terça-feira, 17 de junho de 2014

Ella

Ella*

Nasci em 1940, no Rio Grande do Sul. Meus pais e avós, paternos e maternos, vieram da Alemanha na época da Segunda Guerra Mundial com esperança de começar vida nova no Brasil - um país considerado novo e de boas oportunidades. Mas a realidade que aqui encontraram foi muito diferente daquela que haviam sonhado. As dificuldades enfrentadas foram muitas, começando pela comunicação, pois não falavam o idioma português. A família de meu pai entrou no Brasil por Santa Catarina e depois foi para São Paulo. A família de minha mãe entrou por Recife, passou por Mato Grosso e acabou se estabelecendo em São Paulo.
Meus pais se conheceram e se casaram em São Paulo. Depois de casados, se mudaram para o Paraná e mais tarde para o Rio Grande do Sul. Com os filhos pequenos, que já frequentavam a escola, eles aprenderam a falar melhor o português, depois de passar momentos difíceis, quando o governo brasileiro proibiu aos imigrantes alemães de falarem sua língua de origem. Naquela época, até as crianças pequenas eram maltratadas se falassem o idioma de seus pais e assim nós acabamos esquecendo a língua de nossos ancestrais. Apesar das diferenças culturais, meus pais acabaram se adaptando.
No Brasil as pessoas tinham mais liberdade e não sofriam um policiamento ostensivo – como acontecia na Alemanha daquela época. Lá, a rigidez era ostensiva e o povo tinha uma vida muito disciplinada. Mas a gente vê o resultado dessa disciplina na organização do país, onde tudo é muito certinho e onde tudo funciona bem. Aqui, por causa do excesso de liberdade, existem muitos outros problemas.

Influência familiar
Sou a mais nova de uma família de três irmãos. Nas lembranças de minha infância a união e a harmonia nas relações familiares estão muito presentes. Meus pais cobravam muito as questões de disciplina, educação e honestidade, mas também estavam sempre presentes e eram amigos e brincalhões. Explicavam as consequências de certas atitudes e decisões que podíamos tomar. Faziam-nos pensar, refletir. Orientavam-nos, mas nos davam liberdade para decidir e depois da decisão nos apoiavam. Isso nos deu muita segurança e independência. Eles mostravam as vantagens e desvantagens de cada situação.

Primeiro emprego
Quando eu era jovem, queria fazer vestibular para Medicina, mas tive que interromper os estudos aos 17 anos, quando minha mãe ficou doente. A situação financeira da família exigiu que eu começasse a trabalhar fora. Consegui meu primeiro emprego como secretária no escritório de uma empresa em Porto Alegre porque eu era muito ousada e na entrevista afirmei que sabia tudo o que tinha que fazer naquela função. Para minha própria surpresa, passei nos testes e fui admitida. E assim comecei a trabalhar numa grande empresa de importações. Ao mesmo tempo, fui atrás da instrução que necessitava para realizar bem o meu trabalho. Comprei livros e passei a estudá-los nas horas de folga. O resultado foi positivo, pois recebi elogios no final do primeiro mês. Dois meses depois fui promovida e três meses depois ganhei aumento.
A empresa onde eu trabalhava ficava longe de casa e para chegar no horário tinha que levantar às 5h30min da manhã. Depois do expediente ainda ia para os cursos de idiomas (inglês e francês) e desenho arquitetônico. Voltava para casa perto da meia noite. Era cansativo, mas eu achava que valia o esforço, pois gostava de estudar idiomas e desde pequena queria aprender francês. Lamento não ter recuperado o alemão que falava quando era criança, pois fiquei com aquele sentimento de aversão causado pelo sofrimento imposto à minha família. Eu entendo o idioma de meus antepassados, mas não consigo falar e conheço outras pessoas que vivem a mesma experiência.
Mudei de emprego várias vezes, pois aproveitava as oportunidades que iam surgindo com oferta de melhores salários. Na medida em que ia aprendendo, também ia procurando melhores colocações. Quando minha mãe faleceu, aos 44 anos, eu estava com 19 anos. Foi um grande abalo para toda a família, pois a mãe é a centralizadora de uma família.
Aviação
Eu tinha uns 16 ou 17 anos quando minha irmã começou a trabalhar na Varig e achava toda aquela movimentação muito interessante. Era a época das primeiras aeromoças e a empresa só admitia moças a partir dos 21 anos. Minha irmã voou apenas uns dois anos e pouco. Naquela época elas só voavam no Rio Grande do Sul, no DC-3. Os voos iniciavam bem cedo e tinham muitos pousos e decolagens. Os aviões subiam e desciam umas 10 vezes, era uma coisa muito louca! Antes de trabalhar no voo, as moças faziam um estágio no aeroporto, como despachantes.
Eu ficava encantada, queria saber tudo o que a minha irmã fazia e procurava ajudar em tudo que podia. A empresa era pequena e todos eram muito amigos. Regulamentação não existia naquele tempo e o entusiasmo era grande. Depois vieram os Curtiss Commander e os voos para São Paulo. Os tripulantes pernoitavam, lá longe, em São Paulo! Mais tarde chegaram os Convair, os Super Constellation e o sucesso era cada vez maior. Eu ia lá para o aeroporto e ficava vendo a decolagem, até o avião sumir no céu. Era muito emocionante.
Minha irmã saiu da aviação porque achou que o trabalho afetava muito a saúde. Ela dizia que não tinha estrutura adequada para aquele tipo de vida. Gostava de fazer as coisas com calma e na aviação era tudo correria e agitação. Ela voltou a ter uma vida mais tranquila e depois trabalhou em outros empregos.

Panair do Brasil
Entrei para a aviação com 21 anos. Foi meu pai que me avisou que a Panair do Brasil estava precisando de aeromoças. A empresa estava recrutando candidatas em Porto Alegre, mas a base seria no Rio de Janeiro. A mudança de cidade e de estado deixou-me um pouco insegura e mais uma vez recebi o apoio de meu pai, que disse: “Você vai se sair bem, eu tenho confiança em você.” Só depois de passar na entrevista e nos testes, é que os meus irmãos e demais familiares ficaram sabendo da grande mudança em minha vida.
Eu disse a todos que voltaria três anos depois, mas não voltei. Fui para o Rio de Janeiro fazer o curso da Panair, acompanhada de mais duas moças. Uma delas desistiu no final do curso e todos já haviam percebido que ela tinha ido apenas para passear e conhecer o Rio de Janeiro. A outra se tornou minha amiga e moramos junto por algum tempo. Depois, cada uma quis sua própria moradia, mas nunca perdemos o contato e sempre nos ajudamos como irmãs.
A estrutura da Panair era excelente, tanto no ambiente de trabalho como no relacionamento funcionário-empresa e eu me adaptei com facilidade. A Panair do Brasil, que era subsidiária da Pan American Airways (que depois passou a se chamar American Airlines), fazia voos para a América do Sul e Europa. Voávamos de Constellation do Rio de Janeiro para Belém, Fortaleza e Chile. Pouco tempo depois fui promovida para as linhas internacionais e comecei a fazer voos de DC-8 para a Europa. Ficávamos em Lisboa e os tripulantes daquele baseamento faziam os voos para Roma, Zurich, Frankfurt e Beirute.
A vida na aviação transcorria tranquila. Éramos comandadas pela Diretoria de Operações e tínhamos um gerente que cuidava especificamente do assunto das comissárias. Viajar era sempre uma festa. Quando uma empresa é pequena tudo é sempre mais fácil de administrar.

Imprevistos
Em 1964, quando a Panair do Brasil fechou, eu estava com 24 anos e morava no Rio de Janeiro, no apartamento de uma família gaúcha. Era um apartamento muito grande. Eu e minha colega de curso ficávamos num dos quartos. O ambiente era maravilhoso, todos gostavam de ir lá, a gente dizia que tinha mel. Nos finais de semana a casa ficava cheia. Foi uma sorte muito grande ficar num lugar assim, com pessoas maravilhosas com as quais me dou até hoje.
O fechamento da Panair foi horrível! Fiquei numa situação de insegurança muito grande. Bruscamente, fiquei sem dinheiro para pagar moradia e alimentação. Foi uma fase muito difícil! Eu estava com as malas prontas para embarcar, ia viajar no dia seguinte para o baseamento de Lisboa e nem acreditei que fosse verdade. Fiquei sem trabalhar durante muitos meses.
Vários órgãos do governo brasileiro aceitaram a inscrição dos ex-funcionários da Panair e cada um conseguiu emprego de acordo com a sua escolaridade. Eu fui trabalhar num Hospital de Cardiologia como oficial administrativa, o que no serviço público é um cargo alto e exige muito estudo para passar num teste rigoroso. Entrei por cima, por causa do nível de escolaridade. E a receptividade que tive, por parte dos outros funcionários, não foi boa. As pessoas que lá trabalhavam e que tinham feito aqueles cursos e testes, não se conformavam com o fato de eu ter entrado sem passar pelos mesmos. Procurei ver o lado deles, achava que tinham razão de estarem magoados e aborrecidos, por isso os desculpei pelas indelicadezas que me fizeram.
Apesar das dificuldades, eu consegui criar um bom ambiente de trabalho e fazer amigos durante os sete meses em que trabalhei no Hospital de Cardiologia. Visitava os doentes e os médicos, assistia cirurgias e participava de quase tudo lá dentro. No dia em que avisei que ia sair porque ia trabalhar na Varig, muitos colegas do Hospital até choraram. Minha amiga aeromoça, que tinha conseguido trabalho no Departamento de Trânsito, também voltou para a aviação e foi trabalhar na Cruzeiro do Sul.

