quarta-feira, 18 de junho de 2014

Ana

Ana*

Estou com 55 anos de idade e tenho 37 anos de voo. Nasci em 1942, numa cidade do interior do estado do Rio de Janeiro, onde sempre morei. Quando era criança, vi a imagem de uma jovem uniformizada, numa revista, e disse para o meu pai que quando crescesse ia ser aeromoça. Naquela época essa profissão, assim como a de manequim, era mal vista. Meu pai, que era marceneiro e tinha nascido na Suíça, não foi contra. Anos mais tarde, em 1959, ele leu num jornal o anúncio da empresa aérea Cruzeiro do Sul, que estava com as inscrições abertas para candidatas a aeromoças. Eu tinha 17 anos e ele me disse: “Te arruma porque amanhã de manhã nós vamos para o Rio de Janeiro”.
Acredito que entrei na aviação por causa de meu pai. Dentro da sua simplicidade, da sua humildade, ele era uma pessoa muito querida por todos. Nós fomos até a Urca e conversamos com Dona Dinorah, chefe das aeromoças. Eu nem abri a boca, pois era uma garota tímida do interior. Meu pai é que falou. Disse que eu queria ser aeromoça desde pequena e que já podia ficar ali, “de mala e cuia”. Eu era muito magrinha e baixinha, tinha um metro e sessenta de altura. Dona Dinorah falou que eu era muito miudinha e que se ela me botasse em um voo de DC-3 até a Bahia eu não aguentaria. Mas meu pai disse que eu aguentaria, sim. Acho que ela simpatizou com ele e por isso acabou me aceitando. Eu precisava da autorização dele porque só tinha 17 anos. Seis meses depois comecei o curso.
Foi um curso todo escrito. No início eram 40 candidatas, mas no final apenas umas cinco ou seis se formaram. Muitas foram demitidas pela própria Dinorah, por problemas de comportamento e falta de responsabilidade. De todo o grupo, quando chegamos ao voo, éramos apenas três. As outras duas voaram uns três anos e foram embora. Eu acabei fazendo amizade com a Dinorah, pois ela gostava do meu pai, que era muito grato a ela por me ter dado o emprego. A Dinorah foi chefe vitalícia das Comissárias de Voo até a Varig absorver a Cruzeiro do Sul. Tinha muita experiência e era quem escolhia as candidatas. Faleceu no ano passado (1996).

