Ana*
Estou com 55 anos de
idade e tenho 37 anos de voo. Nasci em 1942, numa cidade do interior do estado
do Rio de Janeiro, onde sempre morei. Quando era criança, vi a imagem de uma
jovem uniformizada, numa revista, e disse para o meu pai que quando crescesse
ia ser aeromoça. Naquela época essa profissão, assim como a de manequim, era
mal vista. Meu pai, que era marceneiro e tinha nascido na Suíça, não foi contra.
Anos mais tarde, em 1959, ele leu num jornal o anúncio da empresa aérea
Cruzeiro do Sul, que estava com as inscrições abertas para candidatas a
aeromoças. Eu tinha 17 anos e ele me disse: “Te arruma porque amanhã de manhã
nós vamos para o Rio de Janeiro”.
Acredito que entrei na
aviação por causa de meu pai. Dentro da sua simplicidade, da sua humildade, ele
era uma pessoa muito querida por todos. Nós fomos até a Urca e conversamos com
Dona Dinorah, chefe das aeromoças. Eu nem abri a boca, pois era uma garota
tímida do interior. Meu pai é que falou. Disse que eu queria ser aeromoça desde
pequena e que já podia ficar ali, “de mala e cuia”. Eu era muito magrinha e
baixinha, tinha um metro e sessenta de altura. Dona Dinorah falou que eu era
muito miudinha e que se ela me botasse em um voo de DC-3 até a Bahia eu não
aguentaria. Mas meu pai disse que eu aguentaria, sim. Acho que ela simpatizou
com ele e por isso acabou me aceitando. Eu precisava da autorização dele porque
só tinha 17 anos. Seis meses depois comecei o curso.
Foi um curso todo
escrito. No início eram 40 candidatas, mas no final apenas umas cinco ou seis
se formaram. Muitas foram demitidas pela própria Dinorah, por problemas de
comportamento e falta de responsabilidade. De todo o grupo, quando chegamos ao
voo, éramos apenas três. As outras duas voaram uns três anos e foram embora. Eu
acabei fazendo amizade com a Dinorah, pois ela gostava do meu pai, que era
muito grato a ela por me ter dado o emprego. A Dinorah foi chefe vitalícia das
Comissárias de Voo até a Varig absorver a Cruzeiro do Sul. Tinha muita
experiência e era quem escolhia as candidatas. Faleceu no ano passado (1996).
Início da vida profissional
No início, a vida no Rio de janeiro foi barra pesada. Eu não conhecia
ninguém e fui morar num pensionato de freiras, em Santa Tereza. Quando meu pai
me deixou, para começar o curso de aeromoça, e aquele portão se fechou, parecia
que o meu mundo tinha acabado. Chorei muito, mas acabei me afeiçoando às
freiras e elas a mim. Nos voos que chegavam depois das 10 horas da noite, a
tripulação me levava até em casa. Depois de um ano, as freiras me deram a chave
do portão para poder entrar e sair do pensionato. Os comandantes, com quem eu
voava, me acompanharam até eu ser transferida para trabalhar no Airbus.
Comecei voando Catalina
nos voos que iam para Manaus. Mesmo sendo voo cargueiro, tinha que ter uma
comissária na tripulação. Naquela época, a proporção de mulheres na profissão
era bem maior. Um dia desses, eu estava indo para Porto Alegre, para assumir o
voo para Nova York, quando, de repente, no ônibus que ia para o aeroporto,
encontrei um comandante que tinha se aposentado há mais de 20 anos. Ele falou
que a Rita, que tinha sido minha instrutora, estava morando em São Leopoldo.
No primeiro voo que fiz
com ela, que foi escolhida pela Dinorah para me dar instrução, acabei passando
mal e ela me dizia: “Vá ao toalete, bota o dedo na goela, vomita bastante e
volta que as bandejas estão te esperando”. Aí eu saía do banheiro quase
morrendo e ela já me dava seis ou sete bandejas para servir os passageiros. E
foi assim que fui me acostumando com as viagens. Com o tempo a Rita se tornou
uma grande amiga.
