandou devolver o dinheiro que gastei na passagem.
Quando conheci o meu atual marido, ele também não tinha filhos e então éramos dois a mimar demais a menina. Ela sempre foi uma criança muito boa. Reconheço que sou uma pessoa muito feliz e de muita sorte.  Depois que a primeira babá foi embora eu arranjei outra que ficou comigo até minha filha completar sete anos. Só foi embora depois que casou. Foi uma pessoa que me ajudou muito. Hoje eu sou madrinha da filhinha dela. Ela ajudou a criar minha filha. Minha filha não tem muita afinidade com o pai verdadeiro, mas se relaciona muito bem com meu marido e o considera pai.
Preparação para viajar
Começo com a arrumação da minha nécessaire. Também tenho um recipiente onde levo o meu café para fazer no quarto do hotel. Depois arrumo as roupas, o que combina com que, uma calça com outras peças etc. Penso na temperatura do lugar para onde vou viajar e que o clima pode mudar. Meu ritual é começar a separar as coisas que vou levar e começo pelo sapato, pois gosto muito de sapatos. Imagino que vou andar muito, pois sou muito curiosa e quero conhecer tudo o que posso; tudo o que os lugares para onde vou me oferecem. Se eu pudesse iria conhecer por dentro as casas das pessoas desses lugares, para ver como elas vivem. Presto atenção nas pessoas, na maneira como elas se comportam. Na Inglaterra, onde minha sobrinha está morando, conheço algumas famílias. Sei, por exemplo, que quando as pessoas morrem, a viúva leva o defunto para a casa funerária e o deixa lá. Ela vai para casa e recebe a visita dos amigos e familiares. Neste caso, o morto não precisa de atenção. A pessoa que perdeu o ente amado é que precisa. As pessoas é que levam as coisas para comer. É mais confortável passar a noite assim. No enterro são poucas as pessoas que vão.
Relacionamento com colegas
Hoje o grupo é muito grande e acho que as pessoas não estão muito interessadas nos outros. É só aquele momento ali trabalhando junto e depois você acaba sozinha num quarto de hotel. Se você não procurar as pessoas elas também não lhe procuram. Nunca fiquei sozinha, mas vejo colegas vivendo assim. As pessoas mais seguras acabam incomodando os outros. Eu incomodo porque sou bastante antiga na aviação. Trabalhei com supervisores no B-767, por exemplo, que eram mais novos e se sentiam inseguros comigo. Lá atrás, na cabine econômica, quando o supervisor não tem muita firmeza, acabo tendo mais problemas por causa do meu tom de voz. Sou muito extrovertida e não tenho problemas para me comunicar quando estou no estrangeiro. Falo tudo o que for preciso ou faço mímica para me fazer entender. Mas nos pernoites eu nunca saio sozinha, prefiro a companhia dos colegas. Às vezes, até me arrependo, mas fico junto.
Questões de saúde
Nunca tive problemas por causa do voo. Nunca senti nada.  Não descanso antes de voar e não sinto cansaço durante o voo. Apenas tenho um problema na coluna, mas o voo não tem nada com isso. Pincei um nervo. Já fiz várias cirurgias: tirei o útero porque tinha mioma e fibroma. Depois, porque não fiz o repouso adequado, tive que me submeter à outra cirurgia. 
Imagem da Comissária
Acho que a imagem idealizada é a de uma pessoa delicada, paciente e, ao mesmo tempo, firme. Uma pessoa educada com uma boa postura, com uma boa aparência. Altura e peso proporcionais. Eu não me vejo com o biótipo de uma comissária. Penso que teria que ser mais alta, magra, loira e de olhos azuis! Quando estou uniformizada, eu mudo a maneira de sentar, a maneira de falar, a postura em geral. Quando estou sem uniforme me sinto bem mais solta.
Aposentadoria
Não estou apavorada com esses quatro anos que faltam para me aposentar. Em termos de saúde estou tranquila. A gente planta para colher. Tenho uma casa no campo e quando estou lá fico dividida. Tenho pena de sair do meu sítio para vir voar. Mas quando começo a me arrumar incorporo a comissária e vou em frente. Aqui no pernoite, por exemplo, estou louca para voltar para casa, ver os meus cachorros, as minhas plantas. Então, estou dividida. Acho que vou viver bem sem a aviação, quando tiver que parar de voar. Mas vou sentir saudades, pois gosto de comprar coisas diferentes, sou consumidora. Compro quase tudo que é de cozinha. Por enquanto não cozinho, mas um dia vou cozinhar e espero usar tudo isso.
Estudos da filha
Já viajei muito com minha filha nas férias. Agora ela está morando nos Estados Unidos, faz um ano e meio. No dia em que ela disse que queria estudar fora do Brasil, comecei a chorar. Ela tinha 16 anos, estava no último ano do colegial, e começou a fazer aplication para as universidades americanas. Mandava as notas do histórico escolar para as universidades que a interessavam e eles mandavam a resposta. Quando aceitam as notas, eles pedem o diploma final. Ela sempre foi boa aluna e por isso eu sabia que ela seria aceita.
Minha filha recebeu muitos convites e foi conhecer as universidades. Ela quis conhecer cinco e eu acabei influindo na escolha do local. Ela queria ir para o Texas, mas acabou aceitando ficar em Miami. Assim eu posso vê-la com mais frequência porque fazemos voos para lá. Quando chego, não fico mais em hotel, vou para o apartamento dela. Eu e o pai pagamos as despesas e não é barato. Ela está com 19 anos, já se adaptou muito bem e diz que não quer voltar. Quando viajou, levou tudo o que tinha, até os bichinhos de pelúcia. Chorei muito!

*Fernanda (pseudônimo) estava com 51 anos e tinha 33 de voo quando concedeu esta entrevista em um pernoite na cidade de Amsterdam (Holanda), em 1997.

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