Início da vida profissional
No início, a vida no Rio de janeiro foi barra pesada. Eu não conhecia ninguém e fui morar num pensionato de freiras, em Santa Tereza. Quando meu pai me deixou, para começar o curso de aeromoça, e aquele portão se fechou, parecia que o meu mundo tinha acabado. Chorei muito, mas acabei me afeiçoando às freiras e elas a mim. Nos voos que chegavam depois das 10 horas da noite, a tripulação me levava até em casa. Depois de um ano, as freiras me deram a chave do portão para poder entrar e sair do pensionato. Os comandantes, com quem eu voava, me acompanharam até eu ser transferida para trabalhar no Airbus.
Comecei voando Catalina nos voos que iam para Manaus. Mesmo sendo voo cargueiro, tinha que ter uma comissária na tripulação. Naquela época, a proporção de mulheres na profissão era bem maior. Um dia desses, eu estava indo para Porto Alegre, para assumir o voo para Nova York, quando, de repente, no ônibus que ia para o aeroporto, encontrei um comandante que tinha se aposentado há mais de 20 anos. Ele falou que a Rita, que tinha sido minha instrutora, estava morando em São Leopoldo.
No primeiro voo que fiz com ela, que foi escolhida pela Dinorah para me dar instrução, acabei passando mal e ela me dizia: “Vá ao toalete, bota o dedo na goela, vomita bastante e volta que as bandejas estão te esperando”. Aí eu saía do banheiro quase morrendo e ela já me dava seis ou sete bandejas para servir os passageiros. E foi assim que fui me acostumando com as viagens. Com o tempo a Rita se tornou uma grande amiga.
O comandante Caetano, quando chegou a Porto Alegre, ligou para São Leopoldo avisando que eu estava no hotel. Rita foi até lá conversar comigo. Estava bonitona, até mais do que nas lembranças que eu tinha.
Antigamente as bandejas com as refeições eram muito mais pesadas. Hoje é tudo mais prático, com os carrinhos levando as bebidas; antes eram garrafinhas servidas nas próprias bandejas. Hoje em dia, tudo está melhor, com a regulamentação da profissão e com os hotéis quatro estrelas. Está muito bom para aqueles que estão começando. Antigamente, ficávamos em casa de pernoite e nem sempre tinha quarto para todo mundo. Às vezes, tínhamos que dormir em rede, mas nunca me adaptei com isso, principalmente nos voos para o norte e nordeste do Brasil.
Naquela época a profissão não era regulamentada; sabíamos o dia da ida, mas não sabíamos o dia da volta. A viagem podia demorar mais de 10 dias. Na Bahia o pernoite era melhor, pois ficávamos em uma casa na praia. Tinha colega que levava violão. Os voos também não eram frequentes e muitas vezes voltávamos em voos cargueiros. Saíamos para comer onde o gerente do aeroporto decidisse e só assinávamos a nota. Nunca comi tanta lagosta como naquela época. A empresa pagava água mineral e os tripulantes bebiam cerveja, mas assinavam notas de água mineral.
No DC-3 eram três comissários, no Convair eram quatro. A tripulação técnica tinha seus esquemas. Lembro-me dos voos para Belém. A tripulação comprava sacos de sandálias havaianas, perfumes Bond Street, uísque Cavalo Branco e levávamos escondido e depois entregávamos nas cidades para onde íamos. Também levávamos legumes e verduras para Manaus, batatas para Cuiabá...
Trabalhei durante uns dois meses até ganhar o meu dinheiro, que seria o giro de capital, e passei a participar das compras com eles e ter meu lucro. Com esse dinheiro fui comprando coisas na minha cidade. Tinha a fazenda da minha mãe, que foi vendida por necessidade e eu fui comprando a terra de volta. Eu também ajudava muito a minha família. Sobrava pouca coisa para mim. Eu me preocupava mais com as nossas necessidades do que com as novidades que eu via nas vitrines. Acho que herdei isso do meu pai, que sempre lutou com muita dificuldade.

Relacionamento com colegas
Os colegas me achavam caipira e se aproveitavam deixando o serviço mais pesado para mim. Eles abusavam, faziam brincadeiras de mau gosto. Eu ficava sentida, chateada, mas Deus esteve sempre comigo, pois também tinha muita gente boa do meu lado.
Um dia, as brincadeiras de mau gosto chegaram aos ouvidos do diretor, que me chamou e falou: “A partir de hoje, vai ter uma tripulação (técnica) fixa para voar com você. Mas o pessoal também reclama, diz que você fica lendo revista do Bolinha, da Luluzinha, em vez de ir conferir o material.” Aí eu disse que depois que eu fazia a conferência eles conferiam de novo. Então eu achei melhor deixar a conferência com eles. Por fim, ele falou: “Mas agora você não vai mais ler revistas e vai fazer a sua parte. Quando mudar de equipamento, vai fazer isso, isso e isso, e se tiver algum problema pode vir falar comigo.” Ele foi uma espécie de meu protetor.
Problemas com passageiros e colegas
Problema com passageiro só tive uma vez e sem muita importância. Com os colegas foram raros. Recentemente fui destratada por um deles. Quando eu trabalhava na Cruzeiro do Sul, tive um colega que era muito folgado. Na hora do embarque dos passageiros ele ficava sentado lendo jornal. Durante o voo, ele entrava no banheiro para tomar cerveja. Ninguém é perfeito e cada um tem suas manias, mas ele era terrível! Não ajudava a acomodar as bagagens dos passageiros, não atendia quando eles tocavam a campainha. Um dia eu perdi a paciência. Fui ao banheiro, abri a lixeira e vi muitas latas de cerveja. Aí fui conversar com ele: “Sei que você não gosta de mim; eu também não gosto de você, e acho você um péssimo comissário. Aqui eu sou chefe e você é auxiliar. Se eu fosse você não enfiaria a mão em buraco de tatu. Hoje, eu pedi por interfone para você atender uns passageiros e você continuou lendo. Além disso, tomou muita cerveja. Então, se você não quer confusão, é melhor andar certinho porque eu posso te reportar”.
Pensei em fazer o reporte, mas depois fui para casa e achei que era melhor deixar pra lá. Outros iriam fazer isso porque ele estava passando dos limites. Uns 15 dias depois, voei com ele novamente e ele veio me perguntar se eu tinha feito o reporte. Respondi que não, que tinha achado melhor lhe dar uma segunda chance. A partir desse dia ele nunca mais me deu problemas. Não bebeu, fez tudo direitinho. Mas, alguns anos depois, encontrei-o no CEMAL e vi que ele não estava nada bem, estava nervoso, agitado, retornava de uma licença médica. Tanto a empresa quanto o CEMAL o estavam segurando. O problema era de família: tinha casado com uma mulher muito nova e acabou dando um tiro na cabeça. Deixou uma carta para a filha, pedindo perdão. Ele não estava de bem com a vida...