O comandante Caetano,
quando chegou a Porto Alegre, ligou para São Leopoldo avisando que eu estava no
hotel. Rita foi até lá conversar comigo. Estava bonitona, até mais do que nas
lembranças que eu tinha.
Antigamente as bandejas
com as refeições eram muito mais pesadas. Hoje é tudo mais prático, com os
carrinhos levando as bebidas; antes eram garrafinhas servidas nas próprias
bandejas. Hoje em dia, tudo está melhor, com a regulamentação da profissão e
com os hotéis quatro estrelas. Está muito bom para aqueles que estão começando.
Antigamente, ficávamos em casa de pernoite e nem sempre tinha quarto para todo
mundo. Às vezes, tínhamos que dormir em rede, mas nunca me adaptei com isso,
principalmente nos voos para o norte e nordeste do Brasil.
Naquela época a
profissão não era regulamentada; sabíamos o dia da ida, mas não sabíamos o dia
da volta. A viagem podia demorar mais de 10 dias. Na Bahia o pernoite era
melhor, pois ficávamos em uma casa na praia. Tinha colega que levava violão. Os
voos também não eram frequentes e muitas vezes voltávamos em voos cargueiros.
Saíamos para comer onde o gerente do aeroporto decidisse e só assinávamos a
nota. Nunca comi tanta lagosta como naquela época. A empresa pagava água
mineral e os tripulantes bebiam cerveja, mas assinavam notas de água mineral.
No DC-3 eram três
comissários, no Convair eram quatro. A tripulação técnica tinha seus esquemas.
Lembro-me dos voos para Belém. A tripulação comprava sacos de sandálias
havaianas, perfumes Bond Street, uísque Cavalo Branco e levávamos escondido e
depois entregávamos nas cidades para onde íamos. Também levávamos legumes e
verduras para Manaus, batatas para Cuiabá...
Trabalhei durante uns
dois meses até ganhar o meu dinheiro, que seria o giro de capital, e passei a
participar das compras com eles e ter meu lucro. Com esse dinheiro fui
comprando coisas na minha cidade. Tinha a fazenda da minha mãe, que foi vendida
por necessidade e eu fui comprando a terra de volta. Eu também ajudava muito a
minha família. Sobrava pouca coisa para mim. Eu me preocupava mais com as
nossas necessidades do que com as novidades que eu via nas vitrines. Acho que
herdei isso do meu pai, que sempre lutou com muita dificuldade.
Relacionamento com colegas
Os colegas me achavam
caipira e se aproveitavam deixando o serviço mais pesado para mim. Eles
abusavam, faziam brincadeiras de mau gosto. Eu ficava sentida, chateada, mas
Deus esteve sempre comigo, pois também tinha muita gente boa do meu lado.
Um dia, as brincadeiras
de mau gosto chegaram aos ouvidos do diretor, que me chamou e falou: “A partir
de hoje, vai ter uma tripulação (técnica) fixa para voar com você. Mas o
pessoal também reclama, diz que você fica lendo revista do Bolinha, da
Luluzinha, em vez de ir conferir o material.” Aí eu disse que depois que eu
fazia a conferência eles conferiam de novo. Então eu achei melhor deixar a
conferência com eles. Por fim, ele falou: “Mas agora você não vai mais ler
revistas e vai fazer a sua parte. Quando mudar de equipamento, vai fazer isso,
isso e isso, e se tiver algum problema pode vir falar comigo.” Ele foi uma
espécie de meu protetor.
Problemas com passageiros e colegas
Problema com passageiro só tive uma vez e sem muita importância. Com os
colegas foram raros. Recentemente fui destratada por um deles. Quando eu
trabalhava na Cruzeiro do Sul, tive um colega que era muito folgado. Na hora do
embarque dos passageiros ele ficava sentado lendo jornal. Durante o voo, ele
entrava no banheiro para tomar cerveja. Ninguém é perfeito e cada um tem suas
manias, mas ele era terrível! Não ajudava a acomodar as bagagens dos
passageiros, não atendia quando eles tocavam a campainha. Um dia eu perdi a
paciência. Fui ao banheiro, abri a lixeira e vi muitas latas de cerveja. Aí fui
conversar com ele: “Sei que você não gosta de mim; eu também não gosto de você,
e acho você um péssimo comissário. Aqui eu sou chefe e você é auxiliar. Se eu
fosse você não enfiaria a mão em buraco de tatu. Hoje, eu pedi por interfone
para você atender uns passageiros e você continuou lendo. Além disso, tomou
muita cerveja. Então, se você não quer confusão, é melhor andar certinho porque
eu posso te reportar”.