Varig
O retorno ao voo foi cheio de emoção. Para conseguir entrar na Varig eu tive que me inscrever seis vezes. Cada vez, acredito, a movimentação de papéis e o tumulto eram grandes e eu não recebia nenhuma comunicação me chamando. De tempos em tempos eu ia lá e a minha ficha tinha sido extraviada. Então eu preenchia outra. Até que um dia eu encontrei uma moça que antes trabalhara na Chefia de Pilotagem da Panair e expliquei para ela o que estava acontecendo. Ela foi, pessoalmente, com a minha ficha ao setor que cuidava do assunto. E assim, em outubro de 1965, consegui entrar na Varig. 
Fiquei surpresa com a engrenagem que encontrei na Varig. Na Panair eu já fazia voos internacionais, mas na Varig tive que voar no setor doméstico e não entendia muito bem a razão. Eles me disseram que eu estava entrando como nova na empresa. Alguns colegas meus, da Panair, tinham conseguido contar o tempo de voo e ficaram com matrícula mais antiga. No tempo em que as minhas fichas iam desaparecendo, outras pessoas da Panair estavam sendo admitidas na Varig. Tive que fazer todo o curso novamente. Eu achei que o curso da Panair era mais estruturado e que na Varig a gente perdia muito tempo. Eram pessoas de terra que nos davam o curso.
Na Varig, comecei a trabalhar no Electra, nas rotas domésticas. E fiz dois voos com esse mesmo equipamento para Lisboa, em conjunto com a TAP, no “Voo da Amizade”. Esse voo costumava ser feito pela Panair, com o DC-7. Fazia escala em Recife e na Ilha do Sol, antes de pousar em Lisboa. Depois, trabalhei no Caravelle, no B-707, no Coronado e no DC-8. Mas não demorou muito para ser promovida para as rotas internacionais.
Infelizmente, minha passagem para os voos internacionais causou mal-estar entre os colegas mais antigos. Quando eu entrei na Varig, a empresa tinha 327 comissários. Passei na frente de muitos deles em função de falar outros idiomas e de já ter experiência nos voos internacionais. Mas fui muito maltratada nos voos. Mais uma vez, eu entendia a situação deles, mas não podia recusar a promoção. Mesmo que recusasse, não garantiria que eles seriam promovidos. Então fui em frente.

Escala de voo
O relacionamento do pessoal do voo com o pessoal da Escala era muito mais tranquilo no tempo anterior à Regulamentação Profissional dos dias de hoje. Quando surgia algum imprevisto e isso ocorre com frequência na aviação, eles nos chamavam a qualquer hora do dia ou da noite e se a gente não estivesse em condições de voar tinha a liberdade de dizer. Era um relacionamento muito camarada. Eu vivia inteiramente para a aviação e gostava muito da vida que levava.

Pernoites
As frequências dos voos internacionais, naquela época, eram poucas e isso significava que, nos pernoites, os tripulantes tinham muito mais tempo livre. Ficávamos alguns dias inativos nas principais capitais europeias: Lisboa, Roma, Paris, Londres. Assim, podíamos conhecer muitos lugares e absorver a cultura de cada país.
Em geral, as pessoas têm interesses muito diferentes. Quando o grupo é pequeno fica mais fácil conciliar esses interesses. Eu não saía muito em grupo. A verdade é que eu já chegava aos pernoites com meus objetivos. Se não conseguisse gente para me acompanhar, ia sozinha. Raramente deixava de fazer o que queria: conhecer museus, pontos históricos, parques, grandes magazines. E, às vezes, ficar num só lugar e apreciar o movimento.
Muitos dos meus colegas não falavam outros idiomas e passavam muito tempo nas ruas comerciais, visitando lojas e fazendo compras. Eu achava uma pena ter saído da minha casa, me transferido para o Rio, ter trabalhado a viagem inteira, para chegar à Europa e ficar só dentro de lojas. Quando coincidia de encontrar colegas com interesses semelhantes aos meus saíamos junto. Mas se fosse só para ver o comércio e fazer compras, eu não os acompanhava, pois essas coisas não me agradavam. Não quero dizer que não visitava lojas, que não fazia compras, também fazia isso, mas não o tempo todo.
Fiz muitos passeios fora de Paris, fora de Londres. Entrava nas agências de turismo e escolhia os passeios que queria e podia fazer. Em Lisboa eu fazia a mesma coisa. Sempre fui muito independente, talvez por ter sido criada assim. Meus pais nos passaram essa segurança de ir atrás do que queríamos.

As mudanças no perfil da aeromoça
As primeiras aeromoças foram admitidas na Varig porque foi criada uma lei internacional que obrigava as empresas a contratarem moças para atender as mulheres que viajavam de avião. A Varig foi obrigada a contratar moças contra a vontade de Rubem Berta, o presidente da empresa. Mas eles nunca se arrependeram.
A Terezinha e a Margot estavam entre as primeiras a serem contratadas. Quando elas começaram a voar para Nova York de Constellation, o aeroporto era um galpão de madeira, uma coisa quase improvisada. Também não existia o setor de Comissaria (responsável pelas refeições de bordo), nem de limpeza de interiores das aeronaves. Ao chegarem dos voos, os comissários iam para o hotel e no dia seguinte voltavam para o avião e faziam a limpeza. Depois retornavam ao hotel para descansar. Assim iniciavam o voo da volta com o avião todo arrumado por eles mesmos no dia anterior. A comida era encomendada, mas eles tinham que ajudar a acondicioná-la no avião. Hoje nós nem conseguimos imaginar esse acúmulo de tarefas.
A Terezinha e a Margot pernoitavam em Trujillo na América Central e voavam de Caravelle para Nova York. Era uma aviação muito diferente daquela que hoje conhecemos. Elas começaram a vida profissional fazendo um estágio no Despacho do Aeroporto, experiência que nós não tivemos. Naquela época não era permitido casar nem ter filhos. Quando eu entrei não podíamos usar óculos de sol e o cabelo só podia ser curto ou preso. As regras ainda eram muito rígidas.
O uniforme era o mesmo, dentro e fora do avião. Depois tivemos saia com blusa, mas a gente trocava a blusa porque era de algodão engomado. Mais tarde tivemos vestidos, com mais de uma cor. No meio do voo trocava-se a cor do uniforme. Assim tudo foi evoluindo até chegar nesse uniforme mais recente, com esse jaleco com um bolso, que é mais prático para trabalhar. Sempre pleiteamos calças compridas, mas sempre houve uma barreira forte na empresa para autorizar seu uso.
Na América do Norte, quando as empresas idealizam um uniforme elas criam várias peças que se combinam entre si. Mas o uniforme é pago pela comissária, então ela vai ao setor de uniformes e escolhe o que prefere usar. Elas acabam se vestindo cada uma do jeito que acha melhor. Há empresas norte-americanas, com base no Havaí, onde as comissárias usam roupas típicas do Havaí. Elas têm esse direito porque são de lá. Usam aqueles vestidos com aquelas flores, que procuram combinar com o uniforme, ou optar por um ou outro. As empresas são mais liberais, enfatizam a boa aparência. O uso de bijuterias ou prendedores de cabelo também fica a critério de cada comissária.