Casamento, gravidez, atividades paralelas
Para dizer a verdade, só tive dois namorados na minha vida. O primeiro foi meu marido atual, com quem briguei. Depois arranjei o segundo, com quem briguei e voltei para o primeiro. Então nos casamos. Meu marido era do Rio de Janeiro e foi morar no interior, para cuidar da nossa fazenda. Mais tarde ele voltou a estudar e se formou em Direito. Ninguém sabia que eu era casada, pois naquela época as aeromoças não podiam casar. Só registrei o meu casamento na empresa quando a minha filha nasceu.
Minha filha tem 19 anos. Lembro que fiquei grávida numa situação muito difícil. Meu marido estava estudando e eu tinha comprado terras e tinha muitas promissórias para pagar. Eu não podia parar de trabalhar, por isso voei até o oitavo mês de gravidez. Deus, mais uma vez, foi muito bom para mim. Eu tinha uma barriguinha pequena e carregava muito peso naquela época. Trazia rádios toca-fitas de Manaus. Fazia uns três voos por mês para lá e abastecia minha cidade com esses rádios.
Fazia um voo muito cansativo - Rio, Cuiabá, Campo Grande, Manaus - que ninguém queria fazer. Lá em Manaus a gente conhecia uma loja que nos vendia fiado. A gente pegava uns dez rádios toca-fitas, trazia e vendia e ia pagando e pegando mais. Assim pude pagar as promissórias e ficar três meses de licença quando a minha filha nasceu. Foi a necessidade que me obrigou a fazer isso. Eu usava uma cinta para segurar a barriga e graças a Deus deu tudo certo. Hoje tenho uma filha perfeita, ótima. Na empresa foi uma bomba quando souberam que eu estava grávida, pois ninguém sabia nem imaginava. O médico da empresa quase teve um infarto. Voei com carteira vencida, pois se fosse renová-la o pessoal da Aeronáutica iria me segurar, pois descobririam que eu estava grávida. Fiquei na minha e, no final, levei uns esculachos do pessoal da empresa e também do CEMAL.

Maternidade
Nunca me preocupei com a criação da minha filha porque vivia no meio de parentes. As nossas casas eram todas próximas, umas junto das outras, que até os quintais se interligavam. Tinha minha mãe, minhas tias e outros parentes. No interior é tudo diferente. Eu viajava e tinha muita gente para tomar conta da minha filha. Eu podia passar muitos dias fora sem me preocupar, pois sabia que ela estava sempre bem. Meu marido estudava, tomava conta da nossa fazenda, do gado, dos empregados. Até a minha filha nascer a gente morava na fazenda, mas depois fiz uma casa na cidade, perto da minha mãe e dos outros familiares. Meu marido estava se formando e passou a dar aulas de Direito Penal na Faculdade, pois sempre foi um dos melhores alunos. Depois disso deixamos de plantar, de produzir e ficamos só com o gado, do qual os empregados tomavam conta.

