Entrevistas...
O mito e o papel do Comandante...
(Entrevista com um Comandante da Varig)
1- Qual a sua opinião sobre a
simbologia que envolve a figura do Comandante?
Como comandante eu não me sinto
um semideus, muito ao contrário. Aprendi muito nos dez anos em que vivi como
copiloto. Foi uma boa experiência e, no convívio com os outros comandantes, fui
aprendendo muitas coisas, vivendo situações, absorvendo atitudes. Cada um agia
de um jeito e eu fui fazendo comparações, pensando em como agiria se estivesse
no lugar. E assim fui amadurecendo, colhendo experiências. Quando me tornei
comandante eu já era um homem maduro e assumi confortavelmente a minha função.
Não sofri aquele impacto que sofrem os mais novos, que são promovidos com vinte
e poucos anos de idade e aí acham que estão com todo o poder nas mãos e podem
fazer o querem na aviação e ir “faturando” todas as mulheres...
Isso não aconteceu comigo, pois
eu já era maduro, sensato e seguro quando assumi essa função. Nunca vivi o mito
do comandante que muitos falam e que até os nossos amigos e parentes ficam
lembrando, que é a supervalorização do espírito aventureiro que predominava nos
primórdios da aviação. Hoje em dia, a nossa profissão é técnica, como qualquer
outra, e a gente sabe exatamente tudo o que vai fazer. E faz exatamente como
está previsto. O preparo é grande e as surpresas não devem existir.
2- E as histórias de conquistas
nos pernoites?
Acho que essa história de que nós
temos mais oportunidades nos pernoites é fantasia. Tem até uma história que
ilustra bem essa situação: é a de uma mulher muito ciumenta que tinha um marido
muito certinho, que trabalhava num horário fixo e só tinha uma pausa para a refeição
e o cafezinho. Um dia ela descobre que ele tem uma amante, fica surpresa e
pergunta: “Mas como, se eu telefonava para você a cada hora?” Aí o marido
responde: “Você se esqueceu da hora do cafezinho.” Então, para concluir, todo
mundo tem as mesmas oportunidades e as mesmas chances. Esse folclore que existe
em torno da nossa profissão não é verdadeiro. Eu falo por mim.
O que acontece é
que nas outras profissões, as outras pessoas não têm a facilidade de estar fora
de casa por muitos dias, como a gente tem. Em compensação, eles têm a
convivência com os parentes e amigos, encontram as mesmas pessoas, nos mesmos
lugares e têm a oportunidade de desenvolver relacionamentos mais próximos.
No nosso caso é diferente. Por
exemplo, você tem 23 anos de voo e eu também, mas estamos voando juntos pela
primeira vez. Nunca voamos juntos antes, assim como outros que estão na mesma
tripulação. Então, é difícil num pernoite de dois dias, que é um pernoite
longo, você se encontrar com uma pessoa que você não viu antes e ter um
relacionamento que leve a uma intimidade, como namorar ou até mesmo criar uma
amizade.
Tem esse outro lado, que você
mencionou, das entrevistas com as outras pessoas e que elas se abrem até com
muita facilidade. Nosso grupo, de uma maneira geral, é muito carente
afetivamente, justamente por não ter aquele contato contínuo com um colega que
chega e fala das coisas que estão acontecendo na sua vida e vice-versa. Nós não
temos isso. Então, na aviação, muitas pessoas se isolam, chegam aos hotéis e se
trancam nos quartos, ou bebem, ou fingem uma alegria que não têm e saem
brincando com todo mundo. Ou então, quando aparece um ombro, uma pessoa que
parece mais amiga, elas despejam todos aqueles sentimentos contidos dentro de
si. Mas, na maioria das vezes, não era o momento, nem o local, nem a pessoa
apropriada para ouvir, pois não era uma pessoa amiga o suficiente para ser
confidente.
Aqui no baseamento (Hong Kong),
temos muitos colegas co-pilotos que deixaram filhinhos recém-nascidos em casa e
estão doidos para voltar para junto de suas famílias. Da fantasia que os
passageiros e as outras pessoas alimentam, nós conhecemos os bastidores. Mas eu
consigo imaginar o que as pessoas que quase nunca viajam pensam sobre a vida
que nós vivemos quando saímos de casa para trabalhar. Elas acham que o
comandante deve ganhar muito dinheiro e que tem muitas mulheres, uma em cada
lugar.