Comissárias X Comissários
Quando iniciei minha carreira de Comissária de Voo, ainda se usava o termo aeromoça. As qualidades femininas eram mais destacadas e as mulheres eram tratadas com mais delicadeza. O trabalho mais pesado ficava para os homens, assim como o serviço de drinks e o cafezinho. Durante as viagens, distinguiam-se as tarefas para os homens e as tarefas para as mulheres. Com a expansão da aviação e o crescimento das aeronaves, aumentou o número de passageiros e, proporcionalmente, o número de Comissários para atendê-los a bordo.
Modificações foram feitas nos procedimentos dos serviços oferecidos aos passageiros e os homens passaram a realizar as mesmas tarefas que as mulheres, com poucas exceções, como trabalhar na galley ou abrir e fechar as portas dos aviões. Comissários auxiliares, do sexo masculino, ainda eram designados para essas funções. Aumentaram também as cabines de passageiros, com a implantação da cabine executiva, intermediária entre a primeira classe e a classe econômica. E, como consequência, surgiu a necessidade de novos cargos a bordo.
Acompanhando o movimento feminista que crescia a nível mundial, as mulheres Comissárias também exigiram maior participação e direitos na esfera profissional. Se as exigências e os requisitos eram os mesmos para rapazes e moças que ingressavam na profissão, os direitos às promoções aos cargos deviam ser os mesmos. Essa busca pela igualdade de direitos profissionais implicava na contrapartida: elas teriam que fazer todas as tarefas que os cargos exigiam. O que era apenas uma questão de oportunidade.
A oportunidade chegou com a vinda do DC-10. Além do Chefe de Equipe (cargo novo e ainda reservado aos homens), responsável por todo o avião, havia o cargo de Supervisor de Cabine, nas classes executiva e econômica. Então criaram a função de Primeira Comissária para as mulheres mais antigas e experientes na profissão, geralmente com muitos anos de trabalho na primeira classe.
A Primeira Comissária ficava solta, não tinha uma função específica dentro do avião. Era a hostess e ainda tinha um pouco de figura decorativa, pois a ela competia dar atenção especial aos passageiros e cuidar de pormenores. Ela ainda não tinha a devida preparação para desempenhar esse papel, pois não tinha o hábito de ver o avião como um todo, de atuar em todas as cabines, de conversar com todo mundo, de ver quem precisava de uma atenção maior, uma atenção especial. Ela era tímida e se prendia em alguma atribuição, em alguma cabine. E a atribuição de Primeira Comissária não atingiu o objetivo esperado.
As mulheres só começaram a concorrer aos cargos de Chefe de Equipe com a chegada do B-747. Mas isso também não foi fácil. Na época, o próprio Diretor do Serviço de Bordo da Varig era contra a ideia de ter mulher na função de Chefe de Equipe. O tempo foi passando e as mulheres foram mostrando a insatisfação que sentiam. Sabiam que, por mais que se esforçassem, seriam prejudicadas na hora da aposentadoria, se não atingissem o topo da carreira. Elas consideravam isso uma injustiça, já que no desempenho da profissão eram mais cobradas, principalmente em relação à aparência, e mais ainda com o avançar da idade. A comissária não podia engordar, não podia ter cabelo branco, tinha que estar sempre em forma.
A desculpa da não promoção ao cargo de Chefe de Equipe ficava por conta do lado emocional. Diziam que a moça não ia dar conta e segurar as situações difíceis. Eu sempre fui muito crítica e sempre contestei as discriminações que sofríamos. E dizia que nem todas as moças estavam qualificadas ou tinham condições emocionais para serem Chefes de Equipe, mas que isso também valia para os homens.  E mesmo assim, alguns deles, não qualificados, exerciam a função. Muitos colegas não gostavam de se expor em discussões com a chefia. Mas eu sempre expus a minha opinião e até esperava que me destituíssem do cargo de instrutora por causa disso. Para minha surpresa isso nunca aconteceu.
Numa ocasião, finalmente, se discutiu a possibilidade das moças serem Chefes de Equipe. Já havia moças supervisoras que estavam chegando perto da aposentadoria. Não era o meu caso porque eu era mais nova. Naquela época, nós tínhamos na Chefia das Comissárias uma pessoa maravilhosa, mas muito preocupada com a aparência das moças. Tecnicamente não estava tão por dentro das coisas. Ela tinha a cabeça voltada para a parte social e não a técnica. Mesmo assim houve um avanço, depois de um Seminário realizado na Marinha, portanto fora da Varig, onde todos puderam falar e expor suas ideias.
Foi uma semana de discussões calorosas. Quando surgiu a questão das mulheres que queriam concorrer às promoções em igualdade de condições com os homens, eles alegaram que a empresa procurava dar esses cargos a eles porque tinham mais encargos de família e que por isso precisavam receber mais. Eu contestei: “Posso apresentar vários colegas homens que não têm encargos de família, e outros que largaram suas famílias. Então, esse não é argumento que justifique, inclusive porque é uma discriminação. Os encargos de família são opções pessoais de cada um. Se optei por não casar e não ter filhos, isso não pode afetar a minha carreira na profissão que escolhi”.
Depois, eles alegaram que a moça era muito emocional, que não ia dar conta da segurança nem administrar todos os problemas que aconteciam dentro do avião. Então eu falei: “Eu vou evitar comentar voos que fiz com Chefes de Equipe homens, onde aconteceram coisas inadmissíveis. E no final todos chegaram sãos e salvos. Se eles podem cometer erros, a mulher também pode”.
Eu brigava muito por esta questão, embora estivesse muito longe de disputar essa posição em função da antiguidade. A ideia em si é que eu não aceitava essa discriminação em função dos argumentos que eles apresentavam. E isso durou anos.
Um dia o Diretor me chamou e perguntou: “Se eu convidasse você para ser Chefe de Equipe, o que você faria”? Aí eu respondi: “Em princípio, acho que está tudo errado porque eu estou fora da antiguidade, não é minha hora de sair Chefe de Equipe. Eu não posso passar na frente dos outros. Isso não é justo e vai criar um mal estar no grupo. A questão é que ele podia escolher duas ou três pessoas que estavam dentro da regra e outra que estava fora da regra, porque era diretor e tinha esse direito. Eu não concordei com isso. Aí ele disse que ia determinar que eu fosse promovida. Então eu disse: “Se o senhor está determinando, sob protesto, vou ter que aceitar”. Enfim, eu não fui promovida, mas outras colegas, mais antigas, foram.
Ainda naquele seminário, quando os colegas não tinham mais argumentos, eles disseram: “Então vamos botar uma moça como Chefe de Equipe no voo que sai hoje à noite para Nova York e vamos ver o que vai acontecer!” Essa eu também não aguentei e respondi: “Vocês estão mostrando um lado muito feio, porque os rapazes começam a ter cargos de Chefia quando estão lá no início dos voos domésticos e, mesmo quando fazem coisas erradas, não perdem os cargos. Eles são orientados e vão sendo promovidos, voltam a errar e não perdem os cargos. Agora vocês querem que uma moça, que foi sempre impedida de fazer qualquer coisa e de tomar iniciativas dentro do avião, seja exposta, sem nenhuma orientação, e faça o que os homens estão fazendo há 20 anos? Vocês não sentem vergonha?!”
E continuei: “O que é preciso é dar preparo para elas, que não vai ser igual ao de vocês que já tiveram a vivência de todos esses anos. Apesar de alguns, mesmo com todos esses anos, ainda serem péssimos profissionais. É preciso primeiro preparar essas mulheres para assumirem a função. E eu tenho certeza de que depois elas farão voos com muita tranquilidade e que os passageiros vão todos ficar satisfeitos”. E foi exatamente isso que aconteceu. E eu fiquei feliz.
Depois de toda essa luta pela promoção das mulheres, fui para a base de Los Angeles. Fiquei lá durante muitos anos. A minha hora de promoção passou porque eu estava no baseamento. Quando voltei, fui promovida e atuei como Chefe de Equipe durante apenas oito meses. Já estava na hora da minha aposentadoria. Mas eu me sinto gratificada, me sinto feliz porque conseguimos o direito à promoção. Eu tinha lutado por isso.
Outras conquistas
Também lutei por outras questões menores, como o direito da mulher fazer reserva no aeroporto semi-uniformizada, como os homens faziam.
Mas isso não deu certo, pois elas não corresponderam: algumas chegavam de shorts, sem maquiagem, de cabelo lavado, esqueciam documentos... Agiram de uma forma muito irresponsável. Na verdade, se pensarmos no conjunto, até um tempo atrás a grande maioria das brasileiras não eram profissionais como deveriam ser. Elas não levavam a profissão com a seriedade que deveriam levar. Elas queriam as vantagens, as regalias dos cargos, mas não gostavam das obrigações que o exercício dos cargos exigia. Elas preferiam se sentir charmosas, cheias de dengo...
Esse ponto de vista eu já tinha antes de sair daqui do Brasil, principalmente porque dentro do avião, nos hotéis, nos pernoites, se discutiam pontos de vistas e as moças faziam colocações com razão, mas na hora que o avião chegava ao Rio de Janeiro, elas iam para casa. Já os rapazes iam até a empresa levar e discutir os problemas. É esse o lado difícil da nossa profissão.
Depois, morando na América e conhecendo muita gente, inclusive tripulantes, vi que as moças americanas não abrem mão de participar dos debates e discussões sobre suas carreiras. Elas comparecem e participam, têm voz ativa. A nossa moça, brasileira, tem a tendência de, mesmo estando de folga, não comparecer. Ela não se posiciona ativamente, não luta pelos seus direitos. Então, muitas coisas que elas conseguiram, não foi porque lutaram, simplesmente ganharam.
Nostalgia
A aviação era muito diferente daquela que hoje conhecemos. Os voos eram muito cansativos, mas era um cansaço diferente, porque os aviões eram menores, os passageiros eram mais educados, e a cultura, dentro e fora da empresa, era outra. As pessoas que viajavam eram menos exigentes, menos egoístas e mais solidárias. Eu me lembro desse tempo com nostalgia. Cada viagem era uma festa, uma grande aventura. Não tínhamos os problemas que hoje temos.
A aviação se tornou transporte de massas. Antigamente as pessoas até trocavam de roupa durante uma viagem, queriam estar bem arrumadas. A gente renovava o penteado e a maquiagem. E a preparação, anterior à viagem, também era grande. No dia do voo, íamos para o cabelereiro, cuidávamos da pele, do cabelo, das unhas. Era um cerimonial. Havia romantismo, levávamos roupa bonita para usar nos pernoites, nos arrumávamos para ir jantar em certos lugares. Eu gostava do ritual de me preparar para viajar, de me sentir em plena forma, e, na hora em que fechavam a porta do avião, podia pensar: “Agora, a aviação está conosco, vamos poder arrumar tudo bonitinho, estamos em casa”.
No final da viagem víamos os passageiros contentes e sorridentes por terem feito uma boa viagem e chegarem ao destino que queriam. Era muito bom e é verdade que a gente tinha muito mais tempo para descansar, para passear e ir visitar o que quisesse. Era uma época fantástica! Isso já não existe mais. Hoje tudo é diferente, a aviação é muito mais dinâmica e a nossa escala de voo é bem mais apertada. Mudou a época, mudou a mentalidade, mudou tudo!

