domingo, 15 de junho de 2014

A mulher do Comandante...

A mulher do Comandante...
(Entrevista com a esposa de um comandante – Hong Kong, 1996)


- Onde e quando você conheceu o seu marido?
Nós somos do Rio de Janeiro e foi lá que nos conhecemos, quando eu tinha 15 anos. Quinze dias depois ele foi para Porto Alegre fazer o curso de piloto e nós ficamos namorando por carta e por telefone. Depois ele foi para São Paulo e aí ficou mais fácil; ele podia ir para o Rio de Janeiro todo mês, para me encontrar. Foram cinco anos assim.
Eu era ainda muito jovem e fui amadurecendo ao lado dele. Hoje eu estou com 38 anos. Ele é apenas cinco anos mais velho e vive dizendo que me criou. Ele acha que é muito mais experiente. Na verdade tudo é muito igual. Eu tenho a minha profissão e nunca quis ser apenas esposa de piloto. Acho que a gente tem que ter uma identidade própria, não importa se o marido é piloto, médico ou engenheiro.

2- Como foi a conciliação da vida familiar com o seu trabalho e o dele?
Lutei muito para ter a minha profissão. Comecei a trabalhar cedo porque meu pai morreu e minha mãe, como pensionista do INPS, ganhava apenas um salário mínimo. Sempre quis cursar a faculdade de Arquitetura. Comecei a estudar, mas era muito caro e tive que interromper os estudos. Depois de casada, meu marido me ajudou a pagar a faculdade. Ele sempre me deu muita força e também me ajudou muito com as crianças. Quando me formei, ele me deu muita força para trabalhar fora de casa.
Eu ainda estava estudando na faculdade quando nasceu minha filha. Achava que ia ser fácil encontrar alguém para cuidar dela, mas não foi. Como eu morava longe da minha família, era impraticável ter a ajuda deles. Resolvi interromper os estudos. Logo depois nasceu nosso outro filho. Quando minha filha estava com três para quatro anos, voltei para a faculdade.
Meu marido me dizia que se eu não voltasse eu morreria. Olhava para meus livros e cadernos e chorava. Inconformada eu dizia: “Não pode ser, meu Deus, ter chegado até aqui e jogar tudo fora!” Eu não queria ser apenas mãe e dona de casa. Isso não estava em mim. Sentia que tinha outras coisas para fazer. Quando recebi uma carta da faculdade informando que eles tinham creche, as crianças já estavam no jardim de infância e pude voltar aos estudos.

3- O que você pensa do “mito do comandante”?
Na realidade todo mundo fantasia, acha que piloto ganha muito dinheiro, que tem muitas mulheres, mas as pessoas que nos conhecem de verdade não pensam assim. Elas sabem como ele realmente é. Há pessoas que alimentam essa fantasia, pois faz bem ao ego. Sempre surge algum tipo de comentário ou insinuação: “Ah, ele viaja, fica alguns dias fora...” As pessoas só olham por um lado. Eu também fico sozinha. Só que “sozinha entre aspas” porque fico com a incumbência de cuidar dos filhos e da casa.
Acompanhei toda a carreira do meu marido, estamos juntos há 18 anos, por isso foi mais fácil lidar com essas questões relacionadas ao mito do comandante. Acho que a pessoa que vive com alguém que viaja muito tem que aprender a ser independente, não pode ficar apenas esperando. Se surgem problemas, tem que resolver. Por outro lado, não pode ficar muito independente, senão, quando o marido chega, pode atrapalhar.

4- E como é quando ele retorna de viagem?
Conheço muitas esposas de tripulantes que quando o marido retorna de viagem, ele atrapalha a rotina estabelecida. Comigo, acho que sinto mais a questão da criação dos filhos, do que nas outras coisas. Quando ele chega, tudo muda. Quando eu engreno com os filhos, aí chega o marido e pai saudoso e os problemas não existem para ele. Mas eu, que já estou em casa procurando resolver os problemas, fico irritada...
Quando eu tinha o escritório de arquitetura, procurava ajeitar tudo para não atrapalhar a nossa vida. Trabalhava bastante quando meu marido estava viajando, até durante a noite, para estar mais livre quando ele chegasse. Mas também não deixava de assumir compromisso, se fosse necessário, só porque ele estava em casa. Acho que ele se orgulha do trabalho que já realizei.
Agora estou parada e fico sentindo que está faltando alguma coisa, que preciso fazer algo de novo. Ele diz que é complicado quando estou trabalhando porque entro de cabeça no trabalho, acabo absorvendo muitos problemas e ficando desgastada. Mas, por outro lado, acho que a nossa relação fica melhor do que quando fico em casa todo dia só esperando o retorno dele.