Esse lado da fantasia também
existe entre os meus colegas tripulantes técnicos, tanto da parte de quem conta
como da parte de quem escuta. Por exemplo: aquela história de que fulano é gay.
Eu não posso dizer isso, mesmo ouvindo falar, porque para mim ele nunca se
insinuou. Enquanto isso não acontecer, eu posso apenas dizer que ele tem jeito,
que é um tanto afeminado. Eu não posso dizer o que fulano ou cicrano fazem ou
não fazem. Numa tomada geral, por escutar o outro lado das colegas, acho que
tentam passar uma imagem que não existe na realidade.
Já tive a oportunidade de
presenciar casos insólitos e ditos por pessoas que se eu estivesse no lugar
delas pediria demissão. Especificamente, eis um caso que ilustra bem esse
assunto: estávamos tomando café da manhã, perto da piscina de um hotel, quando
passou uma colega muito bonita, muito sensual. Ela nos deu bom dia e seguiu
para a piscina. Aí, uma das pessoas que estava conosco esperou a moça passar e
deu aquele olharzinho como quem diz: “eu sou o máximo!” E comentou com os
colegas que estavam na mesa que tinha passado a noite com a mulher. Para
surpresa dele, um dos que estava na mesa perguntou: “Mas, comandante, que horas
isso aconteceu? Porque ela é minha namorada e dormiu comigo na mesma cama”.
Isso me prova que existem muitas histórias e que, na realidade, ninguém sabe o
que tem de verídico.
E há ainda o lado daqueles que
não têm padrão, não têm autoestima, não têm respeito por si mesmos, e então
chegam ao pernoite e dizem: “Eu tenho que faturar alguém”. E sai dando tiro em
todas as direções; se acertar é lucro. Existem esses tipos e eles até podem
levar vantagem porque também tem as novinhas, cheias de fantasia, que dizem
para si mesmas: “O comandante ligou para mim!” Ela se submete a esse tipo de
situação. Em minha opinião ele é um cafajeste e ela é uma ingênua. Então, tudo
é muito complexo. Tem também o “calço-hidráulico”, aquele cara que no meio da
noite liga para a comissária e diz que acabou o shampoo. Ela se propõe a
emprestar e, quando abre a porta, ele coloca o pé para dentro e tenta entrar.
Os artifícios são variados.
3- Como tripulante e comandante,
é possível ter muitos amigos?
Quase não temos tempo de termos
amigos nesta profissão. Eu sou uma pessoa que gosta muito de reunir todo mundo,
aqueles que eu gosto e aqueles que gostam de mim. O pessoal da minha turma, na
Varig, tem, em mim, um ponto em comum. Com o tempo, uns casaram, tiveram
filhos, foram morar em outros lugares; uns se desentenderam com outros, ou
porque é a mulher de um que não gosta do outro e assim vão se afastando. Eu sou
o ponto em comum, gosto de juntar todo mundo, até aqueles que estão brigados.
Também gosto de estar junto com os parentes e amigos, mas não posso dizer que
tenho muitos amigos.
Tenho muitos companheiros, que são pessoas com quem jogo tênis,
com quem saio para fazer passeios. Mas a minha definição para amizade talvez
restrinja esse quadro porque amigo, para mim, é aquele com quem você pode
contar a qualquer hora, é aquele que você fica cinco ou dez anos sem ver e
quando o encontra é como se estivesse sempre junto. Amigo é aquele que bate na
minha porta à meia-noite e diz “olha, eu cheguei de viagem e não encontrei
lugar no hotel, então, vim dormir na tua casa”. É aquele que diz: “olha, o meu
carro quebrou e eu estou precisando do teu.” Amizade para mim é isso. E os
poucos amigos que eu tenho são da aviação.
4- Como é o seu relacionamento
com os Comissários de Voo?