Vida familiar X vida profissional
Se olharmos para os lados, vemos as pessoas trabalhando de segunda a segunda... Toda vez que estou no ônibus, indo para minha cidade, vejo o pessoal que trabalha de manhã até à noite. No final da tarde, eles entram no ônibus e ficam lá sentadinhos, e a vida toda é assim para eles. Se formos comparar a vida deles com a nossa vida, eu me sinto privilegiada. Temos várias folgas. Às vezes, a Escala de Voo aperta, mas outras vezes temos vários dias de folga. O que dificulta a nossa vida são os problemas de família, quando temos que nos ausentar de casa.
Com os filhos você ainda pode ter uma pessoa de confiança, a mãe, a avó, uma tia, mas quanto ao marido, ele precisa ter uma cabeça muito boa, senão acaba não dando certo. Nos nossos 35 anos de casados, só uma vez tivemos um desconforto. Em 1986, eu ainda não era aposentada pelo INSS e ele arranjou uma namoradinha. Chegou e disse que eu tinha que escolher entre ele e o trabalho. Aí eu pensei e disse: “Tenho que ficar com o trabalho, pois trabalhei a vida toda e agora, perto de me aposentar, tenho que fazer uma opção dessas?! Foi o trabalho que me deu o sustento a vida toda”.
Então, com o marido, você está bem e de repente não está bem, ainda mais quando ele se envolve com outra pessoa. Você pode acabar ficando sem marido e sem emprego. Nessas horas, temos que deixar o coração de lado. Lembro que naquela ocasião eu optei pelo trabalho.  Ele continuou com a amante por algum tempo. Na cidade todo mundo sabia de tudo e eu sofri muito, mas não voltei atrás e pensei: agora é que preciso do emprego!
 É uma situação muito difícil porque você perde o sossego e vai trabalhar com a mente e o coração atrapalhados. Não nos separamos, mas ele voltava tarde para casa e eu sabia que ele estava saindo com a outra. Pensava que não ia aguentar, ficava pensando nos prós e contras, foi uma barra! Sofri muito! Mas sei que ninguém é perfeito. Eu tinha uma vida toda organizada e se tivesse me separado estaria sozinha até hoje. Nunca me interessei por outras pessoas, tinha outras coisas para olhar e fazer.
O nosso relacionamento nunca mais foi o mesmo. É como uma peça de cristal, quando quebra um pedacinho podemos colar, mas nunca mais vai ser a mesma coisa. Então aprendemos que até nas decepções tiramos proveito, quando conseguimos superar o sofrimento. Antes desse episódio, era Deus no céu e meu marido na terra. Depois, eu comecei a cuidar dos meus negócios, da fazenda, dos empregados, da contabilidade. Senti que não podia contar com ele. O que eu sabia fazer eu fiz, o que não podia, pedi ajuda às pessoas amigas e de confiança. Ele se desinteressou de tudo o que envolvia dinheiro e negócios meus.
Quando tudo voltou ao normal, eu descobri que o santo é de barro. E aprendi a fazer as coisas, a ter mais autonomia. Se isso acontecesse novamente, eu ia continuar a viver e respirar normalmente. Aprendi a respirar e viver sem ele. Antes eu achava que sem ele eu morreria. Minha filha era pequena e eu passei a me dedicar mais a ela. Primeiro vinha o trabalho que me dava o sustento, depois minha filha e ele ficou em terceiro lugar. Inverti as posições.
Acho que herdei do meu pai essa responsabilidade. Nunca faltei ao trabalho, nunca pedi substituto, até mesmo quando tive uma perda imensa, quando um sobrinho, criado por mim, foi assassinado. Após o enterro fui fazer o voo de Amsterdam. Quando perdi meu pai eu estava no México. Deus é pai e sabe o que faz. Eu não queria ver meu pai sofrendo, inválido em cima de uma cama. Meu pai viveu 94 anos, sempre trabalhando, e acho que Deus foi muito bom para ele.
Minha mãe tem 90 anos e ainda trabalha; ela faz tudo. Minha irmã fica com ela, é sua ajudante, mas ela é independente. Levanta cedo e vai cuidar da bicharada no quintal. Leva umas três horas só para tratar da bicharada. Dos passarinhos aos pintinhos. Depois vai juntar as folhas que caem das árvores frutíferas. Às vezes, eu vou lá e encontro ela toda tortinha, mas não ajudo porque essa é a terapia dela. Aí ela vai tomar café, por volta das 10 horas da manhã.
Depois, ela vai para a cozinha porque os netos, que já são velhos, gostam de ir lá comer a comida da vovó, feita em panelas de ferro. Minha prima, que nunca trabalhou, ficou com a função de cuidar de meus pais, ajudar minha mãe a descascar os legumes e outras coisas. Minha mãe só não faz a faxina, mas a casa é pequena. Já a minha casa é quase três vezes maior e eu preciso de dois dias para limpá-la. A minha irmã ajuda fazendo as coisas da rua, pagamentos, compras, etc. Eu gosto de ficar em casa e há dias que nem para comer eu saio; então o meu marido vai almoçar e traz comida para mim.