5- Quando você viaja, sente que recebe um atendimento diferenciado?
No último voo que fiz, a comissária deixou muito a desejar no atendimento porque parecia estar com a cabeça em outro lugar. Passava suco num lado do corredor e no outro não passava. Os passageiros percebem essas falhas. Não sei se sou azarada, mas raríssimas vezes fui bem atendida nas minhas viagens. Às vezes, quando vou viajar com meu marido, ele faz muitos elogios aos comissários, diz que vou fazer um ótimo voo, mas na hora não é nada daquilo. Ele, como comandante, é tratado de uma maneira, e eu, como passageira e esposa dele, sou tratada de outra maneira. Algumas vezes eu nem sei se era em relação aos passageiros, de modo geral, ou se era por eu ser a mulher do comandante.
Normalmente, eu me sinto mal por estar dentro de um avião. Quando viajo, fico quieta no meu lugar. Se os comissários me tratassem bem, como deveriam tratar todos os passageiros, eu ficaria satisfeita. Não quero ser tratada com privilégios por ser a esposa do comandante. Preferia nem ser conhecida como a esposa do comandante. Queria ser uma simples e desconhecida passageira. Não sei se é só culpa dos comissários porque tem muita mulher de comandante que usa e abusa do título. São prepotentes e tratam os comissários como empregados delas. E isso cria uma antipatia.
Percebo que muitas mulheres de comandantes se sentem o máximo porque são esposas desse ou daquele. Uma grande maioria se sente assim e são os maridos que as fazem se sentir assim. Então elas precisam ser vangloriadas. Quanto a mim, não sei se pareço prepotente por ser assim, por querer ficar na minha. Pode parecer que não quero me misturar... Enfim, não adianta o comandante fazer um excelente voo, um pouso perfeito, se os comissários não fizerem a parte deles. Dentro do avião os comissários têm uma função muito importante, mas se não a fizerem direito o voo fica comprometido e o passageiro fica insatisfeito.

6- Como você vê a mulher Comissária de Voo?
É complicado falar das comissárias de voo porque são pessoas distintas. Então, só podemos falar de uma maneira genérica. Dependendo do momento, a gente direciona o pensamento para uma coisa. Se você está vivendo um problema, como o de uma mulher que foi traída por uma comissária, vai achar que todas são umas bandidas. Quem nunca teve esse problema vai se relacionar bem com elas e achar que são legais. De maneira genérica, sinceramente, eu acho que a maioria é meio malandra.
 Antes, quando eu era recém-casada, considerava que eram apenas colegas de trabalho. Eu sempre tive meus colegas de trabalho, homens, que eram amigos. Acho que existe um relacionamento de amizade e coleguismo entre homens e mulheres que trabalham junto. Eu já vivi muito isso. Só porque um homem e uma mulher estão juntos, não significa que haja um relacionamento sexual. Mas, de modo geral, acho que a maioria das comissárias é meio malandra, por coisas que ouço e que vejo. Antes, eu não enxergava nada, todas eram coleguinhas. Mas, prestando mais atenção, começo a ver muitas coisas.
Eu já fui muito maltratada dentro do avião, por ser a mulher do comandante. Como se eu fosse a mulher que estaria atrapalhando o pernoite delas. Já senti isso muitas vezes. Fiz um voo, acompanhando a esposa de um 1º Oficial, e a comissária que estava nos atendendo era amante do 1º oficial e já tinha ficado com ele em alguns pernoites. Então, para ela, nós éramos intrusas. Embora não fosse nada com o meu marido, eu entrava no rolo.
Durante o voo ficou tão evidente que ela estava tratando a gente mal que eu fui falar com meu marido: “Você tem alguma coisa nessa história? Ela deve ser sua amante porque está me tratando muito mal, não é possível!” Aí ele me contou toda a história, que ela era amante do 1º Oficial. Pode até ser que ela fosse amante dele mesmo, pois a pessoa que quer se livrar de algum problema sempre joga a culpa em cima dos outros. Ele contou a história e eu passei a observar.
Para a comissária, éramos as inimigas, as rivais. Para aquela que está interessada e para todas que fazem isso, a mulher do comandante ou do copiloto acaba sendo sempre a rival. Já aconteceu do meu marido ter um caso com uma comissária. A nossa relação mudou e em algumas coisas acho que mudou para melhor.
Abri os olhos, pois com o tempo estava me acomodando no casamento, achava que estava tudo bem, que o relacionamento era para a vida inteira. Eu o agradava, mas sem aquele compromisso, sem aquela coisa de conquistar o tempo todo, que deve existir no casamento. Quanto a isso, houve mudanças e eu passei a rever coisas que não estava mais achando importantes. Comecei a pesar as coisas, a questionar: onde eu errei, onde nós erramos, se a culpa foi minha ou foi só dele, ou se foi da outra. Na realidade não é culpa de ninguém e é de todo mundo. A gente tem que ver dessa maneira.
Graças a Deus, não conheço pessoalmente a comissária que teve um caso com meu marido, porque aí a situação ficaria complicada para mim. Mas botando tudo na balança, o saldo foi positivo. No começo foi horroroso, porque eu achava que estava tudo bem, que o marido vivia só para mim e não era bem assim. Foi traumático e foi um péssimo período em minha vida. Pude superar razoavelmente bem porque eu estava trabalhando. Se estivesse só em casa, tinha pirado e esse problema teria acabado com meu casamento, com certeza!
Acho que por ter o meu trabalho, por estar trabalhando fora de casa, eu conseguia ver a vida de forma diferente, tinha outras referências. Quando trabalhamos fora, temos outros horizontes e podemos pesar o que vale e o que não vale. Se eu não estivesse trabalhando, depois de ter passado por esta experiência, iria me sentir insegura para manter o relacionamento. Eu estava trabalhando e sabia que podia ir à luta. Não era uma dependência financeira. Pude avaliar a situação, ver o que queria para mim e o que não queria.
Em relação às comissárias, eu já percebia algumas coisas, mas isso não me afetava. Depois dessa experiência, eu passei a ver coisas até onde não existiam. No começo, eu ficava me analisando: “Antes, eu não via nada e as coisas estavam acontecendo e agora, será que não está?” Fiquei vivendo nessa insegurança por um longo período. Hoje, não mais. Se tiver que acontecer, eu acho que ele vai ser sincero o suficiente para dizer o que aconteceu, pois isso pode acontecer com todo mundo.
Só pude me entender com ele porque compreendi que aquilo podia acontecer com qualquer um. Não sei se foi uma fraqueza, mas ele se envolveu. Ele se envolveu e pode até ter gostado da pessoa, mas acabou. Eu não ficaria com ele se achasse que o caso ia continuar. Se eu souber de outro caso, a relação acaba porque a pessoa que eu julgava poder confiar não merece mais minha confiança.