Pensei em fazer o
reporte, mas depois fui para casa e achei que era melhor deixar pra lá. Outros
iriam fazer isso porque ele estava passando dos limites. Uns 15 dias depois,
voei com ele novamente e ele veio me perguntar se eu tinha feito o reporte.
Respondi que não, que tinha achado melhor lhe dar uma segunda chance. A partir
desse dia ele nunca mais me deu problemas. Não bebeu, fez tudo direitinho. Mas,
alguns anos depois, encontrei-o no CEMAL e vi que ele não estava nada bem,
estava nervoso, agitado, retornava de uma licença médica. Tanto a empresa
quanto o CEMAL o estavam segurando. O problema era de família: tinha casado com
uma mulher muito nova e acabou dando um tiro na cabeça. Deixou uma carta para a
filha, pedindo perdão. Ele não estava de bem com a vida...
Casamento, gravidez, atividades
paralelas
Para dizer a verdade, só
tive dois namorados na minha vida. O primeiro foi meu marido atual, com quem
briguei. Depois arranjei o segundo, com quem briguei e voltei para o primeiro.
Então nos casamos. Meu marido era do Rio de Janeiro e foi morar no interior, para
cuidar da nossa fazenda. Mais tarde ele voltou a estudar e se formou em
Direito. Ninguém sabia que eu era casada, pois naquela época as aeromoças não
podiam casar. Só registrei o meu casamento na empresa quando a minha filha
nasceu.
Minha filha tem 19 anos.
Lembro que fiquei grávida numa situação muito difícil. Meu marido estava
estudando e eu tinha comprado terras e tinha muitas promissórias para pagar. Eu
não podia parar de trabalhar, por isso voei até o oitavo mês de gravidez. Deus,
mais uma vez, foi muito bom para mim. Eu tinha uma barriguinha pequena e
carregava muito peso naquela época. Trazia rádios toca-fitas de Manaus. Fazia
uns três voos por mês para lá e abastecia minha cidade com esses rádios.
Fazia um voo muito cansativo - Rio, Cuiabá,
Campo Grande, Manaus - que ninguém queria fazer. Lá em Manaus a gente conhecia
uma loja que nos vendia fiado. A
gente pegava uns dez rádios toca-fitas, trazia e vendia e ia pagando e pegando
mais. Assim pude pagar as promissórias e ficar três meses de licença quando a
minha filha nasceu. Foi a necessidade que me obrigou a fazer isso. Eu usava uma
cinta para segurar a barriga e graças a Deus deu tudo certo. Hoje tenho uma
filha perfeita, ótima. Na empresa foi uma bomba quando souberam que eu estava
grávida, pois ninguém sabia nem imaginava. O médico da empresa quase teve um
infarto. Voei com carteira vencida, pois se fosse renová-la o pessoal da
Aeronáutica iria me segurar, pois descobririam que eu estava grávida. Fiquei na
minha e, no final, levei uns esculachos do pessoal da empresa e também do
CEMAL.
Maternidade
Nunca me preocupei com a
criação da minha filha porque vivia no meio de parentes. As nossas casas eram
todas próximas, umas junto das outras, que até os quintais se interligavam.
Tinha minha mãe, minhas tias e outros parentes. No interior é tudo diferente.
Eu viajava e tinha muita gente para tomar conta da minha filha. Eu podia passar
muitos dias fora sem me preocupar, pois sabia que ela estava sempre bem. Meu
marido estudava, tomava conta da nossa fazenda, do gado, dos empregados. Até a
minha filha nascer a gente morava na fazenda, mas depois fiz uma casa na cidade,
perto da minha mãe e dos outros familiares. Meu marido estava se formando e
passou a dar aulas de Direito Penal na Faculdade, pois sempre foi um dos
melhores alunos. Depois disso deixamos de plantar, de produzir e ficamos só com
o gado, do qual os empregados tomavam conta.