Mudanças na Varig X perfil profissional
A aviação foi se desenvolvendo e as mudanças na Varig foram muitas, principalmente nos últimos 12 anos. Com o crescimento da empresa e com a expansão das rotas, surgiu a necessidade de contratar muita gente em pouco tempo. Contrataram muitas pessoas sem qualificação para a profissão. Foram fazendo concessões na seleção de novos candidatos, admitindo sem o rigor que antes existia. Os cursos perderam aquele aprofundamento e a atenção que se tinha por parte da chefia também foi diminuindo. O quadro de comissários cresceu muito, meio sem controle e o sistema chefia-funcionário começou a mudar: muitos problemas que ocorriam a bordo, já nem sequer eram levados à chefia, pois não havia tempo para se resolver tudo.
Em muitos aspectos, acho que os administradores deixaram passar coisas demais. A empresa foi se diversificando, começaram a dar prioridades a outras áreas. Os nossos assuntos, que eram importantes dentro da organização do serviço de bordo, ficaram em segundo ou terceiro plano. Os colegas mais novos encontraram mais dificuldades, pois não tinham o mesmo tempo de treinamento que os mais antigos. E a chefia não tinha mais tempo adequado para atender cada um deles.
Eu fui instrutora durante muito tempo e lembro que no início se dedicava um bom tempo para treinar e orientar o novo comissário. A gente começava a prepará-lo antes mesmo de ele fazer o primeiro voo. A gente se encontrava antes e explicava como ia ser a viagem. “Vai ser assim durante o voo, nós vamos servir isso e aquilo. Depois, na cidade, o clima vai ser tal, e sugeríamos que levasse determinado tipo de roupa.” Dávamos uma orientação completa para a pessoa que ia fazer o primeiro voo. Ela chegava ao avião e a gente dizia: “Fique tranquila por que estamos aqui do teu lado; vá fazendo as coisas e se tiver alguma dúvida venha nos perguntar. Se não souber, nós mostraremos como se faz e depois você procura fazer do mesmo jeito”.
Tudo mudou a tal ponto que depois as Comissárias e os Comissários entravam no avião sem nenhuma instrução e dependiam da boa vontade dos colegas. Às vezes, podiam aprender com um colega mais antigo que estava satisfeito e gostava do que fazia, mas também podiam encontrar outro, bem diferente, que não gostava do que fazia. Podiam, também, encontrar um colega que dizia “a minha função aqui não é te ensinar, eu não sou pago para isso”. Como consequência, os mais novos foram fazendo o trabalho à sua maneira e perdeu-se o padrão Varig que antes existia.
Eu tinha experiência na profissão e exercia cargo de confiança, por isso mesmo, não me omitia nas reuniões de Chefia e dizia o que pensava, embora nem todos gostassem de minhas observações. Quando isso acontecia, eu acrescentava: “Feliz é a empresa que tem funcionários que reclamam em prol da própria empresa! Quando todos silenciarem é por que já perderam o interesse”.