Eu acho que sou um pouco difícil
de me relacionar porque, ao mesmo tempo que gosto da formalidade, gosto da
naturalidade. Essa experiência de ficar em baseamento é a primeira que eu
tenho. Nunca tinha voado com tripulação fixa antes. Penso que tudo na vida tem
os dois lados: tem um lado bom e outro que não é bom. Nesse aspecto, acho que
quando se faz parte de uma tripulação fixa as surpresas são menores. A gente
sabe como é o trabalho e o comportamento de cada um, então já sabe o que
esperar, não precisa se preocupar com isso. Eu sou o comandante, tem o chefe de
equipe, a supervisora, o auxiliar, a pessoa que vem limpar o chão da cabine.
Trato todos exatamente da mesma forma e isso não é demagogia. Trato dessa
maneira porque acho que cada um tem sua experiência, uns tiveram mais oportunidades,
outros tiveram menos, e a vida se encarregou de reunir essas pessoas todas num
mesmo lugar.
As pessoas são iguais, mas as
oportunidades que tiveram na vida é que foram diferentes. Então, eu respeito
todo mundo da mesma maneira. Cada um está fazendo o seu papel. É como diz a
própria regulamentação: cada um é um auxiliar do comandante para desempenhar
aquele tipo de tarefa. Antigamente, na tripulação técnica, eu só tinha um
piloto, mas os aviões foram ficando maiores e as tarefas foram sendo divididas
com outras pessoas. Aí está mais uma razão para respeitar o que cada um
representa.
Quanto ao grupo de comissários,
acho que é extremamente heterogêneo e, na maioria das vezes, foge da essência
do que é o trabalho. Por dois motivos: pelo grupo e pela companhia. O grupo,
por ser heterogêneo, cada um está aqui por um motivo. O percentual daqueles que
estão aqui por que gostam, por querer cumprir uma carreira, é bem pequeno. A
maioria quer passear, aproveitar a vida, conhecer outros lugares, começar a
ganhar dinheiro rapidinho, quando ainda é jovem.
Uma coisa que me revolta
profundamente é quando chegam os passageiros e surge aquele comentário:
“Chegaram os inimigos”. Isso me faz muito mal por que são eles que estão
pagando os nossos salários. Se o colega está desgostoso com o que faz, se acha
que está ganhando pouco, a culpa não é dos passageiros, e não é para eles que
tenho que falar ou demonstrar a minha insatisfação. Então, se existe uma coisa
mal conduzida aqui na companhia é a diferenciação entre o bom e o mau
profissional. Aquele que se interessa e gosta do que faz, que é competente, faz
parte de um grupo bem pequeno, de no máximo 10%. Os outros 90% estão ali para
fazer outras coisas. Isso me incomoda muito.
É o lado negativo que eu vejo na
minha posição de comandante em relação aos comissários de voo. Lamento que esse
grupo pequeno, que é bom e não é reconhecido, dependendo do seu grau de entusiasmo, vá se juntar ao grupo
maior, por não receber incentivo no que faz. Temos o exemplo do casalzinho de
chineses que ia junto para o baseamento e agora não vai mais. Eles estão
decepcionados porque outras pessoas passaram na frente. É lógico que tudo isso
faz parte do crescimento de cada um durante a vida.
5- Qual sua opinião sobre a
profissão de Comissária de Voo?
Para mim é uma profissão como
outra qualquer. Como tripulante, acho que ela tem as mesmas dificuldades para
conciliar a vida pessoal com a profissional como eu tenho. Mas o preconceito
que ela enfrenta deve ser maior: o homem sai para trabalhar e a mulher, por que
não está dentro de casa cuidando dos filhos? Essa é uma comparação perfeita.
Quando eu saio de casa para trabalhar, sinto que a minha mulher tem que ser a
mãe e o pai, e tem que ser o homem da casa quando eu fico quatro ou cinco dias
fora de casa. Se furar um cano, ela não vai ficar me esperando para consertar.
Ela tem que tomar atitudes e decisões e ter esse tipo de autonomia.
Da mesma forma eu vejo o lado
oposto. Imagino que a mulher que voa, quando sai de casa, o marido vai ter que
ser pai e mãe dos filhos. Se ela não tem um marido em casa e têm filhos, a
coisa se complica ainda mais. Os filhos vão sofrer. Mas acho que tudo na vida
dos indivíduos é um somatório de experiências. E cada um vai ter as suas. Por
exemplo: dois adolescentes, filhos de uma comissária, um acha que ela o
abandona, o outro acha que tem mais liberdade. No relacionamento humano não
existe uma regra e cada um é cada um. A gente está o tempo todo aprendendo e
ensinando.