Vida familiar X vida profissional
Se olharmos para os
lados, vemos as pessoas trabalhando de segunda a segunda... Toda vez que estou
no ônibus, indo para minha cidade, vejo o pessoal que trabalha de manhã até à
noite. No final da tarde, eles entram no ônibus e ficam lá sentadinhos, e a
vida toda é assim para eles. Se formos comparar a vida deles com a nossa vida,
eu me sinto privilegiada. Temos várias folgas. Às vezes, a Escala de Voo
aperta, mas outras vezes temos vários dias de folga. O que dificulta a nossa
vida são os problemas de família, quando temos que nos ausentar de casa.
Com os filhos você ainda
pode ter uma pessoa de confiança, a mãe, a avó, uma tia, mas quanto ao marido,
ele precisa ter uma cabeça muito boa, senão acaba não dando certo. Nos nossos
35 anos de casados, só uma vez tivemos um desconforto. Em 1986, eu ainda não
era aposentada pelo INSS e ele arranjou uma namoradinha. Chegou e disse que eu
tinha que escolher entre ele e o trabalho. Aí eu pensei e disse: “Tenho que
ficar com o trabalho, pois trabalhei a vida toda e agora, perto de me
aposentar, tenho que fazer uma opção dessas?! Foi o trabalho que me deu o
sustento a vida toda”.
Então, com o marido, você está bem e de repente não está bem, ainda
mais quando ele se envolve com outra pessoa. Você pode acabar ficando sem
marido e sem emprego. Nessas horas, temos que deixar o coração de lado. Lembro
que naquela ocasião eu optei pelo trabalho.
Ele continuou com a amante por algum tempo. Na cidade todo mundo sabia
de tudo e eu sofri muito, mas não voltei atrás e pensei: agora é que preciso do
emprego!
É uma situação muito difícil porque você perde
o sossego e vai trabalhar com a mente e o coração atrapalhados. Não nos
separamos, mas ele voltava tarde para casa e eu sabia que ele estava saindo com
a outra. Pensava que não ia aguentar, ficava pensando nos prós e contras, foi
uma barra! Sofri muito! Mas sei que ninguém é perfeito. Eu tinha uma vida toda
organizada e se tivesse me separado estaria sozinha até hoje. Nunca me
interessei por outras pessoas, tinha outras coisas para olhar e fazer.
O nosso relacionamento
nunca mais foi o mesmo. É como uma peça de cristal, quando quebra um pedacinho
podemos colar, mas nunca mais vai ser a mesma coisa. Então aprendemos que até
nas decepções tiramos proveito, quando conseguimos superar o sofrimento. Antes
desse episódio, era Deus no céu e meu marido na terra. Depois, eu comecei a
cuidar dos meus negócios, da fazenda, dos empregados, da contabilidade. Senti
que não podia contar com ele. O que eu sabia fazer eu fiz, o que não podia,
pedi ajuda às pessoas amigas e de confiança. Ele se desinteressou de tudo o que
envolvia dinheiro e negócios meus.
Quando tudo voltou ao
normal, eu descobri que o santo é de barro. E aprendi a fazer as coisas, a ter
mais autonomia. Se isso acontecesse novamente, eu ia continuar a viver e respirar
normalmente. Aprendi a respirar e viver sem ele. Antes eu achava que sem ele eu
morreria. Minha filha era pequena e eu passei a me dedicar mais a ela. Primeiro
vinha o trabalho que me dava o sustento, depois minha filha e ele ficou em
terceiro lugar. Inverti as posições.
Acho que herdei do meu
pai essa responsabilidade. Nunca faltei ao trabalho, nunca pedi substituto, até
mesmo quando tive uma perda imensa, quando um sobrinho, criado por mim, foi
assassinado. Após o enterro fui fazer o voo de Amsterdam. Quando perdi meu pai
eu estava no México. Deus é pai e sabe o que faz. Eu não queria ver meu pai
sofrendo, inválido em cima de uma cama. Meu pai viveu 94 anos, sempre
trabalhando, e acho que Deus foi muito bom para ele.