Voos internacionais
Eu e mais cinco colegas da antiga Cruzeiro, que viemos para a Varig na mesma época, já estávamos aposentados pelo INSS, mas precisávamos cumprir o tempo para a aposentadoria pelo AERUS. Éramos Chefe de Equipe nos voos nacionais e queríamos abrir mão do cargo para voar em aviões maiores e assim fazer voos internacionais. Fomos falar com o nosso diretor, Sr. Sérgio Prates, e ele atendeu ao nosso pedido. Então fomos trabalhar no DC-10. Depois de uns três anos, a Chefia fez um remanejamento e todos os comissários, vindos da Cruzeiro do Sul, tiveram a oportunidade de fazer voos internacionais.
A oportunidade de viajar para fora do Brasil, conhecer outras culturas e também levar alguns familiares junto, foi uma experiência fantástica!  Na Cruzeiro do Sul não era tão fácil conseguir passagens para os familiares. O diretor fazia o maior mistério, havia a maior dificuldade. Só comecei a usar as passagens GC (condicional grátis) depois que vim para a Varig. Viajei muitas vezes com meu marido e minha filha e assim eu me senti muito recompensada.

Amizades, vida social
Não vejo as pessoas se tornando amigas aqui na Varig, só vejo interesse e individualismo. Fico muito triste com isso. Estou acostumada a fazer amizades, não poupo esforços para ajudar os outros e raramente tenho problemas com os colegas. Mas alguns colegas reclamaram de mim. Trabalho e procuro fazer bem o meu serviço, trato todos bem e acho que isso é o essencial.
Em termos de vida social, eu não gosto muito de sair e meu marido também não liga muito. Participamos de algumas reuniões, em feriados, com a família ou amigos, ou algum casamento de conhecidos. Durante esses anos todos, fiz amizade com muitos passageiros: um casal de amigos portugueses, amigos em Belém, em Recife e em outros lugares. Quando posso, vou visitá-los.
Na aviação surgem muitas oportunidades de fazer amizade, principalmente com pessoas de mais idade. Eu sempre procuro ajudar, carrego as bagagens, ajudo-as a sair do avião. Em geral os comissários não têm muita paciência com eles, mas eu os vejo como se fossem meus pais e sei das necessidades que têm. No voo para o Porto tem muita gente de mais idade. Eu já recebi centenas de cartões de passageiros.