Diretoria do Serviço de Bordo X Diretoria de Operações
Com a extinção da Diretoria do Serviço de Bordo, a Diretoria de Operações passou a cuidar das questões dos Comissários. Eu achei lamentável a extinção da Diretoria do Serviço de Bordo na Varig. Perdemos muito. Como tive a chance de trabalhar na Panair do Brasil, posso fazer a comparação. Lá, quando tínhamos alguma dificuldade, não tínhamos uma chefia independente que pudesse entender nossos problemas. Na Varig nós tínhamos isso. É claro que não se tem o chefe que se quer, mas sim o chefe que a Empresa decide ter. Para uns ele agrada mais, para outros não agrada tanto. Ninguém consegue agradar todo mundo. Mas o importante é ter uma pessoa que está batalhando, vendo e defendendo o nosso ponto de vista. Uma pessoa que ouve os nossos problemas, que entende o que estamos dizendo e que procura nos ajudar a resolver.
Hoje, não estou mais voando, mas posso acreditar que, se uma comissária chegar para um comandante e contar para ele o que acontece na cabine de passageiros, ele não consegue visualizar o problema porque o ambiente de trabalho dele é completamente diferente. Ele não tem essa experiência para entender o que a comissária quer dizer. E principalmente porque a função do técnico é técnica. A função dele pode ser medida. Ou ele sabe trabalhar ou não sabe. Não existe um engenheiro de voo que conheça mais ou menos o avião. Ou ele conhece ou não conhece; se conhece apenas a metade, ele não está apto para trabalhar. O piloto necessariamente tem que ser um bom piloto, mesmo que não seja simpático. São pesos e medidas diferentes.
Nós podemos ter um comissário que tecnicamente não é perfeito, mas é extremamente agradável com os passageiros, tem boa vontade e os atende bem. É solícito, é prestativo, embora às vezes falhe na parte técnica. Mas nós é que sabemos que é para fazer isso ou aquilo.  Nós é que sabemos quais são as normas da empresa e as sequências do serviço. O passageiro não percebe essas coisas, ele quer é ser bem tratado. A não ser que a falha seja muito grande. O que o passageiro percebe é o atendimento, é o lado humano do comissário. Ele pode ser aparentemente muito bonito, falar idiomas, estar impecável, mas não ser delicado com os passageiros. Ele pode escutar o pedido do passageiro e pela fisionomia dele o passageiro percebe que ele não gostou, que não tem vontade de atender. São coisas muito sutis que a gente precisa anos de vivência para perceber no olhar, na fisionomia, no gesto, se o comissário é um bom profissional e gosta do que faz.
Como é que uma pessoa técnica, que sempre mexeu com botões e comandos, pode avaliar isso numa pessoa? Por mais fantásticos que sejam, eles não têm essa vivência. O comissário antigo pode ficar lá atrás no avião e perceber quem está fazendo o seu trabalho com empenho e dedicação, quem agradou ou desagradou o passageiro. São anos de vivência. E temos que considerar que cada pessoa é um mundo e traz uma bagagem consigo, com suas próprias características. A gente não pode padronizar os gestos, as fisionomias, os sorrisos das pessoas. Então é preciso entender e aceitar cada pessoa. São coisas muito delicadas. E uma pessoa que não está familiarizada com isso pode fazer um mau julgamento, pode criar uma situação injusta.
Casamento, filhos
Na época em que entrei para a aviação, a aeromoça não podia casar nem ter filhos. Se ela quisesse casar, teria que se desligar da empresa ou seria demitida. Então, até podia viver junto com alguém. Depois a empresa aceitou que ela casasse, mas não podia ter filhos. Se engravidasse perderia o emprego. Mas muitas comissárias engravidaram e para as empresas foi um problema de difícil solução. A gravidez afastava a comissária da função e a vaga tinha que ser preenchida por outra. Como fazer isso?
Nós tivemos muitas brigas na empresa, discussões na Chefia, debates calorosos, até fora da hora de serviço. A empresa investia muito na formação de uma comissária e esta se tornava uma excelente profissional. Mas, se ela casasse e tivesse filhos, que são direitos da mulher, pois é a sequência natural da vida, a empresa teria que esperar um longo tempo até ela regressar ao trabalho. Então a empresa tinha que fazer uma escolha. Valia a pena esperar o retorno da comissária ao trabalho? Ou não! Afinal, depois da gravidez, a comissária ainda poderia dar muitos anos de excelentes serviços, sem contar com o investimento que a empresa tinha feito em cima dela, durante sua formação profissional.
Havia também a questão da mãe comissária. Será que ela iria faltar em muitos voos se o filho ficasse doente? Ou ela iria voar preocupada com o filho pequeno que deixara em casa e uma série de outras questões. Nós defendíamos os direitos das comissárias e sustentávamos que elas eram responsáveis e que valia a pena a empresa fazer a experiência para ver o que ia acontecer. Se a comissária agisse de forma irresponsável, então ela não ficaria na empresa. Mas devíamos dar uma chance àquelas que queriam viver uma vida bem estruturada, porque isso ia ser bom para todos.
A fase difícil veio depois, quando a porcentagem de comissárias grávidas se tornou grande em relação ao grupo de voo e as vagas tinham que ser preenchidas. Esse era um grande problema e tivemos muitas reuniões e discussões, porque as comissárias eram transferidas das linhas nacionais para as internacionais com a finalidade de preencher as vagas das colegas que estavam em casa de “licença maternidade”. E depois elas tinham que voltar para linhas nacionais porque as comissárias que voltavam da “licença maternidade” queriam seus lugares de volta. E o que fazer com as novas comissárias que tinham sido admitidas para preencher as vagas nas linhas nacionais? Como resolver tudo isso?
Foram muitas as discussões na empresa sobre essa questão da mãe comissária. E eu me posicionei contra as colegas que voltavam da licença maternidade e achavam que deviam recuperar o seu lugar, sem se importar com o que acontecesse com as outras que as substituíram. Lembro-me do que disse naquela época: “Não tenho nada contra as comissárias que estão casadas e que têm filhos, mas essa é uma opção de vida que elas fizeram. Falo em meu nome e em nome de muitas outras, que são solteiras e que não têm filhos, ou que eventualmente não estão pretendendo ter filhos. Essas pessoas não devem ser atingidas pela opção de vida que outras fizeram, mesmo porque isso aqui é uma empresa e todo mundo luta e compete para conseguir galgar os cargos e chegar ao topo da carreira. Então não acho justo que uma comissária, que veio aqui preencher uma vaga de outra que foi tratar de um assunto particular, agora tenha que voltar para o seu antigo cargo porque a outra quer o seu lugar e aquela que foi admitida na nacional tenha que ser demitida”.
As demissões nunca chegaram a acontecer, mas ficou acertado, para o desagrado de muita gente, que quando elas retornassem da licença maternidade iriam voltar para o avião que tivesse vaga. Em princípio, muitas iriam até voltar para a Ponte Aérea para poder ficar perto de casa e não se afastar tanto do neném.  Muitas até quiseram ficar na Ponte Aérea, mas então já não havia mais vagas, pois outras na mesma situação a ocupavam. Chegou uma hora em que as vagas na Ponte Aérea não eram suficientes para todas as moças que tinham filhos recém-nascidos. Isso gerou um problema para a empresa. Era muita gente de licença e muita gente que precisava ser admitida para substituí-las. Depois elas voltavam e não gostavam de ter que voar no avião que tinha vaga no setor doméstico. Aos poucos, as coisas foram se acomodando.
As pessoas precisam ser justas, olhar com objetividade, apesar de que a lei trabalhista lhes dá o direito, mas aquelas que foram tratar de um assunto particular de suas vidas não podem prejudicar outras pessoas. Essa questão sempre foi muito delicada, mas bem ou mal foi sendo administrada. O resultado é que temos excelentes profissionais que puderam criar seus filhos e continuam sendo boas funcionárias. A empresa não perdeu nesse investimento.
Maternidade
A conciliação nunca foi fácil. Havia moças mais sensíveis que sofriam muito ao se afastar de seus filhos pequenos. Quando estavam nos pernoites, telefonavam para saber se os filhos estavam bem. A estrutura emocional de cada pessoa é diferente. Muitas não tinham apoio familiar na criação dos filhos. Houve moça que, sendo solteira e tendo filho pequeno, tinha que sair para voar e deixar o filho com uma empregada que ela mal conhecia. Deixava a casa e o neném nas mãos dessa pessoa. E se a empregada não aparecia no dia do voo ela tinha que correr para pegar o ônibus e deixar o filho com a família que morava distante e voltar de ônibus para assumir seu voo. Imagine o seu estado emocional quando entrava no avião!
No meu caso, nunca pensei em casar e ter filhos. Abracei a profissão totalmente. Sempre parti do princípio que, para ter filho, a pessoa precisa em primeiro lugar uma casa bem estruturada, um ambiente familiar muito bom, e eu não tinha isso. Eu também não estava correndo atrás disso. O emprego e a vida que eu levava eram mais importantes para mim.
Baseamentos no exterior
Meu primeiro baseamento foi em Lisboa. Fiquei poucos meses lá. Foi uma boa experiência. Pude ver o ritmo de vida das pessoas que lá estavam. E, por sinal, um ritmo bastante puxado. O avião decolava por volta de uma da tarde e retornava de madrugada. E a gente voava muitos dias por semana.
Depois fui para Los Angeles, fiquei lá uns dois anos e meio. Voltei para o Brasil e fiquei aqui um ano e meio. Retornei a Los Angeles e fiquei lá uns nove anos. O primeiro baseamento em Los Angeles foi uma festa porque era voar e passear, conhecer, andar por toda parte.  Não tanto pela América toda, mas pelos arredores. Ver o que tinha, observar o ritmo de vida totalmente diferente.
O Japão também foi uma novidade muito grande. No Japão a gente não morava. Apenas visitava. Há coisas do Japão que eu achei muito boas por estar lá passeando. Como não morava lá, não podia avaliar as dificuldades que o povo encontrava para chegar onde estava, em termos de desenvolvimento econômico.
A vida na América do Norte é muito fácil. A América é, em princípio, estruturada para que uma pessoa consiga fazer tudo o que ela quer sem precisar incomodar ninguém e sem precisar da ajuda de ninguém. Tudo funciona. Se você vai numa loja, as coisas estão lá expostas e inclusive as informações que você precisa; não precisa chamar ninguém para atender. As instruções de como se usa e como se monta vêm junto com o produto. Até móveis você pode comprar em peças e montar você mesmo. Tudo é feito para que você possa viver sua vida, fazer suas coisas com muita praticidade e facilidade. O sistema funciona de forma bem organizada. Eu me adaptei rapidamente porque também sou uma pessoa muito organizada e prática. Planejo bem a minha vida. Tudo é muito fácil se você entender e entrar no esquema de vida deles. Se pesquisar você pode fazer o que quiser.
Durante meu segundo baseamento, no tempo em que fiquei lá, inclusive como Chefe da Base, estive sempre ligada ao pessoal do voo. O meu horário era totalmente à disposição da Varig, 24 horas por dia, sábados e domingos. Sobrava pouco tempo para fazer outras coisas e me relacionar mais. Eu gostaria de ter feito outras coisas. Mas isso exigia participação constante e a vida na aviação não permite esse tempo. Pode dois dias, três dias não pode. Mas foi um período maravilhoso porque cresci muito. E mesmo no serviço, no relacionamento com os colegas, aprendi muito.
Era gratificante trabalhar com os colegas porque eu achava que estava podendo ajudar as pessoas. Esforçava-me para fazer o melhor que podia. Durante um período eu fazia o serviço de escritório e ainda cumpria a escala de voo normal. Chegava de um voo e, às vezes, ficava no escritório mesmo de uniforme e no dia seguinte levantava às seis horas e às oito horas já estava no trabalho, mesmo com a diferença das 17 horas de fuso. Isso eu fiz o tempo todo. E muitas vezes tinha que ir ao escritório nos fins de semana, porque tinha problemas com tripulantes ou troca de tripulação.
Muitos fins de semana eu fiquei sozinha no escritório num edifício comercial vazio. Mas eu achava que estava fazendo uma coisa boa, apesar de ser, muitas vezes, mal entendida, mal compreendida pelo pessoal. Mas tenho consciência de que fiz o melhor que eu pude e da maneira mais honesta, mais imparcial possível. Nunca abri exceções, nunca procurei proteger A, B, ou C. Muita gente levou a coisa na brincadeira, achou que estava no baseamento de férias e que a escala tinha que se acomodar com a vida deles. Tive muitos problemas. Atendi pedidos na confiança e na hora faltou gente para voar. São situações difíceis, mas que nos fazem aprender muito sobre as pessoas. Quando menos se espera, não dá para confiar. Tem que ser tudo escrito e assinado, o que é triste, mas tem que ser assim para a gente se proteger.
Eu cheguei a ter namorado americano, do interior, aquele de cabeça muito pura. O pessoal mais do interior é maravilhoso. A gente faz um julgamento muito errado se disser que o americano é frio, é isso ou aquilo só porque a gente o conhece de passagem nas cidades grandes. O pessoal das cidades menores é muito unido, tem muito calor humano. A gente frequenta a casa deles e é uma maravilha! Sempre com um nível de muito respeito, ninguém avança o sinal, respeita a privacidade de cada um. 
Meu relacionamento com minha família durante esse tempo todo foi constante e muito bom, apesar da distância. Eles sempre ficaram tranquilos em relação a mim porque achavam que eu me defendia com muita facilidade. A gente se falava muito, mas eu não ia visitá-los com muita frequência. Eles eram muito agarrados lá no Sul e não viajaram muito comigo. Convidei muitas vezes meu pai para ir à América, mas ele não aceitou.
Retorno ao Brasil
O retorno ao Brasil foi bom e ao mesmo tempo difícil. O mais difícil para mim é essa diferença de estilo de vida. A mentalidade do povo brasileiro é muito diferente. As pessoas lá na América do Norte são um pouco mais sérias, são mais honestas. Se a pessoa assume um compromisso com você pode ter certeza de que ela vai cumprir. Aqui tudo é imprevisível, as pessoas são muito irresponsáveis. Isso é cansativo e desgastante e a gente perde muito tempo. Enquanto eu estava lá, cheguei a ter planos de ficar morando lá. Eu pensei: “O Brasil, por mais que se esforce, não vai chegar a ter a qualidade de serviços de atendimento que existe aqui. Pelo menos não no meu tempo de vida”. Então, para mim era compensador ficar morando lá. Por mais que o Brasil melhorasse, enquanto eu vivesse, não alcançaria o nível de vida que os americanos alcançaram. Era assim que eu pensava. 
Mas a vida não é só feita de facilidades. A gente também consegue viver com dificuldades e coisas desagradáveis, quando pode ter mais calor humano e a amizade das pessoas que a gente gosta. A gente tem que botar na balança e ver o que vale mais na vida, o que se leva da vida: se é a facilidade de viver ou se é o relacionamento humano. Eu entendo que o relacionamento humano pesa muito mais. Cheguei a essa conclusão já nos últimos anos, antes de vir embora. Três ou quatro anos antes, quando estava na condição de poder definir minha situação por lá, cheguei à conclusão de que era melhor voltar ao Brasil. É muito bom se transferir para um país estrangeiro quando se é jovem, pois o entrosamento cultural é mais fácil. A gente vai achar graça das mesmas coisas, ter os mesmos valores. Mas isso não acontece quando se tem 50 anos de idade.
Voltei para o Brasil um ano antes de me aposentar. Quem estava no baseamento não tinha direito à promoção. Era uma norma da Empresa e eu a respeitava, embora muitas vezes eu trabalhasse como Chefe de Equipe lá no baseamento. Era minha opção ficar morando em Los Angeles, eu sei. Mas isso não invalidava o meu direito de ser promovida quando voltasse.
Ao voltar ainda voei meio ano como supervisora. Verdade é que nesse ponto eu fiquei bastante magoada, porque a alegação que me deram era de que não havia vaga para eu atuar como Chefe de Equipe na época em que voltei. Mas essa alegação não procedia porque uma pessoa saiu daqui para ser Chefe de Equipe lá no baseamento. Então, a vaga dela abriu aqui e essa vaga tinha que ser minha, porque a minha promoção já estava atrasada há mais de 12 anos. Eu havia sido chamada para ser Chefe de Equipe, tinha feito todos os testes necessários, mas abri mão da promoção para ir ao baseamento.