Minha mãe tem 90 anos e ainda trabalha; ela faz tudo. Minha irmã fica
com ela, é sua ajudante, mas ela é independente. Levanta cedo e vai cuidar da
bicharada no quintal. Leva umas três horas só para tratar da bicharada. Dos
passarinhos aos pintinhos. Depois vai juntar as folhas que caem das árvores
frutíferas. Às vezes, eu vou lá e encontro ela toda tortinha, mas não ajudo
porque essa é a terapia dela. Aí ela vai tomar café, por volta das 10 horas da
manhã.
Depois, ela vai para a
cozinha porque os netos, que já são velhos, gostam de ir lá comer a comida da
vovó, feita em panelas de ferro. Minha prima, que nunca trabalhou, ficou com a
função de cuidar de meus pais, ajudar minha mãe a descascar os legumes e outras
coisas. Minha mãe só não faz a faxina, mas a casa é pequena. Já a minha casa é
quase três vezes maior e eu preciso de dois dias para limpá-la. A minha irmã
ajuda fazendo as coisas da rua, pagamentos, compras, etc. Eu gosto de ficar em
casa e há dias que nem para comer eu saio; então o meu marido vai almoçar e
traz comida para mim.
Voos internacionais
Eu e mais cinco colegas
da antiga Cruzeiro, que viemos para a Varig na mesma época, já estávamos
aposentados pelo INSS, mas precisávamos cumprir o tempo para a aposentadoria
pelo AERUS. Éramos Chefe de Equipe nos voos nacionais e queríamos abrir mão do
cargo para voar em aviões maiores e assim fazer voos internacionais. Fomos
falar com o nosso diretor, Sr. Sérgio Prates, e ele atendeu ao nosso pedido.
Então fomos trabalhar no DC-10. Depois de uns três anos, a Chefia fez um
remanejamento e todos os comissários, vindos da Cruzeiro do Sul, tiveram a
oportunidade de fazer voos internacionais.
A oportunidade de viajar
para fora do Brasil, conhecer outras culturas e também levar alguns familiares
junto, foi uma experiência fantástica! Na Cruzeiro do Sul não era tão fácil conseguir
passagens para os familiares. O diretor fazia o maior mistério, havia a maior
dificuldade. Só comecei a usar as passagens GC (condicional grátis) depois que
vim para a Varig. Viajei muitas vezes com meu marido e minha filha e assim eu
me senti muito recompensada.
Amizades, vida social
Não vejo as pessoas se
tornando amigas aqui na Varig, só vejo interesse e individualismo. Fico muito
triste com isso. Estou acostumada a fazer amizades, não poupo esforços para
ajudar os outros e raramente tenho problemas com os colegas. Mas alguns colegas
reclamaram de mim. Trabalho e procuro fazer bem o meu serviço, trato todos bem
e acho que isso é o essencial.
Em termos de vida social, eu não gosto muito de sair e meu marido
também não liga muito. Participamos de algumas reuniões, em feriados, com a
família ou amigos, ou algum casamento de conhecidos. Durante esses anos todos,
fiz amizade com muitos passageiros: um casal de amigos portugueses, amigos em
Belém, em Recife e em outros lugares. Quando posso, vou visitá-los.
Na aviação surgem muitas
oportunidades de fazer amizade, principalmente com pessoas de mais idade. Eu
sempre procuro ajudar, carrego as bagagens, ajudo-as a sair do avião. Em geral
os comissários não têm muita paciência com eles, mas eu os vejo como se fossem
meus pais e sei das necessidades que têm. No voo para o Porto tem muita gente
de mais idade. Eu já recebi centenas de cartões de passageiros.
Solidão na aviação
Eu achava que não
existia solidão na aviação, mas voando com duas colegas, recentemente, percebi
que as duas estavam entrando numa depressão profunda. Eu até fiquei com vontade
de voar fixo com elas porque acho que posso ajudar. Cada um tem seus problemas
e nem sempre consegue sair deles sem ajuda. As duas eram da antiga Cruzeiro do
Sul e são novas nessa aeronave. Uma delas era chefe de equipe e abriu mão do
cargo para voar nas linhas internacionais e conhecer outros lugares.