Solidão na aviação
Eu achava que não existia solidão na aviação, mas voando com duas colegas, recentemente, percebi que as duas estavam entrando numa depressão profunda. Eu até fiquei com vontade de voar fixo com elas porque acho que posso ajudar. Cada um tem seus problemas e nem sempre consegue sair deles sem ajuda. As duas eram da antiga Cruzeiro do Sul e são novas nessa aeronave. Uma delas era chefe de equipe e abriu mão do cargo para voar nas linhas internacionais e conhecer outros lugares.
No trabalho ela está tendo problemas com os colegas, pois não é bonita e os colegas não a tratam bem, acham que ela é esquisita. Ela tem os dentes saltados, pintou o cabelo de preto, muito escuro, que não combina com a pele. Um colega nosso, que também era da Cruzeiro, voou com ela recentemente e disse que ela se sente muito isolada pelos colegas da tripulação. Ele chegou a interceder por ela e no final do voo ela pediu para sair com ele no pernoite, pois não conhecia nada e ele ficou de ligar mais tarde. Mas ele é muito dorminhoco e acabou dormindo até o dia seguinte. Ela acabou tendo que sair sozinha, pois ninguém a chamou para sair junto.

Aposentadoria
A aposentadoria só deveria acontecer quando a pessoa não tivesse mais pique, quando ela quisesse sair. Esse não é o meu caso e isso me machuca muito, pois vejo meus colegas bem mais jovens quase morrendo em pé. Também vejo, e até invejo, as comissárias das companhias norte americanas. Elas podem se aposentar com muito mais idade. Fiz um voo com uma comissária da Delta Air Lines. Ela tinha 68 anos e mais pique do que eu e ainda preferia trabalhar na cabine econômica.
Fiquei até assustada porque a mulher estava me passando para trás! Ela era elétrica lá na cabine econômica, enquanto os nossos colegas pareciam estar morrendo em pé. Para mim é uma injustiça ter que sair aos 55 anos, mas sei que há colegas nossas, bem mais novas, que já não aguentam mais. Já tive chance de conversar com quatro colegas que estavam se aposentando e que não viam a hora de sair. Eles diziam: “Graças a Deus, vou sair disso aqui”! Depois de uns meses, depois de descansarem e sossegarem um pouco, eles caem na real e sobram as horas do dia com as quais eles não sabem o que fazer. Esse pessoal que não arruma alguma coisa para fazer além do trabalho, não tem motivação para nada e acaba morrendo antes do tempo.

Planos para o futuro
Um dos meus objetivos é ver minha filha empregada, porque a onda de desemprego que tem por aí é grande. Depois que temos filhos vivemos em função deles e nos preocupamos com o futuro deles. Então percebemos que as coisas não são fáceis; vemos quantos chefes de família e jovens estão desempregados. Quando paramos, querendo ou não, nosso ritmo de vida e até a nossa situação financeira muda. Não vou ter o caixa dois que são as diárias e as encomendinhas. Minha filha ainda está fazendo Faculdade e eu só queria sair vendo-a formada e trabalhando. Tenho uma reserva, mas pode acontecer um imprevisto e não quero ficar sem dinheiro. Eu queria que ela fosse comissária e ela também quer. Está fazendo faculdade enquanto espera a oportunidade.
Meus pais são longevos e já me disseram, lendo as linhas da minha mão, que eu vou ter vida longa. Então, quando eu sair da aviação, vou arrumar um emprego qualquer, porque eu sou muito ativa e o dia de 24 horas é muito pouco para mim. Levanto cedo e só vou deitar depois da meia noite. Estou sempre ocupada fazendo alguma coisa.
Minha casa é enorme e eu não tenho empregada nem quero. Tenho uma pessoa que me ajuda, mas eu trabalho mais do que ela. Deixei de cozinhar porque não gosto de ficar na frente do fogão e também porque nem sempre a comida fica como eu gostaria. É bem mais fácil comer fora, onde a gente pode escolher à vontade. É só atravessar a rua e tem um restaurante por quilo. Então, dei meu grito de liberdade.
Se tivesse que recomeçar, faria tudo de novo. Sinto-me realizada e só lastimo ter que sair da aviação aos 55 anos.

*Ana (pseudônimo) se aposentou em 1997, aos 55 anos, com 37 de voo. Entrevista concedida no Rio de Janeiro, em 1997.


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