7- Como você vê a profissional Comissária de Voo?
A comissária profissional, dedicada, que cumpre com suas obrigações profissionais, quase não existe porque a maioria não é assim. A maioria entra nessa profissão para fazer turismo e muamba. Há interesses maiores, que vão além da profissão. Eu respeito aquela que cumpre a sua função, que está ali para a segurança do voo, para atender os passageiros em situação de emergência. Não a vejo como uma empregada dentro do avião. Ela zela pela segurança e conforto de todos. Acho que o seu trabalho tem que ser feito com profissionalismo e simpatia. Não é a comida que é mais importante, é o atendimento. A comida faz parte de um conforto geral para que os passageiros se sintam bem.
Minha filha já pensou em ser comissária, mas não é uma coisa que eu queira para ela. Ela queria fazer as viagens que o pai faz, mas para ser piloto teria que estudar bastante. Então pensou em ser comissária para não ter que estudar. Por este lado eu fiquei chateada com ela. Acho que precisamos lutar pelo que queremos. Ser comissária não é fazer turismo.
Se fosse uma escolha profissional eu não iria interferir, iria respeitar.  Se ela gostasse, acho que poderia se dar bem, como em qualquer outra profissão. Tem dona de casa que adora ser dona de casa e é feliz vivendo assim. O importante é estar bem consigo mesma. Acho que entrar numa profissão dessas sem um motivo sério, sem gostar do que faz, é complicado e a decepção pode ser grande.
Acho que deve ser muito complicado para uma mulher trabalhar nessa profissão, principalmente se ela for casada e tiver filhos. Como sair para trabalhar se o filho estiver doente e com febre? Ainda mais para fazer um voo e se ausentar por alguns dias. É muito mais complicado do que trabalhar todos os dias e voltar para casa todas as noites. A comissária vai viajar e carregar aquela angústia ou vai ter que se desligar de casa. Tem que se desligar, senão não consegue manter esse tipo de vida. O meu marido faz isso, senão ele não aguentaria.
Tudo depende do jeito que a comissária encara a profissão: se ela trabalha porque gosta do que faz, ou porque precisa do emprego para se sustentar, ou se é para passear. Também não deve ser nada fácil para o marido, quando ele não é da aviação. A nossa cultura ainda é muito machista. A mulher sempre tem que aguentar que o marido viaje, mas o homem quer a mulher sempre perto dele. Deve ser mais complicado. Não conheço nenhum marido de comissária para saber como é exatamente. De modo geral, acho que é complicado para os filhos e para o marido.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é bem vindo!