No trabalho ela está
tendo problemas com os colegas, pois não é bonita e os colegas não a tratam
bem, acham que ela é esquisita. Ela tem os dentes saltados, pintou o cabelo de
preto, muito escuro, que não combina com a pele. Um colega nosso, que também
era da Cruzeiro, voou com ela recentemente e disse que ela se sente muito
isolada pelos colegas da tripulação. Ele chegou a interceder por ela e no final
do voo ela pediu para sair com ele no pernoite, pois não conhecia nada e ele
ficou de ligar mais tarde. Mas ele é muito dorminhoco e acabou dormindo até o
dia seguinte. Ela acabou tendo que sair sozinha, pois ninguém a chamou para
sair junto.
Aposentadoria
A aposentadoria só
deveria acontecer quando a pessoa não tivesse mais pique, quando ela quisesse
sair. Esse não é o meu caso e isso me machuca muito, pois vejo meus colegas bem
mais jovens quase morrendo em pé. Também vejo, e até invejo, as comissárias das
companhias norte americanas. Elas podem se aposentar com muito mais idade. Fiz
um voo com uma comissária da Delta Air Lines. Ela tinha 68 anos e mais pique do
que eu e ainda preferia trabalhar na cabine econômica.
Fiquei até assustada porque a mulher estava me passando para trás! Ela
era elétrica lá na cabine econômica, enquanto os nossos colegas pareciam estar
morrendo em pé. Para mim é uma injustiça ter que sair aos 55 anos, mas sei que
há colegas nossas, bem mais novas, que já não aguentam mais. Já tive chance de
conversar com quatro colegas que estavam se aposentando e que não viam a hora
de sair. Eles diziam: “Graças a Deus, vou sair disso aqui”! Depois de uns
meses, depois de descansarem e sossegarem um pouco, eles caem na real e sobram
as horas do dia com as quais eles não sabem o que fazer. Esse pessoal que não
arruma alguma coisa para fazer além do trabalho, não tem motivação para nada e
acaba morrendo antes do tempo.
Planos para o futuro
Um dos meus objetivos é
ver minha filha empregada, porque a onda de desemprego que tem por aí é grande.
Depois que temos filhos vivemos em função deles e nos preocupamos com o futuro
deles. Então percebemos que as coisas não são fáceis; vemos quantos chefes de
família e jovens estão desempregados. Quando paramos, querendo ou não, nosso
ritmo de vida e até a nossa situação financeira muda. Não vou ter o caixa dois
que são as diárias e as encomendinhas. Minha filha ainda está fazendo Faculdade
e eu só queria sair vendo-a formada e trabalhando. Tenho uma reserva, mas pode
acontecer um imprevisto e não quero ficar sem dinheiro. Eu queria que ela fosse
comissária e ela também quer. Está fazendo faculdade enquanto espera a
oportunidade.
Meus pais são longevos e
já me disseram, lendo as linhas da minha mão, que eu vou ter vida longa. Então,
quando eu sair da aviação, vou arrumar um emprego qualquer, porque eu sou muito
ativa e o dia de 24 horas é muito pouco para mim. Levanto cedo e só vou deitar
depois da meia noite. Estou sempre ocupada fazendo alguma coisa.
Minha casa é enorme e eu
não tenho empregada nem quero. Tenho uma pessoa que me ajuda, mas eu trabalho
mais do que ela. Deixei de cozinhar porque não gosto de ficar na frente do
fogão e também porque nem sempre a comida fica como eu gostaria. É bem mais
fácil comer fora, onde a gente pode escolher à vontade. É só atravessar a rua e
tem um restaurante por quilo. Então, dei meu grito de liberdade.
Se tivesse que
recomeçar, faria tudo de novo. Sinto-me realizada e só lastimo ter que sair da
aviação aos 55 anos.
*Ana (pseudônimo) se aposentou em 1997, aos 55
anos, com 37 de voo. Entrevista concedida no Rio de Janeiro, em 1997.
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