Promoção X decepção
Ocupei, por muitos anos um cargo na América do Norte em que respondia pela empresa, fazia contratos em seu nome, pagava contas da empresa e inclusive respondia por problemas de colegas nossos junto à polícia, junto ao FBI. Ao voltar para o Brasil, tive que fazer um teste com uma psicóloga para saber se eu era qualificada para ser Chefe de Equipe! Nessa ocasião eu fiquei decepcionada porque não era reconhecida por tudo que havia feito. E, na verdade, a entrevista com a psicóloga, que era uma moça muito jovem, não chegou a ser uma entrevista porque eu falei para ela tudo o que ela não sabia a respeito da aviação. Contei para ela coisas que ela nem imaginava, como eram as entrevistas de antigamente, como eram as coisas dentro da empresa.
Além disso, eu entendo que uma psicóloga nova não está qualificada para avaliar o tripulante, porque ela está cheia de teoria, não tem experiência nem vivência e muito menos da nossa profissão. Como é que ela pode avaliar o desempenho de um comissário dentro do avião, numa hora de emergência ou num tumulto numa cabine com 300 passageiros? Ela não tem essa condição; falei isso para ela. Disse que respeitava a profissão dela, o sistema da empresa, mas que eu achava tudo errado. E disse para ela: “Imagine você, com todo o conhecimento que tem, que no meu entender é teórico, se estivesse numa cabine com 300 passageiros e houvesse um problema sério lá dentro, o que você faria? Nada! Então, como é que você pode avaliar e julgar um comissário que desempenha essa função lá dentro há muitos anos?” Ela entendeu, disse que eu tinha batido num ponto muito sério e que era preciso pensar.
A conversa foi muito boa! Ela me perguntou muita coisa e procurou saber de mim o que podia. E eu fiquei até um pouco mais conversando com ela para ela saber um pouco mais sobre o nosso trabalho. Teve um teste individual e um em grupo, com pessoas bem mais jovens do que eu na empresa. Eu até tinha que me segurar porque a minha experiência dentro da empresa era muito maior que a deles. Eu podia até deixar as pessoas em situação constrangedora.

Chefe de Equipe, primeiros voos
O meu primeiro voo como Chefe de Equipe foi uma experiência como todas as que se faz pela primeira vez. Com todos os anos de voo que tenho, sempre respeitei quando alguém mudou de posição ou função dentro do avião. Respeitei, nos primeiros voos, a insegurança da pessoa. Por mais experiência que se tenha, a primeira vez é sempre diferente. Só que lá em Los Angeles eu já tinha feito voos como Chefe de Equipe, mas sempre numa situação um pouco diferente. Era a Chefe da Base e o pessoal me dava muito apoio, pois sabiam que eu estava ali para completar a tripulação do voo. Aqui, o tipo de passageiro era muito diferente e a empresa vivia uma situação mais difícil.
Cheguei aqui no Rio de Janeiro numa época muito tumultuada: os passageiros estavam muito revoltados, reclamavam, falavam mal, destratavam o tripulante. Havia muito atrito entre os tripulantes e todo mundo andava muito nervoso. Eu achei aquele ambiente muito louco! Era difícil botar ordem naquilo! Era uma garotada nova, muito indisciplinada, que não tinha tido o devido treinamento. Era até difícil falar com as pessoas. Elas não respondiam da mesma forma. Por isso o meu primeiro voo como Chefe de Equipe foi bastante cansativo, pois muitas coisas não funcionavam direito e a gente ficava sem saber o que dizer para os passageiros. Quando eu ia à cabine de comando, não conhecia ninguém, todo mundo era novo. Foi uma situação nova e muito tumultuada para mim. Mas depois dos primeiros voos tudo foi se normalizando.
Em relação à empresa foi muito difícil por causa dos atrasos nos voos, das coisas que não funcionavam, do material que era insuficiente ou inadequado. E tinha tripulante que subia e descia em todas as escalas. Uma confusão! A gente não sabia quem fazia parte da tripulação, coisas que na minha cabeça eram inadmissíveis numa empresa de aviação.
Como Chefe de Equipe eu não fazia o briefing com os colegas em todos os voos. Não tinha nem condições. Era tudo tão tumultuado, tão desorganizado! Uma tripulação técnica que ia até São Paulo, desembarcava e vinha outra que a gente nem sabia se fazia parte, e os passageiros já estavam a bordo. Com passageiros a bordo, já não tinha condição de reunir os colegas para falar sobre o voo. Uma situação totalmente confusa! Eram raras as vezes em que a gente podia reunir a turma e conversar. E a gente não conhecia os colegas do voo, nem os nomes deles, nem se estavam todos dentro do avião. O pessoal entrava e não se apresentava. Era uma coisa chocante! Foi uma fase muito difícil! E não se via mais o respeito pela hierarquia e pela antiguidade.
A garotada nova não tinha a menor consideração pelas pessoas antigas, nem sequer pelo Chefe de Equipe. Isso ainda é uma coisa que se pode trabalhar e mudar. A hierarquia tem que voltar a ser a fundamentação da aviação, tem que ser respeitada. Eu vivi situações de desrespeito comigo que me deixaram muito constrangida, numa posição desagradável de ter que tomar atitudes, de não conseguir entender a pessoa que não tem consciência do que está fazendo, que não respeita um colega que já tem 30 anos dentro da empresa. Isso é uma coisa que precisa ser passada ao pessoal mais novo para que eles mesmos, no futuro, sejam respeitados. O respeito cria um ambiente mais agradável para todo mundo. É uma questão de falar e alertar, e é muito importante.
Idade ideal para a aposentadoria
Acho que depende de cada um, o fato de uma pessoa ser vaidosa e saber se cuidar. Isso independe de estar na aviação ou não. A maneira como envelhece depende da pessoa. Se ela se desleixa, perde a boa aparência. Acho que nós na aviação somos muito respeitadas, somos vistas como pessoas que trazem uma colcha de experiências muito grande. Podemos trabalhar até os 55 anos com tranquilidade.
A Vasp obrigou as comissárias a se aposentarem aos 45 anos e eu acho que é uma discriminação. Elas devem lutar pelos seus direitos, entrar na justiça e provar que entraram na profissão quando eram jovens. Elas envelheceram lá dentro, trabalhando para a empresa. Aos 45 anos estão no meio de uma carreira e ninguém pode tirar esse direito de chegar até a aposentadoria. Depois dos 40 anos, que profissão elas podem ter se não se qualificaram em outras áreas?
A Panam fez isso com as comissárias e demitiu uma porção delas por considerar que eram muito antigas. Elas brigaram na justiça durante seis anos e ganharam. A empresa teve que readmitir todas, do jeito que elas estavam, gordas e de cabelo branco. Elas ganharam o retroativo e a empresa teve que posicioná-las.
Falei com algumas delas que encontrei no restaurante dos funcionários da empresa. Cheguei a pensar: “Mas que gentileza, os tripulantes trouxeram as mães junto para o pernoite”. Graças a Deus não comentei, porque depois fiquei sabendo que eram as tais comissárias que a Panam tinha demitido por achar que já estavam velhas. Elas brigaram seis anos e venceram: “Agora a empresa vai nos engolir como nós somos. Se ficamos neste estado foi por culpa dela. Perdemos o emprego numa idade em que não podíamos mais competir em outras áreas e foi na empresa que gastamos a nossa juventude”.