Sobre a imagem da mulher comissária de voo eu também acho que
existe o folclore, criado por pessoas que viajam pouco. A comissária é uma
pessoa que vai trabalhar uniformizada para cumprir aquelas funções para as
quais foi preparada. Por outro lado, os passageiros que estão no aeroporto e as
veem indo para o avião podem alimentar a fantasia de que elas têm a liberdade
que eles não têm: vai viajar para algum lugar do mundo que eles talvez nunca
conheçam; tem a liberdade de sair com quem quiser. Geralmente ela está
sorrindo, mas por dentro só ela sabe o que está sentindo, quais os problemas
que está vivenciando ou enfrentando.
6- Sendo casado, do seu ponto de
vista, como sua mulher vê a comissária? Existe preconceito?
Existe e é muito grande. Mas
acontece que ocorreu um fato em nossa vida particular que deu motivo a esse
preconceito. Minha esposa não tinha ciúmes, não fazia a menor restrição à minha
profissão. Eu sou uma pessoa muito aberta,
muito sincera, então o que acontecia? Eu chegava de voo e falava
naturalmente sobre o que fazia nos pernoites, quando as tripulações eram
simpáticas e íamos jantar junto e, às vezes, dançar até de madrugada.
Um dia eu me envolvi com uma
colega de trabalho e ela ficou sabendo por que eu contei. O peso que eu sentia
era muito grande e eu não podia segurar, tive que dividir com ela. E aquilo foi
um marco muito profundo na nossa vida. De lá para cá, ela é outra pessoa. Já
não encara com tanta naturalidade esse tipo de convívio. Estou achando boa essa
experiência de baseamento porque ela está tendo a oportunidade de ver como o
grupo é heterogêneo e que assim como existem as “pistoleiras”, existem as
pessoas extremamente profissionais, competentes e sérias. Talvez ela consiga
mudar um pouquinho esse rigor que agora existe no seu julgamento.
7- Essa experiência que vocês
viveram teve algum efeito positivo na relação?
Por um lado foi positivo e por
outro foi negativo. Positivo porque eu consegui mostrar para ela que era
sincero. Se não fosse, não teria me aberto tanto. Por outro lado, foi negativo
porque quebrou um cristal e o cristal quebrado nunca mais volta a ser o mesmo.
Mas isso também depende de cada pessoa. Eu reajo de uma maneira diferente.
Passamos por experiências diferentes na vida, a minha reação é uma e a dela é
outra. Acho que sentimento não tem sexo.
O meu envolvimento com a colega de trabalho foi profundo e eu vivi
uma crise muito grande. Foi um baque para mim, foi como levar uma rasteira. Eu
sempre comentava, inclusive em casa, que achava ridículo ver os colegas
comentarem sobre casos que tinham com fulana ou beltrana. Se o cara era casado
eu ficava com pena e dizia: “Coitado, tem uma mulher que não o faz
suficientemente feliz e tem que procurar complementação fora de casa.” Era
assim que eu pensava e falava.
Como comandante, eu estava
completamente à vontade num mundo cheio de mulheres, pois era e sou muito
brincalhão e na minha maneira de ser só se a mulher ficasse pelada na minha
frente eu iria achar que ela estava interessada em mim. Comigo? Não deve ser.
Acho até que devo ter algum complexo de inferioridade. Eu levava tudo na
brincadeira. Então, por causa dessa minha maneira de ser, quando me vi
envolvido com outra mulher, o meu mundo desabou. Mas como? Eu que sou sincero, fiel,
como pôde isso acontecer comigo?
Foi um
desmoronamento do meu mundo interior. Só que num pequeno espaço de tempo eu me
recompus. Primeiro pensei em acabar com o casamento, depois pensei nos filhos
pequenos, por fim cheguei à conclusão de que se o fato tinha me tocado tão
profundamente é porque na realidade eu gostava da minha esposa. Se não fosse
isso, eu tinha ido embora. Consegui reagir rápido e disse para mim mesmo: ou
ponho uma pedra em cima de tudo isso e toco o barco pra frente ou vou passar mal
o resto da minha vida. Eu consegui fazer isso, mas ela ainda não conseguiu
superar.
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