Contratos de trabalho temporários
Na Varig, na área de Recursos Humanos, estão querendo mudar o contrato de trabalho. Querem contratar as comissárias por alguns anos apenas, e se a comissária se mantiver dentro do perfil ela pode continuar mais tempo. A empresa está querendo se renovar, mas não pode renovar os mais antigos... Eu acho crítico esse contrato por tempo determinado, pois se você dedica 10 anos para uma empresa de aviação, em um tipo de profissão que não serve para nada depois, como vai ser a continuação profissional? Depois desse tempo, e com certa idade, vai ser difícil conseguir outro emprego, ainda mais no nosso país onde a porcentagem de gente jovem é muito grande. Que emprego você vai conseguir depois de trabalhar num avião? Se for assim, a empresa também não vai poder exigir que a comissária se dedique totalmente à empresa.
Seria mais certo fazer o que as empresas do oriente fazem em muitos países: contratos de apenas dois anos. Eles querem uma renovação constante e são mais honestos fazendo esses contratos curtos. O jovem entra sabendo que depois de dois ou três anos vai ter que escolher outra profissão, que não é ali que vai fazer carreira. Mas acontece que nas empresas orientais tem um grupo, em geral de rapazes, que vai assumindo os cargos de Supervisor de Cabine e Chefe de Equipe, que comandam os jovens inexperientes. São eles que decidem e na mentalidade deles isso é normal. Tem que ter alguém com experiência dentro do avião. Eu sou contrária a essa ideia, porque num momento crítico, como numa emergência, esse monte de garotinhas novinhas vai entrar em pânico e não vai resolver coisa alguma e aqueles dois rapazes experientes não vão dar conta de cuidar de um avião inteiro.
Durante décadas, a Varig cultivou a dedicação completa de seus funcionários nessa profissão. Eles cortaram o sonho das pessoas de abraçar outras carreiras. Estavam errados porque se eventualmente alguém tivesse um problema de saúde, incompatível com o trabalho na aviação, teria chances em outra área. As pessoas precisam proteger o seu futuro, não podem ficar em função das ideias de um chefe, que mudam quando muda o chefe. A vida está passando, a carreira está passando. Quando estiver numa dificuldade quem vem ajudar?
Uniforme, imagem da Comissária de Voo
A figura da Comissária de Voo ainda cria muita fantasia. Graças a Deus, posso dizer que tive muitas cantadas, mas nunca tive envolvimento com passageiro. Uma coisa que senti e que li muito a respeito é que no momento em que vestimos o uniforme, em qualquer profissão, nos sentimos mais protegidos. Se for lidar com o público, o uniforme é como um escudo de proteção para tudo.
Essa problemática toda, da imagem da comissária, também existe por que nos últimos anos se viu muitas moças abandonarem o seu cuidado com a aparência pessoal. Em alguns casos, as mais velhas estão se cuidando mais, porque a competição está muito grande. A novinha não precisa nem de maquiagem porque está de cara lisinha. Isso em qualquer lugar. Então, a mais antiga tem que se produzir mais e se tornar mais charmosa. A causa disso tudo foi a quantidade de gente nova que entrou para a aviação. Houve um tempo em que as mais antigas relaxaram, engordaram, não cuidavam do cabelo.
A empresa precisa exigir esse cuidado com a imagem. A gente costumava dizer: “A imagem da comissária é a imagem da empresa”. Quando ela estiver à paisana pode andar como quiser. Uniformizada ela representa a empresa. Nos pernoites também, ela está sendo paga. Tudo isso precisa ser conscientizado, com palestras e orientação. Mas tudo isso foi abandonado nestes últimos anos. Quando entrei na Panair, e mesmo na Varig, tudo era muito diferente. As pessoas, em qualquer profissão, precisam de regras e orientação.

Discriminação
Posso dizer que fui até muito invejada. Tive vizinhas que me viam sair com as malas, bem arrumada, e diziam: “Isso é que é vida!”. Elas viam só a parte bonita da profissão, não viam o outro lado. Mas para elas o que existe é o “charme” de sair sempre arrumada, sempre sorridente e atenciosa.

A figura do Comandante
Eu sempre vi no comandante uma pessoa que merece respeito porque ele tem uma responsabilidade muito grande dentro do avião. Mas há comandantes e comandantes. Ele pode ser tecnicamente maravilhoso e socialmente nem tanto. E a gente não pode julgá-lo por isso. O principal é que ele nos transporte com segurança. Sempre tive bom relacionamento com todos eles e sempre fui tratada com muito respeito.
Vi casos de comissárias que se envolveram com comandantes. Em qualquer ambiente de trabalho, onde há relacionamento humano, isso acaba acontecendo. Nós passamos muito tempo juntos, passamos dificuldades juntos e isso nos aproxima uns dos outros. Se alguém passa mal no pernoite você socorre, ajuda. Se a pessoa tem problemas familiares ela desabafa e você passa horas escutando. A chance de aproximação é bem maior, mesmo que seja só uma questão de amizade. Pensando bem, é uma profissão que nos permite ter uma riqueza em termos de relacionamento. É um lado muito bonito e muito bom da profissão.
Muitas vezes é difícil para o pessoal de terra entender esse relacionamento que temos com os colegas do voo. Numa hora difícil, podemos dispor daquele tempo para ficar escutando alguém, sem conhecer ninguém da família dele, e sendo totalmente neutros na escuta. A confiança que podemos depositar uns nos outros é grande e isso aconteceu muito comigo. Eu escutei muitas histórias trágicas e depois não vi mais a pessoa. Sempre aprendemos com isso. Vemos uma pessoa e não imaginamos que, por trás do semblante risonho, ela pode estar vivendo um grande drama.

Situações de emergência
Tive uma, ainda na Panair, no tempo do Constellation. Eu era bem nova e estávamos voltando de Belém quando tivemos pane hidráulica. Era uma situação em que o flap não abaixava - o trem de pouso não abaixava. No antigo Constellation tinha um lugar no chão do corredor do avião que tinha uma tampinha onde tinha uma manivela que a gente ficava rodando para os flaps abaixarem manualmente. Aquilo criava um susto enorme nos passageiros. Como convencê-los de que estava tudo tranquilo e normal? Isso aconteceu uma vez. Mas conseguimos transmitir tanta segurança para eles que acabamos tendo problemas.
Na hora de pousar o avião, o trem de pouso não baixou e o comandante teve que fazer uma volta e todo o flap recolheu novamente e nós tivemos muito pouco tempo para fazer todo o procedimento de novo. Tivemos que usar muita força e fizemos revezamento entre os colegas. Finalmente conseguimos baixar o flap e o trem de pouso baixou.
Mas na hora da confusão foi difícil conseguir que os passageiros se sentassem e afivelassem os cintos. Enquanto isso, o aeroporto do Galeão estava interditado, só aguardando o nosso avião pousar, pois não sabiam o que ia acontecer. Depois do pouso, o avião saiu da pista.
Num outro voo, tivemos um princípio de fogo no trem de pouso em Lisboa. O fogo foi apagado em terra, depois do pouso. Em outra situação, chegando a Nova York, passamos por um furacão.  Foi um tumulto a bordo, ninguém sabia o que estava acontecendo e o problema não aparecia no radar. Os comissários com as bandejas caindo em cima dos passageiros, as jarras caindo em cima de todo mundo, os passageiros gritando a bordo. A sujeira se espalhou pelo avião e ninguém quis mais nada, só ficaram em pânico, assustados.
Também em Nova York, uma vez, a gente foi pousar com nevoeiro e o avião pousou fora da pista, bateu com as turbinas no chão, o trem de pouso entrou no avião, foi muito ruim. Nesses casos todos ninguém se machucou, foi só o susto. Todo mundo ficou branco como cera e na hora de levantar nem as pernas queriam sair da cadeira. Mas eu sou uma pessoa com muita sorte.

Questões de saúde
Com base nos exames e check-ups que foram feitos, para minha sorte, ao sair da aviação, eu estava inteira. Não tenho absolutamente problema nenhum. Então, eu considero que a pessoa pode se proteger e que a saúde depende dela. A nossa profissão realmente afeta a saúde, mas vai depender de cada um, tirando o fato de a pessoa ter algum problema no organismo que independe da profissão.
Normalmente, quando se entra para a aviação estamos saudáveis. Então vai depender de cada pessoa. Se levar uma vida regrada, quando está em terra, se se alimentar e descansar adequadamente e praticar algum tipo de esporte, não terá problemas. É importantíssimo para quem trabalha na aviação cuidar de sua saúde. Eu cheguei inteira no último voo.
Agora, estou entrando na academia novamente. Nesses anos todos, em que morei em Los Angeles, frequentei o Sports Connection. Praticava natação, musculação, alongamento. Caminhava muito na beira da praia e nunca abri mão de fazer isso, mesmo no inverno ou com chuva. É muito importante a gente fazer o voo e não chegar dolorida no final da viagem. Com a musculatura em forma, a gente aguenta levantar coisas mais pesadas.
É preciso dormir na hora que tem sono e comer na hora que tem fome. Respeitar o que o corpo quer, sempre que possível. Evitar entrar no fuso horário dos outros lugares. Nesses anos todos, em Los Angeles, o fuso horário nunca foi problema para mim. Nos pernoites, acordava de madrugada e sempre tinha coisa para ler, bordar e comer. E, às vezes, nem acordava de madrugada. Já estava preparada...
Eu chegava em Los Angeles e acordava às seis horas da manhã. Às oito horas já estava abrindo o escritório. E teve época em que eu fiz Curso de Informática em Long Beach. Saía do escritório, pegava o carro e ia até lá fazer o curso, à noite. Voltava perto de uma hora da manhã e ainda cumpria a escala de voo. Seis meses de informática. Depende da pessoa se programar.

Imagem negativa
Tenho lembrança de uma imagem negativa: ver funcionários antigos saindo muito insatisfeitos com a empresa e serem maltratados na hora de se aposentar. Foram tão desconsiderados depois de trabalhar tantos anos e com tanta dedicação! As pessoas estavam saindo muito magoadas e levavam essa mágoa consigo. Talvez, depois de algum tempo, essa mágoa se apague e as lembranças alegres de tudo o que fizeram e viveram, volte. Isso aconteceu nos meus últimos tempos de Varig.
Percebi que todo mundo estava muito nervoso, por causa da fase que estava sendo vivenciada na empresa. A gente começa a desculpar e a esquecer, mas o exemplo dado aos mais novos não vai se apagar tão cedo. Eles viram o que foi feito com aqueles comissários antigos, que saíram depois de 30 anos de trabalho e de luta em favor da empresa e do nome da empresa. Eles viram e sabem que se arriscam a serem tratados da mesma forma na hora de sair. Eles viram a mágoa dos comissários antigos, que choraram dentro do avião. Isso os mais jovens vão guardar dentro deles e já não vão mais dar tudo de si pela empresa. Eles vão dar o que a lei determina, o que é obrigação, e nada mais. Esse foi o pior exemplo que aconteceu e que eu testemunhei dentro da empresa.
Último voo
O meu último voo foi normal. Só eu sabia que era o último. Não falei para ninguém, mas muitos suspeitavam que fosse o último, pois eu estava para me aposentar. No pernoite cada um chega e tem sua programação, por isso não quis perturbar a programação de ninguém. Na volta é que resolvi tirar fotografias para a posteridade. Aí eles desconfiaram e eu falei: “É verdade, um dia a gente acaba se aposentando”. Mas eu fiz o meu trabalho e participei de todo o serviço.
A despedida ficou bem definida quando nós pousamos em São Paulo. Era a primeira vez que eu voava com aquele comandante e quando nós estávamos chegando a São Paulo, com o avião taxiando perto do gate, depois que eu fiz todos os anúncios de bordo aos passageiros, ele começou a falar. O tempo estava bom e eu até falei para o colega do lado: “O que será que está acontecendo? Por que será que ele está falando numa hora dessas?”. E, de repente, ele começou a falar para todos os passageiros que era o meu último voo, o tempo que eu tinha voado etc.
Todos os passageiros aplaudiram e na hora da despedida eles largavam a bagagem e me davam a mão ou me abraçavam e me desejavam boas coisas. O desembarque não acabava e a turma me deixou lá sozinha. O pessoal do despacho de passageiros já estava aflito com a demora do desembarque sem entender porque os passageiros estavam fazendo aquilo. E depois do desembarque os colegas ainda fizeram uma reuniãozinha. Foi muito bonito, muito bom!
O comandante daquele voo me fez uma linda homenagem. E eu falei para eles que eu estava muito feliz e que desejava para todos eles uma despedida de voo como a que eu estava recebendo. Eu estava saindo feliz, depois de ter voado todos esses anos e ainda inteira para começar uma nova etapa de minha vida. Levava muitas recordações boas. As ruins sempre acontecem na vida das pessoas, mas a gente vai esquecendo. Eu desejava a todos muitos voos maravilhosos.
Estava feliz por ter tido uma profissão maravilhosa. Se fosse começar faria tudo de novo e recomendaria a qualquer pessoa. Cada pessoa nasce com objetivos e prioridades diferentes. Eu sempre fui uma pessoa muito curiosa, gostava de saber como os outros viviam, nos outros lugares, como era a vida deles, como resolviam os problemas e ia aprendendo com tudo o que via. A aviação me deu essa chance.
O bom é que temos o AERUS. Sem ele não dá para imaginar o que seria de nossa vida após a aposentadoria. Trabalhamos numa profissão que, graças a Deus, tem suplementação de aposentadoria. É duro enquanto a gente está pagando, mas depois compensa. Vale a pena o sacrifício, pois não dá para imaginar viver apenas com o que paga o INSS.
Minha despedida foi muito boa. Foi muito emocionante! Como Chefe de Equipe, no final da carreira, eram poucas as pessoas que eu conhecia dentro do avião. Foi ao mesmo tempo muito bom, pois tive chance de conhecer pessoas muito novas, que não me conheciam e que foram muito agradáveis comigo. Foram respeitosas e procuraram saber como tinha sido a minha vida na aviação. Foram muito gentis. No meio da turma nova tem gente maravilhosa, pessoas carinhosas, pessoas ótimas!
                                                                                                      
Pós-aposentadoria
Eu sou muito rápida e objetiva. Sempre fui assim. No dia seguinte, após meu último voo, todos os meus uniformes da Varig já estavam lavados e dentro de um “shopping bag”. Só faltava o uniforme do último voo e no dia posterior eu devolvi todo o material à empresa. O funcionário lá da seção de uniformes ficou até emocionado. Ele me pediu para assinar a folha de recebimento e nem quis conferir as peças que eu estava devolvendo.
De imediato eu tinha muitas coisas para organizar porque, além de ficar muito tempo fora do Brasil, tive um procurador que cuidou das minhas coisas. Tinha que examinar toda essa documentação de anos e anos que estava guardada. Ele cuidou de tudo como se fosse dele. Nessa época eu também estava me mudando, tinha comprado outro apartamento. E ainda estava procurando entender como as coisas funcionavam por aqui. Muita coisa tinha mudado e muitas coisas estavam melhores.
Até agora, um ano e um mês depois de me aposentar, eu não consegui parar. Tem tanta coisa para fazer que não sobra tempo nem para sentar e ler um livro. Quando a gente está voando, a gente vai deixando muita coisa de lado, pois sabe que não vai dar para fazer. Minha primeira opção sempre foi a aviação e outra coisa que me ajudou muito nesses anos todos foi o fato de ser uma pessoa muito organizada. As minhas coisas nunca ficaram para trás. Isso já era uma característica minha. Eu tinha planos, pé no chão, então as coisas sempre funcionavam. Não abriria mão da vida que tive e faria tudo de novo.

Planos para o futuro
No momento ainda estou dando um tempo para me situar e saber realmente o que quero fazer. Estou pesquisando. Estou frequentando uma academia e fazendo aula de desenho e pintura. Comecei depois que me aposentei. A professora está até surpresa. Ela achou que eu já tinha aprendido antes. Tenho facilidade, até para minha surpresa. Sempre que posso, treino muito em casa.
Não estou livre porque aceitei ser síndica e então há muita coisa para fazer, principalmente porque o edifício é novo. Resolvi fazer as coisas funcionarem como acho que deve ser. Tive a felicidade de ter o apoio de todos na reunião em que me escolheram, quando disse o que pretendia fazer: “Não vou recolher dez ou vinte reais a cada semana, vou querer dinheiro para fazer tudo o que precisa ser feito porque me aposentei para descansar e não vou querer ficar o resto do tempo fazendo trabalhos aqui”. Todos aprovaram e me deram carta branca para cobrar cota extra sempre que fosse necessário. E eu botei uma cota-extra bem alta. E ninguém reclamou. Pagaram pontualmente e está tudo funcionando. 
É um edifício pequeno. São apenas seis aptos. As ideias que trouxe do que vi na América estou aplicando. Eles estão achando muito bom. A dificuldade é com o orçamento dos empregados, mão-de-obra e preços de materiais que são absurdos. Isso me tomou muito tempo. Estou lá com os pedreiros dentro do edifício, fazendo o que quero que façam.
As coisas vão aparecendo naturalmente. Quando menos esperamos já estamos envolvidos com outra coisa. De repente é preciso dizer: “Agora vou parar tudo, pois quero viajar”. Não quero viajar com frequência. Quero ter novamente um ritmo de vida que me permita acordar de manhã, tomar o café com tranquilidade e dormir todo dia na minha cama. Quero encontrar os amigos e conversar com eles. Se está chovendo, posso decidir não sair, ficar arrumando as coisas dentro de casa. Hoje o dia está maravilhoso, vou sair, fazer isso ou aquilo, vou para São Paulo, para Porto Alegre, para Curitiba. Acordar, tomar café com calma, cuidar das plantas, ler o jornal e depois ver o que fazer no resto do dia. Isso é uma coisa maravilhosa!

Artes plásticas
Falta do que fazer é uma situação que não vivo. Eu até disse: “Qualquer hora vou pedir férias! Já avisei o pessoal do edifício que no mês de março do ano que vem não vou mais ser síndica. Estou aposentada, quero descansar, tenho as minhas coisas para fazer”. Quero fazer desenho, escultura, cerâmica, fazer a sequência toda, mas começar do princípio, só que está indo muito rápido. A professora acha que estou indo depressa demais.
Agora mesmo, faz uma semana, estive em Los Angeles. Fiquei lá uns 20 dias e visitei muitas galerias e olhei tudo o que estão fazendo, quais os materiais que estão usando. Nós, aqui no Brasil, temos bons materiais e com bom preço. Então não trouxe quase nada de lá. Levei os preços daqui e pude constatar. E o nosso material é excelente, vem da França, Alemanha, Tchecoslováquia. Vale a pena comprar no exterior se a pessoa for a Londres ou a Paris e comprar diretamente do fornecedor. Do contrário, não precisa viajar para comprar esses materiais.

*Ella (pseudônimo) aposentou-se em 1995, aos 55 anos, com 31 anos de voo. Esta entrevista foi concedida em 1996, no Rio de Janeiro.

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